Comecemos
pelo princípio, o dia e o facto de alguém ter afirmado não perceber patavina do
quadro acima e da autoria do Pintor Eborense Marcelino Bravo. Confesso que fui
apanhado desprevenido pela afirmação, tanto mais que eu mesmo ficara
atrapalhado pois já em tempos confessara ao próprio autor não entender esta sua
nova tendência. Mas homem que é homem nunca deixa uma senhora de mãos a abanar,
sobretudo sendo tão linda como a que me cutucou, e logo ali lhe garanti não
ficar sem resposta, desse-me uns dias e lhe diria de minha lavra não somente o
que este quadro me diria mas arriscaria mesmo dizer-lhe o que p’la cabeça do
autor poderia ter passado quando o pintou.
Precisamente
no pp 15 de Dezembro de 2016 visitara eu na Biblioteca Pública de Évora uma
exposição do pintor Marcelino Bravo, artista e pessoa que em casa apreciamos e
admiramos, sobretudo a sua particular visão do Alentejo e temáticas afins,
cousa que este eborense magistralmente reproduz com traços e cores peculiares e
inconfundíveis. Porém nesse dia deparei-me com um Marcelino Bravo fora dos
carris, quero dizer descarrilando dos temas a que eu estava habituado e esperava
ir encontrar, eu explico melhor, digamos que metade da instalação era ocupada
por temas normais, habituais nele, Alentejo & Cª, mas a metade restante
apresentava telas inovadoras, diferentes, sem título nem tema, aleatórias, de
uma corrente anormal ou inusual nele, uma dessas telas a que acima vos
apresento, coisa que me confundiu, e disso dei conta ao autor logo que a
oportunidade surgiu, os novos quadros apresentados eram uma coisa da psico, um
abstraccionismo tido em moda há umas boas décadas e geralmente fruto de estados
mentais alterados, mentes provocadas, excitadas por uma linha de branquinha ou
uma pastilha de LSD, coisa que não me parecia ser o caso do nosso amigo
Marcelino Bravo.
Depois
fui à vida, cuidar de, antes de voltar a pronunciar-me sobre o tema, averiguar
primeiro a fundo essa coisa dos abstraccionismos e que para ser franco eu tinha
muito enterrado ou esquecido na memória. Não esqueçamos que a corrente abstracta
caracteriza-se pelos aspectos aparentemente inusitados e duma criatividade que
poderíamos considerar sem regras ou limites, aspectos que poderão ter estado
presentes na mente do pintor quando da realização da obra, os quais de igual modo
podem causar idênticas interferências na nossa percepção dela quando a olhamos.
Como
se esta complexidade aleatória e sem limites não bastasse, existe ainda uma corrente
de críticos entretidos em demonstrar que se usadas, ou havendo recurso a drogas
psicotrópicas, propositado ou casuístico, expandir tal os limites da mente,
limites cujas expressões pictóricas, pois é de pintura que falamos, nos são
dadas por essas experiências (alguns chamam-lhes alucinações), causadoras tanto
de mudanças de expressão quanto de percepção e fruto de sinestesia (sentir várias
sensações em simultâneo) experiências cujos estados nos darão a complicada
pintura abstracta. É o que eles dizem, eu nunca fui chutado a uma exposição, pelo que a vendo como ma venderam a mim. Marrei
uma vez na ombreira duma pastelaria mas essa é outra história, um dia vos
contarei.
“Decididamente”
alvitrou um amigo com quem discutia esta questão quando lhe expus o pormenor da
seta laranjinha curvando abnegadamente à esquerda e como que terminando o
movimento no próprio umbigo, o nosso amigo Marcelino já andaria preocupado com
o centrão e com esse tal partido o qual só pensará em si mesmo e nos seus
interesses, ao que o Zé me respondeu prontamente, como se a seta lhe tivesse
sido atirada a ele;
-
Repara pá ! Aquilo não e uma setinha laranja, antes um cogumelo alaranjado e não
foi o nosso amigo Marcelino que andou fumando, porque quem como tu, qual olho
de lince ibérico perscruta as profundezas da arte é que certamente foi buscar
essa acutilância visual a uma qualquer linda chupaça gânzica !
portanto
o fumador quântico ou gânzico terei sido eu, chupaça gânzica, esta nunca a tinha eu
ouvido, era Dezembro, inverno, frio, chuva, vento, nuvens, escuridão, e eu
certamente para me aquecer e esquecer o bucolismo inbernal amandei um charro abaixo debaixo dum qualquer chaparro
antes de me apresentar na exposição.
Aceito
ter sido eu a despoletar a polémica trazendo o quadro à baila, ter sido eu quem
viu no dito cujo uma curvilínea barriga de perna acabando num sapatito verde de
salto alto, verde, um gadget anti Prada portanto, um verde lindo, lindo verde
meu verdinho, não há cor igual à tua, tinta verde dos teus olhos…
Tinta
verde dos teus olhos
Escreve
torto no meu peito
Amores
tenho eu aos molhos
Se pró
teu me faltar jeito…
No meu
peito escreve torto
Na minha
alma a dar a dar
Nunca
mais eu chego ao Porto
Se lá for
por este andar
Nunca
mais eu chego ao Porto
Ao porto
de Matosinhos
Adeus
verde dos teus olhos
Estão cá
outros mais escurinhos… (2)
Mas
uma seta laranjinha guinando nada subtilmente à esquerda, uma perna bem
feitinha e um sapatinho verde de cristal não foi tudo quanto eu vi ali, vi
igualmente um fantasma da ópera carregando os pavores que o pintor
provavelmente terá em relação ao futuro, à sua condição, ao valor da pensão, e
naturalmente torci o nariz, foi o bastante para que a Olinda, olhando o céu
límpido, fruindo a calma do fim da tarde, orelhas espetadas na música clássica
do vizinho e afagando dois gatos preguiçosos enquanto alertava para as
brincadeiras duas crianças algures na rua e simultaneamente toda ela puro ócio…
Como se estivesses no meu terraço, preguiçando numa cadeira debaixo do guarda-sol,
atirei-lhe eu.
