quarta-feira, 13 de abril de 2022

766 - ISTO É GOZAR COM QUEM TRABALHA

 



ISTO É GOZAR COM QUEM TRABALHA

  

Amiúde vou fazer uma outra compra no MERCADORA perto de minha casa, ali à rua João Luís Vieira da Silva (será em homenagem à tal famíglia?) na zona da Cartuxa.

 

Pouco me demoro, estacionando onde calha e onde posso, esse problema não me aflige, mas constrange-me ver e aperceber-me das dificuldades criadas a quem trabalha e pretenda descarregar mercadorias para repor o stock do dito minimercado.

 

O lugar destinado ao estacionamento para cargas e descargas é exíguo, muito bom para acomodar um Fiat Panda ou um carrito ainda menor. Está localizado logo a seguir aos ecopontos ou vidrões o que dificulta imenso as manobras e o estacionamento de cargas e descargas de caminhões e furgões, em especial dos equipados com elevador monta-cargas, os quais por isso incomodam toda a gente, estacionando “travando” todos quantos já estejam estacionados e queiram sair, ou tapando entradas livres a quem queira estacionar.

 

Em boa verdade esses motoristas fazem depois das tripas coração para levarem a carga até ao destino.

 

Uma tourada.

 

Como se todas estas dificuldades não bastassem, o lugar que ali existe destinado à logística enforma de alguns males crónicos mas que podiam e deviam ter sido identificados e evitados;

 

  Primeiro - indelicadamente há sempre quem se aproveite e estacione onde não deve nem pode já que até lá há um sinal para que ninguém vá ao engano, “só cargas e descargas”.

 

Segundo - para descarregar, embora dificilmente entrando no espaço destinado a essa operação, seja um pequeno furgão ou uma ainda menor carrinha, fá-lo logicamente em marcha atrás, do que resultam outros dois inconvenientes, ou bate com a traseira no sinal, colocado demasiado perto do lancil desse passeio, ou pura e simplesmente o dito sinal não lhe permite abrir as portas, abram elas para cima ou para os lados. O local escolhido para cargas e descargas além de mal concebido e mal escolhido devido ao sinal e aos ecopontos vê acentuada a sua exiguidade devido a uma linda árvore ali existente.

 

A todos estes problemas de que padece o tal local destinado a cargas e descargas acresce ainda o facto do espaço sofrer os efeitos nefastos dum lindo Plátano que embeleza local. O mal não é o plátano naturalmente, mas o local, o espaço, que antes deveria ter sido destinado a deficientes, pois esses não foram lembrados, já que pura e simplesmente não têm direito a um espaço.

 

Para cargas e descargas deveria ter sido, e deve ser escolhido um outro lugar, o mais amplo possível, sem entraves, e perto da porta de armazenamento e não da porta de entrada de clientes no estabelecimento.

 

A Câmara Municipal de Évora terá certamente alguém que perceba destas coisas melhor que eu, ou se não tem pode sempre em outsorcing dar o trabalho a quem perceba da poda.

 

Assim é que não. Digam-me lá se isto não é gozar com quem trabalha ?

 

Boa Páscoa para toda a gente.




765 - DR. JOSÉ CARMELO, MUITO OBRIGADO ...



Andava há bem mais de 20 anos para lhe agradecer, tantos anos quanto o tempo passado sobre as minhas dúvidas e interrogações de então. A elas consegui dar satisfação primeiro, a ele somente há dias consegui pagar-lhe a dívida.


 Vivia-se ano 2000, mais coisa menos coisa, eu interrogava-me, questionava e contestava diariamente a nossa democracia e os nossos democratas, todos os dias assistia a coisas que de todo não me pareciam sérias, nem elas nem eles, que as diziame faziam.

 

Foi, pois, neste contexto de dúvidas democráticas que me caiu do céu o doutor José Carmelo, distinto académico e físico da nossa universidade e posteriormente da Universidade do Minho, o qual segundo os mentideros teria sido ostracizado, chutado e “expulso” da academia eborense devido ás suas ideias pouco ortodoxas.


