segunda-feira, 12 de novembro de 2018

545 - AMAR-TE COMO AMO O AZUL DO MAR ... *

Pintura de João Magalhães.

Tentei amá-la sempre mais e mais, por muito que ela me amasse a mim pois há vinte anos sabia que, mais dia menos dia este amor acabaria assim. Assim como um inesperado sobressalto apesar de há muito ser coisa sabida e, nem o saber isso me minguou o pesar ou diminuiu em mim a perda perdida, nem esta dor sentida e muda.

Dor que dói, dor que corta, me acelera o coração e, nele, fervendo como numa retorta, esta raiva enraivecida contra nem sei quem dirigida e me alimenta, sustem e projecta contra tudo e todos como boca de fornalha, essa coisa que me queima até a alma e não se cala, ruge, arranha-me e consome-me todo, tudo, as noites, os dias, o mais íntimo de mim e todos culpo, até a Ele porque mesmo quando menos o esperava te perdi.

Deambulo por aí perdido eu por ter-te perdido a ti, vogando erradamente entre o sul e o norte desta vida agora sem sentido e, o pica, comedido, temendo o raiar vermelho dos meus olhos, este olhar luciferino, diz-me a medo:

- Subiu na linha errada, vai em sentido contrário, irei ignorar a sua confusão, mas terá que mudar de comboio na próxima estação, lá chegaremos dentro de momentos.

E eu, confuso, confundido, viro e reviro entre os dedos este bilhete com que, fugindo, julgava achar-te quando me encontrasse e finalmente o destino se condoesse e nos juntasse.

Com a mão sobre os olhos desço no Porto mas busco-te em Portimão, perdido, encandeado, olhando mas não vendo, procurando, buscando e não encontrando, não te sabendo onde, se em Leça da Palmeira se em Vila do Conde, se em Albufeira, se em Quarteira ou na foz do Arade, o fogo avançando, este calor queimando seja noite, manhã ou tarde, protegendo os olhos, ardendo, sufocado por esta saudade que me dobra e consome, tudo em meu redor enegrecido, tudo é nada, tudo arde.

Perdido e esperançado salto enlouquecido de fornalha em fornalha e em todas elas palha, nada, zero, nem uma agulha entre as cinzas deste palheiro que agora sou, cheio, grande, atafulhado de alto a baixo duma raiva enfardada, atada, contida com o pranto que abafo, pelo grito que calo, mas que ameaça rebentar-me no peito, saltando em enxurrada todo este amor que inda te tenho, incêndio que combato sem sucesso e com o mesmo ímpeto com que o alimento porque te amo muito, porque te amei e amarei sempre.

Não me calarei enquanto amor e dor de mãos dadas me arrastarem, nem quando ao soluços me abafarem a voz com que te busco ou me caiam as lágrimas e teimem correr onde as não consinto e contudo atrevem-se, teimam, toldando-me o juízo, quebrando-me a visão, o caminho, o horizonte deste oceano em que vogo perdido desesperadamente agarrando-me a ti, tudo me parecendo real e sem sentido agora que, despido das cores que me vestias, navego empurrado por um vento gélido que me enregela os ossos, faz bater o dente, temer o devir e o presente.

Amo-te mais agora que te não encontro que terei amado alguma vez no passado, a que me agarro como náufrago esperançado numa ilha a que aportar, minado por miragens de embalar, levado pelo canto de sereias para esse mar em que te creio e onde, para te encontrar quero afogar-me, nele entrando de rompante, submergir, abraçar-te como dantes e, ali ficar terna e eternamente amando-te apesar da noite de breu que sobre nós se abateu.

Apertando-te egoisticamente contra mim, protegendo-te, defendendo-te dessa sina ameaçadora pairando sobre nós, nuvem escura, polvo, monstro em fuga ante o meu grito, aqui neste mar de tristeza mando eu, eu e tu meu amor a quem cegamente amo, e sabendo isto o mostrengo picou até ao fundo do mar para no momento seguinte se erguer voando à nossa volta, revoando três vezes, chiando revoou três vezes, três vezes à nossa roda rodou esse mostrengo rodopiando e dizendo:

- Quem sois que haveis ousado entrar nos meus domínios, nestas profundezas, quem sois que vos não desvendo, quem sois que vos amais no fundo do meu mar, do mar mais negro do mundo?

E abraçando-te com maior ardor, eu que ia no leme tremi e disse:

- Eu a quem o amor tira todo o medo !