-
Achas? Eu vi tudo isso mas não me atrevo a interpretar um quadro. Sou demasiado
realista não achas ? Eu vi isso aqui ao pé de mim mas não me atrevo a
interpretar um quadro. Sou demasiado realista.
Do
que eu deduzi afirmar ela ser a arte um artificio, lembrei então dum diálogo
com Marcelino Bravo e em que ele me respondera;
-
Amigo é a incontestável e incontornável beleza feminina, o homem deve conservar
presente essa memória dela e expressar com grande tolerância os elementos
constituintes dessa beleza, e dentre esses elementos esforçar-se por harmonizar
cores e formas.
Claro
que entendi conservar como lembrar e deixar memória, testemunho, e ser liberal,
não só literalmente como com a palete e as cores, harmonizá-los entre si,
tornar o real ainda mais belo, estás a captar Olinda ? Muito me disse em poucas
palavras o mestre Marcelino eu sabia ou no mínimo intuía haver ali Maria...
A
conversa/debate tomou às tantas uma dimensão que dificilmente acompanhei tal
era a profusão e a confusão gerada pelos intervenientes, sei que alguém questionou
se a arte seria de quem a produzia ou de quem a consumia, ao que de pronto
respondi ser a arte de todos, ter a arte duas faces como as moedas, e duas
caras como o juiz do fresco de Monsaraz, uma expressando a ideia de quem a produz,
a outra espelhando a ideia de quem a observa, à arte, não à Maria, ou à Olinda,
ou à Fatita.
Devo
fazer notar que nesta parte da minha intervenção fui longa e entusiasticamente
aplaudido, alguém não se contendo e de modo arrebatado, como que inspirado,
gritou mesmo:
-
Muito bem observado meu !!
Naturalmente
tomei um ar grave, sério e professoral, tendo aproveitado para fazer um
brilharete e acabar por dar o resto da lição;
-
Quem pinta, quem compõe, esculpe ou escreve, expressa uma ideia que pode não
ser coincidente com a ideia de quem mais tarde observa essa pintura, partitura,
escultura ou romance... Temos o caso grave e extremo de Richard Wagner e da sua
"Cavalgada das Valquírias" cuja música lhe valeu ser acusado de
enaltecer o nazismo... Não há provas a não ser circunstanciais, mas a simpatia
dos povos Wagner perdeu-a para a sua arte soberba, pois afogadas em soberba lhe
sobravam as manifestações anti-semitas que entre o fim da República de Weimar
e a ascensão do Nazismo foi acumulando e lhe valeram o repúdio mundial que hoje
não lhe perdoa a superior arte de compor aliando-a a investidas bélicas, em
especial a partitura que aqui abordei umas linhas acima, a "Cavalgada das Valquírias"
(2)
Mas
em frente que atrás vem gente, pois o bom do Marcelino não anda somente com as
pernas da Maria na ideia, noto ali à direita o esvoaçar duma borboleta, se é
isso que lhe anda dando volta no estômago, a Maria ou as suas pernas, nunca
saberei, a lembrança foi minha, mas que ele teve o cuidado de marcar essa cena
com um X teve, e se é o X dos Xutos ou não ignoro, fico na mesma como a lesma,
nunca o soube apreciador dos Xutos, em boa verdade nem desapreciador. Será que ele xuta
?
A
amiga Fatita que é de Guimarães aventou a ideia de serem visíveis ali uma
igreja, igreja ou catedral de cristal e os raios cósmicos da fé, nascidos das ondas
do mar, mar de onde sairá numa curva parabólica um engraçado golfinho, saído do
mesmo mar de onde se ergueu o Mostrengo, ou quem sabe se o Fantasma da Ópera,
vindo das profundezas do Sena, enleado em teares que ela jurou ter ouvido tique
taque tique taque tique taque num ensurdecedor martelar de máquina de costura,
por sua vez olhada com surpresa por um veado... Juro que depois disto pedi ao Nuno
que não trouxesse mais bebidas para a mesa ou a análise temática da composição poderia
sair adulterada, ao que ele anuiu propondo um sumo de figos da índia, agora
anda nessa, cada um com a sua pancada…
É
que em boa verdade uma pintura, um simples quadro, tem uma miríade de
perspectivas sob as quais pode e deve ser analisado, da composição ou
distribuição dos elementos na tela, desde a relação figura principal - fundo
envolvente, ao conteúdo ou natureza temática, às linhas, sejam curvas, rectas ou quebradas, aos pesos visuais ou ao peso dado a cada elemento e naturalmente também ao equilíbrio entre
eles que por sua vez determinarão a tensão dinâmica da obra. Daí a importância
dos centros e dos eixos nela, devendo tender p'rá simplicidade, não
esquecendo evidentemente a textura, formas e cores seleccionadas.
Isto
quem vê almas não vê corações e quem vê corações não lhes enxerga a alma, a
verdade é que cada cabeça sua sentença, a do Marcelino uma, cada um de nós soma
outra e num ápice aparecem meia dúzia delas dissertando sobre o quadro, que de
tão abstracto tanto pode ser uma coisa quanto pode ser outra, ou outras e, em
abstracto, poderá não passar de pura imaginação nossa e nem sequer existir
quadro nenhum…
Ai
o Malandro do Marcelino que terá ele andado a fumar ??? ! ! !