O bom Doutor José Carmelo situar-se-ia politicamente à esquerda da esquerda e, essa esquerda extremista e marxista não lhe terá perdoado. É de resto conhecida a tolerância zero que as esquerdas dedicam a quem não pense como elas, cada uma detentora da sua exclusiva e dogmática verdade absoluta.

  

Distinto físico, com conferências proferidas um pouco por todo o mundo, desconheço se ao nível de Einstein, o tal da bombona, nem sei se deu à luz alguma bombinha ou se se limitou a tratar da vidinha (como aliás a maioria dos académicos, e eu sou um zero a Física), o bom Doutor José Carmelo * arranjou emprego lá para cima para o norte, Minho, Braga ou Guimarães, não sei bem, pelo que urgia fazer a mudança e livrar-se dos tarecos que não quisesse ou não pudesse levar consigo. Eu vivia então na Praceta Dom João I, onde ele, se não vivia tinha pelo menos uma garagem.  

  

Não recordo já os pormenores, sei que me convidou para a garagem, tendo colocado á minha disposição todo o recheio da dita pois era sabedor de quanto eu adorava os livros e a leitura. Centenas ou milhares de livros de política que agradeci e dos quais após uma cuidadosa olhadela escolhi uma dezena ou dúzia e meia, mais para ser simpático e me mostrar agradecido que outra coisa, aquilo era só lixo, lixo tóxico.


Com tempo e vagar lá fui digerindo e ruminando Mao Tsé-Tung, Carl Marx, Enver Hoxha, Pol Pot o ditador do Camboja, Ho Chi Minh, Josip Broz Tito, Viatcheslav Molotov, Léon Trotsky, Vladimir Lenine e outros que tais, os quais se outras serventias não tiveram, tiveram contudo o condão de me tirar as dúvidas metódicas que alimentava e me afligiam a consciência, dando início à minha inclinação e posterior viragem à direita.


 Parecendo que não, conhecer profundamente aquelas personalidades, as suas dogmáticas doutrinas e inconfessáveis feitos convenceu-me que o caminho certo não era por ali, e a verdade é que se olharmos para o mundo de hoje, como o de então, foi caminho que poucos países trilharam, com pouca sorte e ainda menos ou nenhum proveito.

  

Foi portanto por volta de 2000, mais coisa menos coisa, por volta do início do novo milénio que mudei de rumo e posso garantir que após aquelas tão tendenciosas leituras elas me ajudaram a ver melhor as coisas pois andava muito distraído e confesso-vos, era demasiado confiante.


 Penso ter sido essa distração, esse excesso de confiança que levaram os portugueses a votar como votaram ao longo destas quase cinco décadas e a colocar o país no impasse (para não dizer pior) em que ele se embrulhou, tendo sido precisamente a esquerda quem nos aldrabou.

 

Já lobrigara por duas ou três vezes antes o amigo e Dr. José Carmelo, mas nunca em lugar e tempo próprios para lhe agradecer quanto involuntariamente fez por mim. Esbarrei com ele naquele domingo na esplanada do jardim público e claro, não pude deixar passar a oportunidade de efusivamente o obsequiar, e de o lembrar, como e quanto lhe devia e agradecia.


 Fora ele a alma que me colocara no caminho certo, qual ovelha perdida do redil. Se hoje sou um convicto democrata liberal de direita a ele também devo, e foi isso mesmo que lhe disse.

  

Não me pareceu ter ficado muito entusiasmado, pareceu-me até abatido, imagem que igualmente colhera dele das vezes anteriores em que o vira e não tivera oportunidade de o abordar. Será que as coisas lhe correram mal lá para o Minho ? ou no norte por onde andou nos últimos vinte anos ? Será que alimenta agora as mesmíssimas apreensões que eu alimentava quando me brindou com Molotov e todos os outros quadrilheiros que acabei por deitar no lixo ? Será que lera aqueles milhares de livros, opúsculos e folhetos que enchiam a garagem ? se leu aquilo só lhe pode ser feito mal, muito mal, e talvez esteja agora a sofrer os seus efeitos, a ruminar as suas dúvidas.

  

Tarde para as tirar não ? tarde para recuperar caminho não ? Ou será desgosto pela traição dos amigos que atiraram com ele lá para cima ? para o norte ?

