sexta-feira, 6 de outubro de 2017

467 - O SOLDADO PRÁTICO, by Diogo de Couto ...

Ao centro Diogo do Couto, pelo Grupo de Teatro Maizum. 

Ao contrário do que acontecia na época de quinhentos, em que tudo e todos enganavam o rei (no caso o nosso, imagino que ao de Espanha também), a actualidade é agora a marca dos dias, nada ficando por saber-se ou conhecer-se pelo que o reflexo das coisas é imediato, tendo sido aqui que senti algo ou alguém meter a mão nos estudos que desenvolvo sobre o nosso compatriota Diogo do Couto,* historiador, aventureiro, samaritano, marinheiro, mentiroso e trapaceiro q.b., como era então voga, historiador que contudo não se coibiu de criticar quer os abusos quer a corrupção e a violência decorrente ou provocada pelos citados compatriotas na Índia portuguesa de quinhentos, tendo activa e civicamente protestado abertamente contra eles.

Pois este nosso conterrâneo que larga e levianamente adjectivei soezmente, era em simultâneo um homem de bem e de honra, diga-se em seu abono ter sido amigo íntimo de Camões, que inclusivamente veio a descobrir naufragado na Ilha de Moçambique nos idos de 1569, a quem sem rodeios acudiu. Diogo de Couto partilhava a ideia de que a história devia versar a verdade sem quaisquer restrições, tendo plena consciência de que já nessa época quem o fizesse acabaria sofrendo repressões, criticando e alardeando sem temor essa  censura violenta e garantindo por experiência própria quanto a objectividade incomodava, caso em que se encontrariam “Os Lusíadas” obra que envolveria muitos nobres cujos familiares e antepassados estariam envolvidos nos acontecimentos que o poema narrava. Encontrando-se Camões com dívidas e sem dinheiro para voltar de pronto Diogo de Couto acorreu em seu socorro, portanto devemos-lhe a chegada até nós do épico de Camões, cujo manuscrito o bardo mantinha como único espólio do naufrágio que sofrera.

Diogo do Couto era homem de letras, já dera à estampa (nessa época a imprensa, embora rudimentar já existia) um completo e tão comovente quão impressionável relato do naufrágio da Nau S. Tomé, uma das naus da carreira das Índias, relato que o tornou famoso na nossa História trágico-marítima. Fora um dos protegidos do infante D. Luís,** e cursara latim e retórica no Colégio de Santo Antão e filosofia no Convento de Benfica. Pela morte do infante D. Luís e sentindo-se desprotegido (ficou sem padrinho, ontem como hoje os padrinhos eram,  são em tudo semelhantes) partiu para a Índia com 17 aninhos, de onde somente viria a regressar volvidos dez anos. Porém volveu de novo ao Oriente, o infante Filipe II incumbiu-o da missão de dar continuidade às Décadas de João de Barros. Sabe-se que deu corpo às que vão da IV à XII, tendo publicado completas apenas a IV, V e VII e o resumo das VIII e IX. Para sua e nossa infelicidade a VI ardeu e a VIII e IX foram-lhe posteriormente roubadas, enquanto a XI se perdeu. A XII embora postumamente viria a sair. 

Diogo do Couto era um estudioso com uma concepção diferente da história, muito diferente de João de Barros, e quanto a mim mais interessante pois entendia que as "verdades" deveriam ser ditas, doesse a quem doesse. Não por acaso e provavelmente para abafar a verdade algumas das suas "décadas" (VIII, IX e XI) levaram sumiço antes de irem ao prelo. É evidente que não poderemos afastar as suspeitas de que alguém, a quem não conviria a sua divulgação tenha estado na origem desse "sumiço". Por sua vez e na mesma altura El-Rei Filipe I nomeou-o em 1595 cronista oficial da Ásia Portuguesa e guarda-mor da Torre do Tombo em Goa, o que fez e lhe permitiu dar continuidade às Décadas da Ásia de João de Barros, encomenda do infante Filipe II como atrás ficara dito. De modo competente organizou esse novo arquivo, vindo a morrer nessa cidade de Goa a 10 de Dezembro do ano da graça de 1616.