E por três vezes do leme as mãos ergui, e três vezes ao leme as reprendi.

E disse no fim de tremer três vezes:

- Aqui ao leme sou mais do que eu, sou amor sem fim que quer o mar que é teu, e mais que tu mostrengo que minh’alma teme e que rodas nas trevas do fim do mundo, manda esta vontade que me ata ao leme, um amor sem fim, um amor sem fundo que quer o mar que é teu, e este amor que é meu e o maior do mundo. **


** NOTA: O final do texto foi adaptado do poema O MOSTRENGO de Fernando Pessoa. 

Pintura de João Magalhães.
** https://www.youtube.com/watch?v=qGI8MP0ipsc

domingo, 4 de novembro de 2018

544 - QUERIDA MARIA DE JESUS - by Luísa Baião*


Querida Maria De Jesus. Espero sinceramente que esta missiva a encontre de perfeita saúde, o que aliás torno extensível a toda a família.

Terá estranhado a minha demora, mas, para mim, toda a carta tem resposta (ou deveria ter se a disponibilidade mo permitisse) e só a falta de tempo me impediu de dar notícias mais cedo.

Não serei eu a dar execução ao pedido que me colocou, mas no mesmo dia envidei esforços para que lhe seja dada satisfação. Confio que tal se concretize, e como alguma responsabilidade me cabe, não descurarei umas passagens por aí que me permitam ajuizar dos resultados.

Sei que aprecia poesia, mas a minha disposição hoje não é de molde a inspirações, espero que compreenda e me desculpe o facto. Infelizmente quer a disposição quer a disponibilidade me tolhem cada vez mais a vida própria que gostaria de ter, pelo que os momentos de inspiração tenderão a reflectir progressiva e acentuadamente este estado de espirito. Não amo menos por isso a poesia, olhe ! A propósito! Li há tempos um pequeno livro da Maria Teresa Horta, “Só de Amor “, da Quetzal, cuja leitura teria adorado partilhar consigo.

O tempo disponível some-se-me entre os dedos como areia em ampulheta, fico sem saber para onde virar-me, a vida pode ser dura. Chego a pensar por vezes como me deixei enredar nesta teia de compromissos, que nem me deixa uma oportunidade para dedicar a mim mesma algumas horas de ócio. Estou com pouco mais de quarenta anos e, quando pensava ter oportunidade para gozar um pouco a vida, eis que me caiu o mundo em cima, precisamente quando menos esperava, e lá se foram sonhos acumulados há tanto tanto tempo.

Que o seu homem não veja esta carta, pensar-me-á uma piegas ou que estou para aqui com lamúrias, haverá poucos que conheçam e compreendam as mulheres, o que até pode ser o caso, mas quando lembro que a maior parte só se preocupa em colocar os cotovelos de modo que não nos carregue...

Queria inteirar-me sobre as filosofias orientais e falta-me o tempo, conhecer os segredos do yoga, da meditação transcendental, e falta-me o tempo, debruçar-me sobre técnicas de relaxamento, e falta-me o tempo, praticar ginástica, ou aeróbica, ler mais, viajar, descansar, estar com amigas (os) e falta-me o tempo, não ter já motivos na vida para me preocupar quando me sobram tempo e preocupações, pensar em mim, conhecer o futuro... Mas não tenho tempo. Não tenho um minuto, uma pausa sequer, que me permita aliviar estes calores que já foram segredos fisiológicos, ou biológicos... Quem entende uma mulher na meia idade ?

Corro de um lado para o outro que nem uma formiguinha porque há contas a pagar ao fim do mês, clamo por alívio, e a única resposta que me deram foi uma nega, à reforma e ao descanso por que anseio. Fez-me bem a sua carta, chegou no momento certo, por uma vez as oportunidades com que o destino se tem entretido a brincar comigo viram as voltas trocadas, pode acreditar que ajudou a levantar-me a moral.

Por cá vou indo no cumprimento fiel do meu serviço cívico, dando o melhor de mim e esforçando-me sempre para que não me acusem de baixa produtividade como agora está tão em voga. Mas quando se me deparam tantos braços sem trabalho... E sem que eu possa fazer nada que inverta a situação, questiono-me, quando para tal me chega o tempo, como podemos querer um país rico e produtivo, se não cuidamos deste exército de desempregados e precários que aumenta a cada dia que passa.

Já vai longa esta carta, calhando só lhe leva preocupações, não é essa a intenção, fico aguardando tempo para desfrutarmos uma bica, até lá receba beijos e abraços desta amiga que muito a estima.