 Para a próxima perguntar-lhe-ei.

 Tão bom homem.

Não me consolo com o ar triste que carrega.

 

* https://jornaleconomico.pt/noticias/cientistas-da-uminho-abrem-portas-a-eletronica-do-futuro-206896




terça-feira, 29 de março de 2022

764 MARCELINO BRAVO, PLURAL, ProtoBiografia


Texto 764 - MARCELINO BRAVO  "PLURAL" 

                   e ProtoBiografia.


Mal vi o cartaz anunciando a exposição rejubilei, o meu amigo Marcelino Bravo, que pinta há mais de 60 anos e com afinco desde que ganhou em jovem um concurso de pintura então promovido por um jornal de Évora, nunca mais parou. Atravessou várias fases, das quais me habituei a uma, a inconfundível, me baralhei com outra, a extraordinária, mas sua, dele, igualmente genuína nas cores e no traço mas mirabolante no tema e que foi mais que suficiente para me desorbitar o pensamento, coisa de que na altura lhe dei notícia. *

 

 * https://mentcapto.blogspot.com/2016/12/407-marcelino-presencas-e-novidades.html

 * https://mentcapto.blogspot.com/2018/10/533-em-abstracto-nem-havera-quadro.html

 

Desta vez o título prometia, plural significava para mim que após mais de 60 anos de pintura Marcelino Bravo se nos iria deixar contemplar em todas as suas facetas, as vulgares, vulgares ou ordinárias porque normais, habituais, e extraordinárias, fora do costume, fora da normalidade, as extras, as supra, aquelas para além da singularidade costumeira. Sem qualquer demérito, quer para as segundas quer para as primeiras.

 

Plural, talvez porque Marcelino bravo com uma longa vida artística rica e preenchida finalmente se nos quis abrir;

 

- “Aqui estou, esta é a carne da minha carne os ossos dos meus ossos”. Como terá dito Adão da obra a que deu corpo (Génesis  2:23).

 

 Acometi à exposição com denodo, até por ser a terceira vez que a tentava ver, dificuldades de estacionamento cortavam-me as voltas e, se bem que o INATEL contribua valiosamente com a sua parte para a divulgação da cultura e dos artistas, no caso eborenses, a verdade é que a pretensa Capital Da Cultura não tem uma galeria pública permanente, com programa próprio e anual, director, orçamento, e onde dignamente receba artes, artistas e amantes da arte. 



Aliás nunca teve, vão servindo para o efeito salas aleatórias e aos mais modestos até a igreja de São Vicente contentará. Bem sei sermos um municipio pobre, no mais pobre dos países europeus, numa região paupérrima, sem empresas, de onde empresários e investidores parecem ser enxotados. Realmente dinheiro não temos e quem não tem dinheiro não deve ter vicios. Mas temos dívidas, enormes, para dar e vender. Mas apesar de tudo e graças ao Inatel em boa hora a visita aconteceu, porque até o mestre estava presente, o qual com simpatia e gentilmente, como aliás é mister seu que sempre lhe conheci, nos proporcionou uma inusual e esplêndida visita guiada.

 



É preciso reconhecer que Marcelino Bravo é um desses raros Homens providos dum espírito curioso, irrequieto, que sempre pugnou por ter uma participação profícua e simultaneamente ecléctica no que considera o seu dever cívico. É professor e julgo que enquanto pedagogo e artista a sua linguagem é sobretudo a pintura, o desenho ou a gravura. É através delas que melhor se expressa, o que facilmente transpira da sua faceta de artista e que esta exposição sublinha muito bem, trazendo ao centro da cidade as pequenas "jóias" da sua arte as quais, aparentemente expostas aleatoriamente não deixam contudo de tocar todos os visitantes com a sua sensibilidade, significado e beleza.



Curiosamente as obras saídas da imaginação fértil desta figura ímpar são-no sempre com vista a um nosso conhecimento mais aprofundado. A maioria delas questionam-nos. Esta exposição é uma mostra do seu talento multifacetado, plural, mostra de uma maturidade deste eborense que, graças a um concurso jornalístico, muito jovem abraçou a carreira de artista plástico cujo espólio hoje inclui pinturas que nos revelam uma persona, um artista, um pintor de extrema sensibilidade.



