sexta-feira, 2 de novembro de 2018

542- JOÃO, O BOM SAMARITANO, by Luísa Baião*

Pintura, "O bom Samaritano" -  Eugène Delacroix.
               
            Jornais, telejornais e revistas têm-nos enchido nos últimos dias de peças e reportagens sobre os fugitivos* dos paraísos de leste. Eu, que sou crente, ponho-me a imaginar essas vidas que de forma ávida procuram neste purgatório liberal e capitalista a sua salvação.

De país de emigrantes, que ainda é, Portugal tornou-se de um dia para o outro uma quimera para esses desafortunados que nunca viram os amanhãs cantar. Os imigrantes de leste, que todos sabemos dispersos pelo país, estão contudo mais perto de nós do que imaginamos. Em Évora, pelo que sei, laboram algumas dezenas, desconheço se clandestinamente ou legalizados, ainda que possa afirmar que muita obra leva o cimento amassado com o seu sangue suor e lágrimas.

Sempre fomos um país de contrastes, exportámos mão-de-obra, que agora importamos, não temos, nem formámos os técnicos em que poderíamos apoiar o nosso crescimento e bem-estar, sustentamos um exército de desempregados e beneficiários do rendimento mínimo, mas não conseguimos preencher as milhentas vagas, tão necessárias, de técnicos de diversa índole.

Ninguém leva o estudo a sério, chegam-nos notícias de que o insucesso escolar só não é maior porque se nivela por baixo, novas teorias pedagógicas colocam o cerne da questão já não na aprendizagem, no aluno, mas no ensino, nos docentes e formadores. Eu sou menos teórica, vou directa ao assunto, os alunos que temos não são, rigorosamente, culpados de nada, toda a culpa é dos seus avós..., e no entretanto Portugal debate-se com sérios problemas de produtividade.

“E enquanto o Império Romano se desmoronava, se afundava nas orgias e volúpias dos vencedores, os bárbaros espreitavam as suas fronteiras e tomavam-lhe o pulso... Primeiro abocanharam os melhores pedaços, e finalmente se contentaram quando nada mais havia para tomar”  **

        Só que agora não são bárbaros os que nos invadem de mansinho, são gente culta, formada nas mais diversas áreas, engenheiros, médicos, biólogos, arquitectos, e muitos outros com elevadas qualificações e larga experiência profissional, gente habituada a que tudo lhe fosse exigido em troca de nada, a tudo dar de si sem pedir o que quer que fosse em compensação. Nota-se-lhes na expressão dos rostos uma abnegação sem limites, uma vontade férrea de vencer, sobrepondo-se por cima de uma tez curtida pelo trabalho árduo, que não enjeitam, pelo esforço rude que alguns não conheciam, mas que para eles significa neste momento o caminho da redenção.

João, a quem naturalmente não identifico, é um empresário da nossa terra que, de assalariado se tornou responsável pela sua própria empresa, que criou de raiz e hoje, após dez anos de esforço e dedicação, dá trabalho a quase duas dezenas de colaboradores.

Encontrámo-nos um destes dias, contou-me das dificuldades em encontrar um determinado profissional de que necessitava, terminou confessando que não lhe restou outro recurso que a contratação de um migrante de leste. Sossegou-me e sossegou-se esclarecendo estar tudo dentro da legalidade, não queria de modo nenhum ser confundido com essa gente que se aproveita do infortúnio dos outros, eu sei que seria incapaz de tal.

Mas o que mais me sensibilizou, e disso prezo dar-vos aqui testemunho, foi o brilho dos seus olhos, que denunciavam como dois faróis naquele rosto magro, uma incontida felicidade por se saber parte responsável, cúmplice da paz que outro homem buscava cegamente e que ele como bom samaritano ajudou a alcançar.                   
        
Sempre apressado, a face muitas vezes por escanhoar, habituara-me já à sua imagem carregada de preocupações e responsabilidades, às conversas tidas a correr, aos temas por acabar, ao tempo sempre a fugir-lhe. Nem ele imagina quanto nesse dia estava transformado, alegre e falador, exuberante e conversador, a alma saltando-lhe do peito, e creio que só por pudor, não gritou ali mesmo na praça aos quatro ventos, que se sentia tocado pelo amor. 


* Publicado por Maria Luísa Baião‎ em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, escrito no Domingo, ‎11‎ de ‎Fevereiro‎ de ‎2001, ‏‎às 09:22h e publicado num dos dias seguintes. Homenagem a João Mendes, sócio gerente da extinta Aba-Madeiras - Comércio e Representações Lda.

** Schmidt, Paul – “ A Europa entre Bastidores “, Ediciones Destino, Barcelona, 1958

Pintura,  “O Bom Samaritano” – Vincent Van Gogh.