Com as devidas considerações à restante família.      

Maria Luísa Baião

Modigliani  -  “Mulher Nua”

* Publicado por Maria Luísa Baião‎ em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, ‎em 18-11-2002.

sábado, 3 de novembro de 2018

543 - ANTÓNIO, UM BEIJINHO, by Luísa Baião* ...



Querido António, desejo sinceramente que ao receberes esta te encontres de saúde, bem como a tua numerosa família, que conheci no sábado, entre Viana e Alcáçovas e com a qual fiquei agradavelmente surpreendida. Eu fico bem, com as mazelas que todos sabemos, mas com um espirito que mais animado ficou depois desse almoço em que vi um verdadeiro exemplo de harmonia, dedicação, carinho e amor. Sei que sempre foste um homem de palavra, de palavra e de princípios, e mais convencida fiquei de que essas qualidades, que em ti não são novidade, te serão mais que necessárias agora que a família aumentou e as responsabilidades foram acrescidas.

Não penses que não reparei nas palavras de conforto apoio e confiança que a tuas gentes te dedicaram, até um cego notava que ninguém as regateou. Claro que também eu fui arrebatada por essa onda de empatia que ali se gerou, mais convencida tendo ficado da importância da unidade na família e do cumprimento dos papéis que nos estão reservados. A família precisa de nós, não diria que para alcançar a maioridade, mas para alcançar a liberdade que só a assunção dos seus direitos lhes garante. Agora sei que com o teu empenho a situação de todos vai melhorar, não que esteja mal, mas acredito que a perfeição não passa de uma meta, e que o nosso dever mais não é que continuamente procurar atingi-la, embora sabendo que quanto mais perto mais difícil o seu alcance, já que é da natureza das coisas que ela continuamente se afaste.

É que os objectivos a que nos propomos, não te esqueças que também eu tenho uma família por quem responder, se por um lado nos conferem o direito, também nos exigem a aptidão para preencher expectativas, claras ou não, de todos os que em nós depositaram esperança e confiança. É um trabalho inerente a todos a quem Deus concedeu uma família, relevando do seu desempenho, neste caso do nosso desempenho, e factor decisivo de aceitação e harmonia tão cruciais para o bem-estar da família, para o seu desenvolvimento e progressiva satisfação.

Não existindo mais que modos subjectivos de avaliação, resta-nos a dedicação, uma maneira de ser coerente, e a procura da excelência para que nos venhamos a sentir igualmente recompensados no nosso papel, e isso já será visível, esperando portanto que possamos um dia brindar os dois pelo facto de termos superado os obstáculos, esses sim iguais, que se nos atravessam no caminho.

           Só nos resta trabalhar no sentido de dar tudo pela família, responder aos seus anseios, dar corpo à satisfação das suas necessidades, encontrar as soluções convenientes no momento certo, saber encontrar o equilíbrio que a todos contente igual e justamente. Ser pai, ser mãe, mais não é que identificar necessidades e satisfazer expectativas, procurar não trair a confiança em nós depositada. Quanto melhor executarmos o nosso papel, maior o reconhecimento que nos é transmitido, maior a nossa satisfação, já que é dessa forma que sabemos, que sentimos, estar a dar o nosso melhor contributo para o bem-estar e a elevação do nível de vida da família. Melhorar, melhorar sempre, é o papel, destino e dever dos pais para com os seus filhos.

Temos que nos armar de confiança e paciência desde o primeiro dia não é ? Da incerteza à certeza vai todo um caminho de melhorias a percorrer, atitudes a tomar, o tempo a passar, olhos sempre no futuro sem descurar o presente, como quem está sempre com um olho no burro e outro no cigano. E no fim, somente no fim dos nossos dias, a satisfação de ver a família bem, fruto do nosso trabalho, fruto de uma vida de dedicação, de melhorias contínuas, do desbravar de obstáculos, da transmissão de afectividades, de pensamentos e atitudes positivas.

Temos que ser magos, malabaristas de práticas e modos permanentes que nos levem à perfeição, é isso que esperam de nós e por vezes nos assusta. Do berço à cova prevendo e concebendo o melhor, assumindo responsabilidades, inventando eficácia, transmitindo aos outros uma força que por vezes não cremos existir em nós, diariamente, sistematicamente. Ser pais começa por ser entendido por uma oportunidade, uma benção que nos foi concedida, mas cedo acaba por ser um imperativo a que não podemos eximir-nos. Porque te calhou ser pai, quando talvez já o não esperasses, te deixo de parabéns um poema que me ficou no ouvido e de que tanto gostei;
  
Tenho lá, no meu quintal
Uma roseira enxertada:
Dá rosas tantas e tantas !
A seguir dá rosas brancas
E dá outras encarnadas... **

Beijinhos.