As paisagens de campos são banhadas de sol, luz e de cor. O que consegue com admirável simplicidade mostrando-nos também a tradição e os costumes simples das mulheres e homens deste povo, eborense e alentejano. A pintura de retratos, sempre infiel ao modelo e inteligentemente caricaturada, é mais que a mera mostra de expressivos apontamentos, alguns nascidos da inspiração e certamente espontâneos, onde por meio de vigorosas e fortes pinceladas acaba por identificar definitivamente o retratado.

 

- Vai chover Berto ! E tu sem guarda-chuva !

- Mas então menina ? Já não sou Bertinho ? 


 

Olhava eu a figura mais que caricaturada, estilizada, de um amola-tesouras excepcionalmente retratado e colorido enquanto atrás de mim o mestre sorria ante o meu deslumbramento. Noto, ouvindo-o com atenção que, em muitas das suas pinturas terá experimentado, variadas técnicas e cores, do que resulta exprimir-se com diversificadas e espontâneas abordagens, muito pessoais e cujas vibrações e clareza, constituem uma linguagem específica, a sua linguagem, que, quer nas cores quer no traço, no risco, se tornou inconfundível.

 

Os seus quadros, pintados com cores fortes, quentes e secas de grande qualidade, saídas por certo de um seu museu imaginário e ecléctico, não negam ser fruto da viagem autognósica dum estudioso autodidacta e artista cujas experiências críticas se avolumaram na consciência sociopolítica adquirida com a maturidade vivida e que se positivamente contrapõem às reflexões e iconografias mundanas e politicamente correctas, entrecruzando imagens e destacando nelas características plurais agregando-as num eclectismo que desarticula a identidade e as transforma em formas de consciência dicotómica, tricotómica, “plural”.



 Trocamos algumas referências a pintores que obedeceram a diferentes dimensões e correntes artísticas, mas aqui, nesta exposição “PLURAL” está sobretudo plasmada a descrição de paisagens e gentes locais, seus costumes e factos tradicionais, aventurando-se algumas pinturas nas suas idiossincrasias sobretudo sociais. As obras deste autor combinam registos vários, diversificados, sendo necessário estar atento já que estão fixados em suportes imagéticos ricos, oscilando entre pintura e pensamento, numa imaginação criativa e cromáticas acentuadas, tornando a sua obra algo que atinge e interpela os seus observadores. 


Marcelino Bravo procedeu inteligente e criativamente ao cruzamento de ideias na maioria dos seus quadros, tendo sido capaz de organizar essa peculiaridade tão difícil de equilibrar num eclectismo jogando entre a atracção e simultânea sedução pelo estranho que nos “agarram”, e por vezes libertando uma subtil denúncia das condições societárias eborenses, alentejanas, portuguesas e mundiais até, gerindo a sua e a nossa compulsividade emotiva de modo a controlar ou conter dentro de limites aceitáveis a sua descarga.



Cerca ou mais de 60 anos de actividade impar e milhares de quadros produzidos anunciam-nos, ou garantem-nos, estarmos perante os eixos privilegiados da transformação de si mesmo pelo confronto entre alteridade e divergência, factores que terão sido imprescindíveis para a consolidação da personalidade formativa do indivíduo num mundo pictórico que se aplica a inventar-se ou reinventar-se constantemente.

 

Para certas paisagens, tradições, para tudo aquilo que possa ser estranho, o artista encaminha-nos no contacto pessoal, na leitura das insaciáveis e por vezes aparentemente inexplicáveis experiências com que nos confrontamos ou ante as quais nos interrogamos. Cada quadro parece obedecer a um processo contínuo de recolha e agrupamento de coisas e ideias, por vezes de relação improvável mas que culminam numa ecléctica e harmoniosa pintura, tanto na temática como na policromia acentuada em que maravilhosamente teima.

  


A policromia “Marcelinista” plasma-se em temas e pormenores minuciosos. Embora carregando os estereótipos socioculturais alentejanos, empenha-se o autor em práticas de pensamento societário clarividentes, por vezes, muito diplomaticamente ou de modo subtil e esquivo, lá vai avançando na denúncia de uma ou de outra contingência e injustiça.

