Ao
contrário do que acontecia na época de quinhentos, em que tudo e todos
enganavam o rei (no caso o nosso, imagino que ao de Espanha também), a
actualidade é agora a marca dos dias, nada ficando por saber-se ou conhecer-se
pelo que o reflexo das coisas é imediato, tendo sido aqui que senti algo ou
alguém meter a mão nos estudos que desenvolvo sobre o nosso compatriota Diogo
do Couto,* historiador, aventureiro, samaritano, marinheiro, mentiroso e
trapaceiro q.b., como era então voga, historiador que contudo não se coibiu de
criticar quer os abusos quer a corrupção e a violência decorrente ou provocada
pelos citados compatriotas na Índia portuguesa de quinhentos, tendo activa e
civicamente protestado abertamente contra eles.
Pois
este nosso conterrâneo que larga e levianamente adjectivei soezmente, era em
simultâneo um homem de bem e de honra, diga-se em seu abono ter sido amigo
íntimo de Camões, que inclusivamente veio a descobrir naufragado na Ilha de
Moçambique nos idos de 1569, a quem sem rodeios acudiu. Diogo de Couto
partilhava a ideia de que a história devia versar a verdade sem quaisquer
restrições, tendo plena consciência de que já nessa época quem o fizesse acabaria
sofrendo repressões, criticando e alardeando sem temor essa censura violenta e garantindo por experiência
própria quanto a objectividade incomodava, caso em que se encontrariam “Os
Lusíadas” obra que envolveria muitos nobres cujos familiares e antepassados
estariam envolvidos nos acontecimentos que o poema narrava. Encontrando-se
Camões com dívidas e sem dinheiro para voltar de pronto Diogo de Couto acorreu
em seu socorro, portanto devemos-lhe a chegada até nós do épico de Camões, cujo
manuscrito o bardo mantinha como único espólio do naufrágio que sofrera.
Diogo
do Couto era homem de letras, já dera à estampa (nessa época a imprensa, embora
rudimentar já existia) um completo e tão comovente quão impressionável relato
do naufrágio da Nau S. Tomé, uma das naus da carreira das Índias, relato que o
tornou famoso na nossa História trágico-marítima. Fora um dos protegidos do
infante D. Luís,** e cursara latim e retórica no Colégio de Santo Antão e
filosofia no Convento de Benfica. Pela morte do infante D. Luís e sentindo-se
desprotegido (ficou sem padrinho, ontem como hoje os padrinhos eram, são em tudo semelhantes) partiu para a Índia
com 17 aninhos, de onde somente viria a regressar volvidos dez anos. Porém
volveu de novo ao Oriente, o infante Filipe II incumbiu-o da missão de dar
continuidade às Décadas de João de Barros. Sabe-se que deu corpo às que vão da
IV à XII, tendo publicado completas apenas a IV, V e VII e o resumo das VIII
e
IX. Para sua e nossa infelicidade a VI ardeu e a VIII e IX foram-lhe posteriormente
roubadas, enquanto a XI se perdeu. A XII embora postumamente viria a sair.
Diogo
do Couto era um estudioso com uma concepção diferente da história, muito
diferente de João de Barros, e quanto a mim mais interessante pois entendia que
as "verdades" deveriam ser ditas, doesse a quem doesse. Não por acaso
e provavelmente para abafar a verdade algumas das suas "décadas" (VIII,
IX e XI) levaram sumiço antes de irem ao prelo. É evidente que não poderemos
afastar as suspeitas de que alguém, a quem não conviria a sua divulgação tenha estado
na origem desse "sumiço". Por sua vez e na mesma altura El-Rei Filipe
I nomeou-o em 1595 cronista oficial da Ásia Portuguesa e guarda-mor da Torre do
Tombo em Goa, o que fez e lhe permitiu dar continuidade às Décadas da Ásia de
João de Barros, encomenda do infante Filipe II como atrás ficara dito. De modo
competente organizou esse novo arquivo, vindo a morrer nessa cidade de Goa a 10
de Dezembro do ano da graça de 1616.