 

* Publicado por Maria Luísa Baião‎ em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, ‎15‎ de ‎Outubro‎ de ‎2001 e em homenagem ao  corajoso amigo António Beijinho.

** Extracto do poema “ Roseira enxertada “ cancioneiro popular português.


Roseira Enxertada - https://www.youtube.com/watch?v=CYXlh7KzFYY

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

542- JOÃO, O BOM SAMARITANO, by Luísa Baião*

Pintura, "O bom Samaritano" -  Eugène Delacroix.
               
            Jornais, telejornais e revistas têm-nos enchido nos últimos dias de peças e reportagens sobre os fugitivos* dos paraísos de leste. Eu, que sou crente, ponho-me a imaginar essas vidas que de forma ávida procuram neste purgatório liberal e capitalista a sua salvação.

De país de emigrantes, que ainda é, Portugal tornou-se de um dia para o outro uma quimera para esses desafortunados que nunca viram os amanhãs cantar. Os imigrantes de leste, que todos sabemos dispersos pelo país, estão contudo mais perto de nós do que imaginamos. Em Évora, pelo que sei, laboram algumas dezenas, desconheço se clandestinamente ou legalizados, ainda que possa afirmar que muita obra leva o cimento amassado com o seu sangue suor e lágrimas.

Sempre fomos um país de contrastes, exportámos mão-de-obra, que agora importamos, não temos, nem formámos os técnicos em que poderíamos apoiar o nosso crescimento e bem-estar, sustentamos um exército de desempregados e beneficiários do rendimento mínimo, mas não conseguimos preencher as milhentas vagas, tão necessárias, de técnicos de diversa índole.

Ninguém leva o estudo a sério, chegam-nos notícias de que o insucesso escolar só não é maior porque se nivela por baixo, novas teorias pedagógicas colocam o cerne da questão já não na aprendizagem, no aluno, mas no ensino, nos docentes e formadores. Eu sou menos teórica, vou directa ao assunto, os alunos que temos não são, rigorosamente, culpados de nada, toda a culpa é dos seus avós..., e no entretanto Portugal debate-se com sérios problemas de produtividade.

“E enquanto o Império Romano se desmoronava, se afundava nas orgias e volúpias dos vencedores, os bárbaros espreitavam as suas fronteiras e tomavam-lhe o pulso... Primeiro abocanharam os melhores pedaços, e finalmente se contentaram quando nada mais havia para tomar”  **

        Só que agora não são bárbaros os que nos invadem de mansinho, são gente culta, formada nas mais diversas áreas, engenheiros, médicos, biólogos, arquitectos, e muitos outros com elevadas qualificações e larga experiência profissional, gente habituada a que tudo lhe fosse exigido em troca de nada, a tudo dar de si sem pedir o que quer que fosse em compensação. Nota-se-lhes na expressão dos rostos uma abnegação sem limites, uma vontade férrea de vencer, sobrepondo-se por cima de uma tez curtida pelo trabalho árduo, que não enjeitam, pelo esforço rude que alguns não conheciam, mas que para eles significa neste momento o caminho da redenção.

João, a quem naturalmente não identifico, é um empresário da nossa terra que, de assalariado se tornou responsável pela sua própria empresa, que criou de raiz e hoje, após dez anos de esforço e dedicação, dá trabalho a quase duas dezenas de colaboradores.

Encontrámo-nos um destes dias, contou-me das dificuldades em encontrar um determinado profissional de que necessitava, terminou confessando que não lhe restou outro recurso que a contratação de um migrante de leste. Sossegou-me e sossegou-se esclarecendo estar tudo dentro da legalidade, não queria de modo nenhum ser confundido com essa gente que se aproveita do infortúnio dos outros, eu sei que seria incapaz de tal.

Mas o que mais me sensibilizou, e disso prezo dar-vos aqui testemunho, foi o brilho dos seus olhos, que denunciavam como dois faróis naquele rosto magro, uma incontida felicidade por se saber parte responsável, cúmplice da paz que outro homem buscava cegamente e que ele como bom samaritano ajudou a alcançar.                   
        