 

E quem no nosso meio mais se preocupa em mostrar solidariedade pelas escravas modernas e com a condição das mulheres? Marcelino manifesta em mais que uma pintura empatia pelo outro/a ou por alguém vivendo na sujeição de dominado, o que assinala com a subjectividade e o eclectismo de determinados quadros em particular, abordando dum ou de outro modo a temática da exploração. Paulatinamente coligiu todas as evidências incongruentes e ambivalentes que as suas criações apresentam, quer relativas a pessoas quer a comunidades, tradições e costumes, ao mesmo tempo que nas paisagens caracteriza essa natureza por vezes de modo abstracto, procurando porém incutir-lhes uma sistematização harmonizadora de um qualquer tema nas variadas pinturas que o abordem.

 


Registou nas telas a memória das coisas por si vistas ou pensadas, caso da natureza humana ou de meras paisagens, e as figuras com que se comprometeu espelham o estatuto e circunstâncias ou contexto da sociedade em que as devemos julgar inseridas. Quem as observe sentirá o pensamento liberto para o reconhecimento dessas pequenas singularidades ou pormenores que nos ajudam a destrinçar o tema e a manter a lucidez no contacto com o seu ecléctico abstracto, evitando que adoptemos perante quaisquer visões uma postura de incompreensão.

 

Ecléctico, e algo polémico, Marcelino Bravo é decerto um homem realizado e disponível para comemorar esta oportunidade que nos oferece, também ele celebra com a realização da exposição a sua própria realização pessoal e profissional ou artística marcando com este seu legado ecléctico e variegado, tudo quanto a sua vívida experiência o levou a deixar espelhado nos testemunhos que ora temos diante de nós. Marcelino Bravo tornou-se há muito um cidadão e uma figura incontornável na urbe eborense, devemos-lhe fidelidade à coerência pragmática e intelectual de fundamento ecléctico com que  década após década de resiliente e persistente actividade nos brindou.

 


Cedo iniciou os périplos mais ousados, estreou-se ganhando um concurso que despertou o interesse público e o seduziu para a singularidade da linguagem pictórica, cedo se destacaria pelo pitoresco e eclectismo de um novo mundo que nele despertara  entre o meramente documental e uma imaginação e ficção que viriam a demonstrar-se ímpares..

 

Relacionando conteúdos de natureza artística, cultural e tradicional levou por diante um projecto de vida ecléctico que após seis décadas se perpetuou legando-nos uma produção tão suficientemente abstracta quão ecléctica, dispersa por acervos e colecções particulares albergando muitas obras a que já perdeu o rumo. Continua contudo a surpreender-nos, melhor, perante as suas imagens evocativas de mundos estranhos possuindo uma autonomia tipológica muito sua, e muito própria, deslumbrando-nos e interpelando-nos enquanto espectadores pelo inusitado de temas e abordagens heterogéneas, teimou e continuou maravilhado-nos com regularidade inesperada ao longo de mais de seis décadas, tornou públicos um universo de maravilhosas criações permitindo-se repercutir na tela as ambiguidades da imagem imaginária que ele pôde e cada um de nós pode materializar mentalmente a partir das suas visões.

 


Atinge-o hoje o fascínio que lhe devemos e estimulou em termos de difusão junto de públicos alargados. Marcelino Bravo proporciona-nos um inesquecível mergulho em obras tais, as quais fizeram dele um “ícone” junto do público em geral. A sucessão de planos, as cores, o traço em “fuga e perspectiva” são metáforas para o esplendor e eclectismo da sua criação, sobretudo visíveis no colorido profuso e rico dos focos e flashes que em muitas pinturas se projectam em direcção ao céu, dando ao tema um fulgor, deslumbramento ou magnificência que retém o nosso olhar, isto é, uma espécie de encanto derramado sobre o objecto/ideia que se tornou pintura.    