Uma,
ou essa concepção mais "realista" da história advinha-lhe da vantagem
de ter vivenciado a colonização portuguesa no oriente, onde viveu grande parte
da vida. Observou os seus compatriotas as
suas atitudes e comportamentos, tanto quanto a reacção dos nativos aos mesmos. Assentará
aí a explicação para que vejamos os seus relatos mais próximos da verdade que a
narrativa heróica de João de Barros. Também contribui para tal entendimento o
facto da linguagem de Diogo do Couto ser mais simples mais viva e pitoresca
do
que a de João de Barros sobretudo por incluir alguma ironia e humor
na narração d'alguns factos relatados.
Para além da continuidade por ele assegurada
às “Décadas” de João de Barros, Diogo do couto celebrizou-se especialmente pelo
testemunho do “Diálogo do Soldado Prático” livro que nos legou contendo uma
critica mordaz ao funcionalismo público, na altura ao da Índia, cujas mazelas
mete a descoberto, da ambição à riqueza por quaisquer meios, do vicio do amor
ao luxo, da opressão sobre os pobres à falta de dignidade e às mentiras com que
endrominavam com despudorada deslealdade El-Rei.
Nada a que não assistamos hoje
em dia. Uma pertinaz crítica ao sistema administrativo, militar e político da
época de quinhentos perfeitamente adaptável aos nossos dias, pois se o Soldado de
“O Soldado Prático” de Diogo de Couto se queixava dos desmandos no Reino e na
Índia, os militares de hoje fizeram o 25 de Abril por se queixarem dos
desmandos que nesta republica lhes aconteciam, sendo ignorados os seus feitos,
carreiras e anos de efectividade tendo sido preteridos em promoções e
ultrapassados pelos designados milicianos. O nosso país sempre foi palco de queixas, de furtos, de sonegações, e de igual forma sempre existiu cá quem a isso fizesse orelhas moucas.
“O Soldado Prático” é-nos apresentado sob a
forma de um diálogo entre um soldado sexagenário, experiente, um fidalgo
ex-governador da Índia e um despachante oficial ou secretário d’El-Rei. Curiosamente
o original de “O Soldado Prático” fora furtado ao autor, somente através de cópias
que dele havia se pôde proceder à reconstituição do mesmo, isto cerca de 1610. O
livro impressiona pela narrativa, apoiada na experiência dos negócios pessoais
do autor e dos que tinha conhecimento, nas suas amarguras pessoais, na visão
pavorosa da decadência do império e do reino, as quais dão à narração um calor
e uma violência que torna a verdade patética e elevando a obra “O Soldado
Prático” a uma das obras mais honrados da nossa literatura.
As palavras
de Diogo do Couto são as palavras de quem viu e viveu as situações e os factos que
descreve. Existe na obra um conhecimento pessoal dos
factos por parte de quem a escreveu, daí haver quem recomende a sua leitura
imediatamente a seguir à leitura d’Os Lusíadas. Meditemos.
“O
Soldado Prático é uma obra fundamental do corpus da literatura da expansão
portuguesa. Rodrigues Lapa considerava o diálogo de Diogo do Couto uma das
obras mais “honestas” da literatura portuguesa, Efectivamente, trata-se de um
diálogo que nos permite conhecer o lado pragmático da expansão e a ideologia
que lhe subjaz. Enfim, trata-se do texto que enceta a lenda negra do império
português. Por todas estas razões, O Soldado Prático é um livro fundamental
para os historiadores da expansão e do império português, sendo, como é, uma
obra que faz uma análise atenta das misérias humanas numa sociedade de grande
complexidade.” (Prof. Drª Ana Maria García Martín).
** D. Luís de Portugal era filho do rei Manuel I de Portugal e da infanta espanhola Maria de Aragão. Foi 5.º Duque de Beja, 5.º Senhor de Moura, 9.º Condestável de Portugal e Prior da Ordem Militar de S. João de Jerusalém, com sede portuguesa no Crato. Nascera a 3 de Março de 1506, em Abrantes vindo a falecer a 27 de Novembro de 1555, na actual freguesia de Marvila, Lisboa. Foi membro da célebre Dinastia de Avis e pai de D. António de Portugal, mais conhecido por Prior do Crato.
***** A ler como introdução a este texto: - https://mentcapto.blogspot.pt/2017/10/466-rr-barbeiro-ou-taberneiro.html