Sempre apressado, a face muitas vezes por escanhoar, habituara-me já à sua imagem carregada de preocupações e responsabilidades, às conversas tidas a correr, aos temas por acabar, ao tempo sempre a fugir-lhe. Nem ele imagina quanto nesse dia estava transformado, alegre e falador, exuberante e conversador, a alma saltando-lhe do peito, e creio que só por pudor, não gritou ali mesmo na praça aos quatro ventos, que se sentia tocado pelo amor. 


* Publicado por Maria Luísa Baião‎ em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, escrito no Domingo, ‎11‎ de ‎Fevereiro‎ de ‎2001, ‏‎às 09:22h e publicado num dos dias seguintes. Homenagem a João Mendes, sócio gerente da extinta Aba-Madeiras - Comércio e Representações Lda.

** Schmidt, Paul – “ A Europa entre Bastidores “, Ediciones Destino, Barcelona, 1958

Pintura,  “O Bom Samaritano” – Vincent Van Gogh.


quinta-feira, 1 de novembro de 2018

541 - QUEM VEM LÁ ? VOLTA PARA MIM ...


Como dizer-te quanto te amei e amo, se os olhos se me embotam marejados de tristeza e me dói saber-te perdida, imaginar-te ali, levantar o olhar e deparar-me com esta nova e estranha solidão. Um insólito e inesperado desespero o destes dias, tornado mágoa para mim, pois para ti foi libertação, evasão de ti, do teu sofrer e deste meu egoísmo que te peava.

Miro as águas de uma qualquer poça e em todas elas pressinto teus olhos mirando-me, duas pérolas forçando o desejo e querendo abrir-me os caminhos sem fim que levarão a ti, pérolas reflectindo o olhar parado que fixei na hora da tua partida, os quais pressenti ansiosos por trilharem caminhos já não deste mundo mas outros caminhos, os caminhos do destino, da sina, da ausência.

Melhores dias virão, que se cumpram por agora as orações, e se cumpram as promessas feitas sobre desejos cismados, quais sonhos vogando ao luar e me deixaram o coração em sobressalto quando jurados. Egoísta eu, continuo como me sabias então, hesitante entre a tua libertação, a minha perda e avidez de te prender à vida, egoísmo cego, puro egoísmo, perdoa-me. Avareza não almejada cuja assumpção e arrependimento me remeteu a este pranto.

Renego essa indelicadeza fútil e egoísta, essa minha insegurança tornara-me lapa de ti, ostra mareando na corrente, palpitando de impaciência num mundo que se finou, se não cumpriu, um mundo girando todo ele à tua volta. Tudo posso ver nesses teus olhos se os olhar bem no fundo de cada poça reluzindo ao sol e que não piso, como se pressentisse ou temesse receber reflectido esse sorriso tão bem recordado que é o teu e me visse a mim em pesadelos, fugindo de ti e de quanto me tem custado esta inconcebível escuridão inesperadamente derramada, qual cruz fadando esta minha pobre vida.

Escondi este rosto olhando os destinos rodando em sentido contrário aos meus anseios. Miro-me nas montras sem o orgulho e o garbo que outrora eram os meus. Volta, vem dar-me novamente a mão, anseio ver-te de novo brincando, sentir-te o coração batendo, o peito arfando, então pedir-te-ei que sorrias, encostarei à tua a minha face, roçarei uma e outra vez nos teus os meus lábios sem olhar desconfiado as sombras que em silêncio te arrastaram para longe de mim e da vida que ambicionámos.

Arvora um sorriso e vem, para que de novo sejamos festa e a harmonia reine. Volta, para que esta minha solidão não seja condição, condenação, destino, determinismo, fado. Teus olhos têm fundo e dão vida, olha-me no rosto, percorre de novo com o indicador as linhas traçadas nesta mão, p’ra que eu rejubile e minh’alma não se esconda, para que o eco do depois nada tenha que ver com o antes, que seja outro tempo agora, e tu de novo com as faces como duas rosas, irradiando o inesquecível perfume que é o teu, e que de novo brilhes, bonita, linda, confiante.

Ergo as mãos ao alto, em prece, e creio, acredito em ti, vives, acredito em cada ilusão de ti, em cada miragem de ti, vivo como um eremita e sonho-te, vejo-te sorrir, pairar sobre este mundo e eu, qual pássaro de asas cortadas, de novo sem vergonha nem pudor ergo para ti os olhos porque para mim tu vives, tu revives, tu existes, tu és, eu é que não.

Não sinto, não vivo, mas anseio e não desistirei de voltar a ser gente se tu a meu lado.