Uma, ou essa concepção mais "realista" da história advinha-lhe da vantagem de ter vivenciado a colonização portuguesa no oriente, onde viveu grande parte da vida.  Observou os seus compatriotas as suas atitudes e comportamentos, tanto quanto a reacção dos nativos aos mesmos. Assentará aí a explicação para que vejamos os seus relatos mais próximos da verdade que a narrativa heróica de João de Barros. Também contribui para tal entendimento o facto da linguagem de Diogo do Couto ser mais simples mais viva e pitoresca do que a de João de Barros sobretudo por incluir alguma ironia e humor na narração d'alguns factos relatados. 

 Para além da continuidade por ele assegurada às “Décadas” de João de Barros, Diogo do couto celebrizou-se especialmente pelo testemunho do “Diálogo do Soldado Prático” livro que nos legou contendo uma critica mordaz ao funcionalismo público, na altura ao da Índia, cujas mazelas mete a descoberto, da ambição à riqueza por quaisquer meios, do vicio do amor ao luxo, da opressão sobre os pobres à falta de dignidade e às mentiras com que endrominavam com despudorada deslealdade El-Rei. 

Nada a que não assistamos hoje em dia. Uma pertinaz crítica ao sistema administrativo, militar e político da época de quinhentos perfeitamente adaptável aos nossos dias, pois se o Soldado de “O Soldado Prático” de Diogo de Couto se queixava dos desmandos no Reino e na Índia, os militares de hoje fizeram o 25 de Abril por se queixarem dos desmandos que nesta republica lhes aconteciam, sendo ignorados os seus feitos, carreiras e anos de efectividade tendo sido preteridos em promoções e ultrapassados pelos designados milicianos. O nosso país sempre foi palco de queixas, de furtos, de sonegações, e de igual forma sempre existiu cá quem a  isso fizesse orelhas moucas.

 “O Soldado Prático” é-nos apresentado sob a forma de um diálogo entre um soldado sexagenário, experiente, um fidalgo ex-governador da Índia e um despachante oficial ou secretário d’El-Rei. Curiosamente o original de “O Soldado Prático” fora furtado ao autor, somente através de cópias que dele havia se pôde proceder à reconstituição do mesmo, isto cerca de 1610. O livro impressiona pela narrativa, apoiada na experiência dos negócios pessoais do autor e dos que tinha conhecimento, nas suas amarguras pessoais, na visão pavorosa da decadência do império e do reino, as quais dão à narração um calor e uma violência que torna a verdade patética e elevando a obra “O Soldado Prático” a uma das obras mais honrados da nossa literatura. 

As palavras de Diogo do Couto são as palavras de quem viu e viveu as situações e os factos que descreve. Existe na obra um conhecimento pessoal dos factos por parte de quem a escreveu, daí haver quem recomende a sua leitura imediatamente a seguir à leitura d’Os Lusíadas. Meditemos. 

“O Soldado Prático é uma obra fundamental do corpus da literatura da expansão portuguesa. Rodrigues Lapa considerava o diálogo de Diogo do Couto uma das obras mais “honestas” da literatura portuguesa, Efectivamente, trata-se de um diálogo que nos permite conhecer o lado pragmático da expansão e a ideologia que lhe subjaz. Enfim, trata-se do texto que enceta a lenda negra do império português. Por todas estas razões, O Soldado Prático é um livro fundamental para os historiadores da expansão e do império português, sendo, como é, uma obra que faz uma análise atenta das misérias humanas numa sociedade de grande complexidade.” (Prof. Drª Ana Maria García Martín).



** D. Luís de Portugal era filho do rei Manuel I de Portugal e da infanta espanhola Maria de Aragão. Foi 5.º Duque de Beja, 5.º Senhor de Moura, 9.º Condestável de Portugal e Prior da Ordem Militar de S. João de Jerusalém, com sede portuguesa no Crato. Nascera a 3 de Março de 1506, em Abrantes vindo a falecer a 27 de Novembro de 1555, na actual freguesia de Marvila, Lisboa. Foi membro da célebre Dinastia de Avis e pai de D. António de Portugal, mais conhecido por Prior do Crato.




Diogo do Couto, Torre do Tombo.