Pintura, "O bom Samaritano" - Eugène Delacroix. |
Jornais, telejornais
e revistas têm-nos enchido nos últimos dias de peças e reportagens sobre os
fugitivos* dos paraísos de leste. Eu, que sou crente, ponho-me a imaginar essas
vidas que de forma ávida procuram neste purgatório liberal e capitalista a sua
salvação.
De país
de emigrantes, que ainda é, Portugal tornou-se de um dia para o outro uma quimera
para esses desafortunados que nunca viram os amanhãs cantar. Os imigrantes de
leste, que todos sabemos dispersos pelo país, estão contudo mais perto de nós
do que imaginamos. Em Évora, pelo que sei, laboram algumas dezenas, desconheço
se clandestinamente ou legalizados, ainda que possa afirmar que muita obra leva
o cimento amassado com o seu sangue suor e lágrimas.
Sempre
fomos um país de contrastes, exportámos mão-de-obra, que agora importamos, não
temos, nem formámos os técnicos em que poderíamos apoiar o nosso crescimento e bem-estar,
sustentamos um exército de desempregados e beneficiários do rendimento mínimo,
mas não conseguimos preencher as milhentas vagas, tão necessárias, de técnicos
de diversa índole.
Ninguém
leva o estudo a sério, chegam-nos notícias de que o insucesso escolar só não é
maior porque se nivela por baixo, novas teorias pedagógicas colocam o cerne da
questão já não na aprendizagem, no aluno, mas no ensino, nos docentes e
formadores. Eu sou menos teórica, vou directa ao assunto, os alunos que temos
não são, rigorosamente, culpados de nada, toda a culpa é dos seus avós..., e no
entretanto Portugal debate-se com sérios problemas de produtividade.
“E
enquanto o Império Romano se desmoronava, se afundava nas orgias e volúpias dos
vencedores, os bárbaros espreitavam as suas fronteiras e tomavam-lhe o pulso...
Primeiro abocanharam os melhores pedaços, e finalmente se contentaram quando
nada mais
havia para tomar” **
Só
que agora não são bárbaros os que nos invadem de mansinho, são gente culta,
formada nas mais diversas áreas, engenheiros, médicos, biólogos, arquitectos, e
muitos outros com elevadas qualificações e larga experiência profissional,
gente habituada a que tudo lhe fosse exigido em troca de nada, a tudo dar de si
sem pedir o que quer que fosse em compensação. Nota-se-lhes na expressão dos
rostos uma abnegação sem limites, uma vontade férrea de vencer, sobrepondo-se
por cima de uma tez curtida pelo trabalho árduo, que não enjeitam, pelo esforço
rude que alguns não conheciam, mas que para eles significa neste momento o
caminho da redenção.
João, a
quem naturalmente não identifico, é um empresário da nossa terra que, de
assalariado se tornou responsável pela sua própria empresa, que criou de raiz e
hoje, após dez anos de esforço e dedicação, dá trabalho a quase duas dezenas de
colaboradores.
Encontrámo-nos
um destes dias, contou-me das dificuldades em encontrar um determinado
profissional de que necessitava, terminou confessando que não lhe restou outro
recurso que a contratação de um migrante de leste. Sossegou-me e sossegou-se
esclarecendo estar tudo dentro da legalidade, não queria de modo nenhum ser
confundido com essa gente que se aproveita do infortúnio dos outros, eu sei que
seria incapaz de tal.
Mas o
que mais me sensibilizou, e disso prezo dar-vos aqui testemunho, foi o brilho
dos seus olhos, que denunciavam como dois faróis naquele rosto magro, uma
incontida felicidade por se saber parte responsável, cúmplice da paz que outro
homem buscava cegamente e que ele como bom samaritano ajudou a alcançar.
Sempre
apressado, a face muitas vezes por escanhoar, habituara-me já à sua imagem
carregada de preocupações e responsabilidades, às conversas tidas a correr, aos
temas por acabar, ao tempo sempre a fugir-lhe. Nem ele imagina quanto nesse dia
estava transformado, alegre e falador, exuberante e conversador, a alma
saltando-lhe do peito, e creio que só por pudor, não gritou ali mesmo na praça
aos quatro ventos, que se sentia tocado pelo amor.
* Publicado por Maria Luísa Baião em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, escrito no Domingo, 11 de Fevereiro de 2001, às 09:22h e publicado num dos dias seguintes. Homenagem a João Mendes, sócio gerente da extinta Aba-Madeiras
- Comércio e Representações Lda.
** Schmidt, Paul – “
A Europa entre Bastidores “, Ediciones Destino, Barcelona, 1958
Pintura, “O Bom Samaritano” – Vincent Van Gogh. |