 

É preciso notar estas coisas, fazer esforços para vê-las, memorizá-las para poder lembrá-las a qualquer momento, essas paisagens, motivos e ambientes são dignos de menção e sobretudo de uma visita que alimente e deixe prevalecer em nós o gosto pela representação “pictoresca”, denominador comum na estética do pintor e nas necessidades humanas do “homem”.

 


É por isso que devemos apurar a curiosidade por minúcias cujas singularidades potencializavam a acuidade da observação, a identificação e sistematização de costumes e padrões, isto sem prejuízo da sensibilidade que sustenta o entendimento das estéticas aplicadas por cada artista e que o identificam muito antes da obra assinada. O belo, o “pictoresco” ou o sublime explicitam-se nos seus quadros consoante a nossa aceitação das temáticas em foco. A subjectividade do autor direcciona também a visão singular para as idiossincrasias do nosso país, tendo completado várias obras ciente de que havia que consolidá-las e finalizá-las para bem da justiça. Há acções e atitudes diariamente tomadas que colocam o mundo na berlinda das quais o artista não pode alhear-se, não pode ignorar, não pode deixar também ele de clamar por justiça denunciando-as.

  


São os pormenores que previnem e esclarecem os leitores, tendo sempre manifestado a sua visão crítica sobre a sociedade e a política locais, nacionais e internacionais Marcelino Bravo não podia desinteressar-se de entreter os seus observadores e admiradores com a maior variedade possível de assuntos, entre os quais os sociais, os que mais exigem uma apurada sensibilidade. Com um génio intrépido e curioso por natureza, é devido a essa sua faceta que hoje temos uma imensidade de “passeios” e incursões por todos os cantos e temas.

 


Decerto Marcelino Bravo absorveu e extrapolou ideias, cruzando dados de natureza teórica, tradicional, social, mitológica e científica, ainda que sob mui ricas e significativas bases autodidactas. De algum diletantismo progrediu contudo durante as décadas dedicadas ao seu mister para conhecimentos, metodologicamente validados, com intenção de transpor os seus próprios limites comungando de ideias e correntes pictóricas e do saber de artistas de cariz mundial.

 

O caminho por si percorrido na dimensão pedagógica e relacionamentos correlativos também lhe concedeu uma formação identitária, uma educação e uma cultura que vieram a constituir uma generosa solidez de conhecimentos indissociável da imaterialidade preservada nas suas pinturas, e que garantem a “verdade” não aleatória ou casual das mesmas.

 


O artista agiu solitariamente, não integrou qualquer formação artística ou científica, dedicou-se como autodidacta a uma causa multidireccionada e multifacetada, procurando sempre obter a maior diversidade de elementos e informações para posterior elaboração dos seus trabalhos. A sua missão alimentou-se dessa capacidade em concatenar dados de proveniências diversas, e o que poderia sugerir um caos de inputs, pelo contrário ofereceu-nos todavia um todo organizado, quer na sua estrutura, quer em termos metodológicos e, quanto aos modelos de apresentação dos conteúdos, nada a criticar, bastará ver os seus trabalhos, visitar as suas exposições para o comprovar.

 

O autor não tem pretensões à perfeição, assinala mesmo humildemente a singularidade do seu projecto, reconhecendo que não serviu nunca encomendas ou solicitações de outrem. Tudo se conjugou num corpus moldado por um certo enciclopedismo alimentado durante toda a sua vida por isso, manifesta total disponibilidade e sentido de responsabilidade, para com a minúcia que o caracteriza analisar e discutir os seus trabalhos, buscando encontrar sempre para eles uma conciliação heterogénea e plausível. Sendo da sua esfera íntima o fenómeno da criatividade e aquela que está mais próxima de si, por versar sobre o que se passa no seu interior, Marcelino Bravo abre-se e abriu-se-nos com esta exposição numa entrega PLURAL que muito o honra.




Devo lembrar-vos que Marcelino Bravo tem uma extrema atenção ao retratar as figuras estilizadas, cheias, ou esguias mas sempre elegantes das várias tipologias que lhe caem em mãos, descrevendo-as perfeita e inteligentemente na sua linguagem pictórica, “pinturesca” e cromática quer vivam nas vilas quer em cidades.

