Andava há bem mais de
20 anos para lhe agradecer, tantos anos quanto o tempo passado sobre as minhas
dúvidas e interrogações de então. A elas consegui dar satisfação primeiro, a
ele somente há dias consegui pagar-lhe a dívida.
Vivia-se ano 2000, mais coisa menos coisa, eu interrogava-me, questionava e contestava diariamente a nossa democracia e os nossos democratas, todos os dias assistia a coisas que de todo não me pareciam sérias, nem elas nem eles, que as diziame faziam.
Foi, pois, neste contexto de dúvidas democráticas que me caiu do céu o doutor José Carmelo, distinto académico e físico da nossa universidade e posteriormente da Universidade do Minho, o qual segundo os mentideros teria sido ostracizado, chutado e “expulso” da academia eborense devido ás suas ideias pouco ortodoxas.
O bom Doutor José Carmelo situar-se-ia politicamente à esquerda da esquerda e, essa esquerda extremista e marxista não lhe terá perdoado. É de resto conhecida a tolerância zero que as esquerdas dedicam a quem não pense como elas, cada uma detentora da sua exclusiva e dogmática verdade absoluta.
Distinto físico, com
conferências proferidas um pouco por todo o mundo, desconheço se ao nível de
Einstein, o tal da bombona, nem sei se deu à luz alguma bombinha ou se se
limitou a tratar da vidinha (como aliás a maioria dos académicos, e eu sou um
zero a Física), o bom Doutor José Carmelo * arranjou emprego lá para cima para o norte,
Minho, Braga ou Guimarães, não sei bem, pelo que urgia fazer a mudança e
livrar-se dos tarecos que não quisesse ou não pudesse levar consigo. Eu vivia
então na Praceta Dom João I, onde ele, se não vivia tinha pelo menos uma
garagem.
Não recordo já os
pormenores, sei que me convidou para a garagem, tendo colocado á minha
disposição todo o recheio da dita pois era sabedor de quanto eu adorava os
livros e a leitura. Centenas ou milhares de livros de política que agradeci e
dos quais após uma cuidadosa olhadela escolhi uma dezena ou dúzia e meia, mais
para ser simpático e me mostrar agradecido que outra coisa, aquilo era só lixo,
lixo tóxico.
Com tempo e vagar lá
fui digerindo e ruminando Mao Tsé-Tung, Carl Marx, Enver Hoxha, Pol Pot o
ditador do Camboja, Ho Chi Minh, Josip Broz Tito, Viatcheslav Molotov, Léon Trotsky,
Vladimir Lenine e outros que tais, os quais se outras serventias não tiveram,
tiveram contudo o condão de me tirar as dúvidas metódicas que alimentava e me
afligiam a consciência, dando início à minha inclinação e posterior viragem à
direita.
Parecendo que não, conhecer profundamente aquelas personalidades, as suas dogmáticas doutrinas e inconfessáveis feitos convenceu-me que o caminho certo não era por ali, e a verdade é que se olharmos para o mundo de hoje, como o de então, foi caminho que poucos países trilharam, com pouca sorte e ainda menos ou nenhum proveito.
Foi portanto por volta de
2000, mais coisa menos coisa, por volta do início do novo milénio que mudei de
rumo e posso garantir que após aquelas tão tendenciosas leituras elas me
ajudaram a ver melhor as coisas pois andava muito distraído e confesso-vos, era
demasiado confiante.
Penso ter sido essa distração, esse excesso de confiança que levaram os portugueses a votar como votaram ao longo destas quase cinco décadas e a colocar o país no impasse (para não dizer pior) em que ele se embrulhou, tendo sido precisamente a esquerda quem nos aldrabou.
Já lobrigara por duas ou três vezes antes o amigo e Dr. José Carmelo, mas nunca em lugar e tempo próprios para lhe agradecer quanto involuntariamente fez por mim. Esbarrei com ele naquele domingo na esplanada do jardim público e claro, não pude deixar passar a oportunidade de efusivamente o obsequiar, e de o lembrar, como e quanto lhe devia e agradecia.
Fora ele a alma que me colocara no caminho certo, qual ovelha perdida do redil. Se hoje sou um convicto democrata liberal de direita a ele também devo, e foi isso mesmo que lhe disse.
Não me pareceu ter
ficado muito entusiasmado, pareceu-me até abatido, imagem que igualmente colhera
dele das vezes anteriores em que o vira e não tivera oportunidade de o abordar.
Será que as coisas lhe correram mal lá para o Minho ? ou no norte por onde
andou nos últimos vinte anos ? Será que alimenta agora as mesmíssimas apreensões
que eu alimentava quando me brindou com Molotov e todos os outros quadrilheiros
que acabei por deitar no lixo ? Será que lera aqueles milhares de livros, opúsculos
e folhetos que enchiam a garagem ? se leu aquilo só lhe pode ser feito mal,
muito mal, e talvez esteja agora a sofrer os seus efeitos, a ruminar as suas
dúvidas.
Tarde para as tirar não
? tarde para recuperar caminho não ? Ou será desgosto pela traição dos amigos
que atiraram com ele lá para cima ? para o norte ?
Para a próxima perguntar-lhe-ei.
Tão bom homem.
Não me consolo com o ar
triste que carrega.
* https://jornaleconomico.pt/noticias/cientistas-da-uminho-abrem-portas-a-eletronica-do-futuro-206896