 

Por vezes parece deixar-se conduzir pela efabulação que mitifica e metaforiza partindo da sua palete e fixando na tela a personagem e o nosso de olhar, numa surpreendente fidelidade à tradição e memória dessa cultura que é a sua e absorveu, manifestando-se de uma forma determinada, determinante e humanista.

 

Partindo de estudos com base na observação directa a tela vai paulatinamente sendo premeditada, de modo minucioso, até que as pinturas acabadas representem gentes, figuras típicas, localidades, sítios e paisagens, glosando e metamorfoseando panorâmicas, ou abstractas vedutas, personagens, simbólicas, etnográficas ou não. O discernimento estético do seu imaginário, contrasta por vezes com a determinação antropológica e ética quanto à abordagem da sociedade, porém, destacando sempre uma visão muito própria e “pinturesca” nunca deixa de realçar a representação pretendida inda que sob os auspícios duma mitificação, extraordinária, possivelmente exótica, mas sempre fiel ao seu gosto e registo.


 Não prescindindo nunca do seu pessoal e típico eclectismo, registo que se tem demonstrado imprescindível para o sucesso das suas criações, documentando-se sempre quaisquer que sejam as obras “no prelo” com estudos baseados no etnocentrismo, no sociocentrismo, e outros ismos, jamais olvidou ou deixou de considerar que em todo lado as pessoas ajuízam o seu trabalho, procedendo e actuando de acordo com o estatuto e circunstâncias que animam cada observador.

 Saliente-se a preocupação do artista, do mestre, quanto à ilustração e desenho das telas, telas que revelam procedimentos de rigor, busca da perfeição, diria que um trabalho pleno de autoconsciência e noção de responsabilidade do factos que aborda. Os seus registros são feitos no frescor da primeira impressão, conjugando uma anterior e acurada observação em termos estéticos, mas posteriormente as obras obrigam-no a um cuidado minucioso, denunciador de um contexto de trabalho exigente, a solo, num palco de crueza e exigência para consigo mesmo e de onde o “pictoresco” irrompe num quadro conceptual e estético subjugado à determinação do belo e do sublime.

 O pitoresco habita-o por natureza, e nele se expande, nas paisagens, nos personagens, encenando atributos, enriquecendo protagonistas, revisitando histórias num contexto de sobriedade reflexiva dada pela dignidade da pose, p’la categoria estética alcançada, a sua ambição converteu-se já em obsessão estética, pois certamente é sua aspiração e desejo abraçar a realização pessoal, tornando-se bem quisto e popular entre a sociedade que regista as suas impressões e descobre nelas os detalhes essenciais, a mesma sociedade que ao debruçar-se sobre ele o sabe identificar e nele ver as diferenças polifacetadas da sua obra e do trabalho por si produzido que pela qualidade o separam dos demais.


                                                                                  1964

Tudo isto traduz o impacto da sua personalidade, o carisma da sua pessoa, para além da qualidade da obra resultante dum eclectismo muito próprio que o distingue e nem permite seja confundido com qualquer outra identidade autoral igualmente ecléctica inda que porventura aborde os mesmos aspectos estéticos. Uma produção imagética rica e circunstâncias culturais únicas influenciaram Marcelino Bravo enquanto artista no processo de produção de suas obras e que designo por visão, apreensão e ação ecléctica. Essas experiências vividas e vívidas sem a menor dúvida foram enriquecedoras, insubstituíveis, garantindo e validando pelos conhecimentos técnicos e humanistas adquiridos e expressos que o primado artístico nele está associado a um juramentado compromisso entre autor-artista-visitante, observador.

 Com paisagens pictóricas povoadas e atravessadas pela presença e interacção de figuras multiculturais, para a melhor construção e sustentação ecléctica das memórias e testemunhos que nos lega, as suas obras são  a prova vívida de como convém à arte e à história uma forma de expressão baseada no conhecimento, na educação, na cultura, com preocupação na construção identitária que nos distinga e diferencie positivamente entre outros ou todos os universos que à arte se se abrem ou abram agora e sempre.  

 Obrigado Marcelino Bravo, Évora certamente te ficará eternamente agradecida e jamais te esquecerá.

  










































                              ABRIL 1981 in A TRAVE