quarta-feira, 27 de abril de 2011

42 - SEGREDO................................................................


Dir-lhe-ia.

Dir-lhe-ia decerto não fosse temer o choque inesperado que provavelmente lhe provocaria.

Caos na bonança ou tábua de salvação na tempestade ?

Dir-lhe-ia, ou ter-lhe-ia dito… quanta perturbação em mim causam a sua presença, as suas palavras, o seu chamamento.

Dir-lhe-ia quanto aquele cabelo desalinhado me seduz e atropela o pensamento, confundindo-me os sentidos, baralhando-me, tirando-me do sério, do regrado que cultivo em mim.

Evito-a.

Evito-te pelo pavor de sucumbir à tua atracção, ao teu chamamento ?

Aos meus sonhos… confundidos com desejos ?

Sinto-me frágil perante ti, sempre prestes a naufragar sob as ondas intensas da sensibilidade que emanas, sob a sensualidade que te serve de aura, como santa a quem entregasse as vicissitudes que me ensombram e requebram.

Dir-te-ia, mas não digo, receoso de que a contida pacatez da minha atribulada vida se enovele, enrede, emaranhe, e me perca em ti, sonhando-te, desejando-te, pensando-te a meu lado no caminho pedregoso que decerto seria o que pisássemos, por muito sol que o teu sorriso traga à minha vivência incógnita, mas à qual o calor da tua existência arrancou ao marasmo e atirou brutalmente às alterosas vagas desta vidinha agora em turbilhão constante, acossada regularmente pelas tuas insinuações cada vez mais desabridas, que finjo cada vez mais não entender, não perceber, mas percebo, e alvoroças-me a alma cada vez que…

 Cada vez que finjo ignorar-te quedando-me ante a tua aparição como um devoto envergonhado pela sua doutrina, temendo perder a compostura, temendo perder o pé neste mar de angústia em que me afogas e onde evito mergulhar mau grado o desejo consciente e cego de, simultaneamente, em ti me refugiar num gesto paternal de protecção à tua fragilidade, qual berço da serenidade que persegues, em vão ? 

Não sei…

Só sei que me sei porto de abrigo, ávido de acolher-te e em ti me refugiar e ganhar forças para não soçobrar ante a tensão que em mim se acumula e cala, e cuja culpa por ti reparto, qual desassossego que muito temo e ainda mais desejo, até ao dia em que, finalmente, possa dizer-te vem, toma-me, somos uma sombra só, um só caminho, acertemos o passo, descansemos deste tumulto que me consome, sossega, sou eu, estou aqui, abraça-me, aquieta-me, és tu ? 

                 Sou eu, já não te temo, já não te evito, já não frágil, e contigo de novo um colosso, e tu já não mero sonho, já não somente desejo, já não simples aparição, estás aí, existes, sinto-te o pulsar, o bater compassado e ritmado do coração acompanhando o meu, enquanto renasço e em mim sinto a vida surgir novamente em torrente impossível de deter, que não quero deter, e repito-me, sinto a vida aflorar em torrente, em golfadas, num êxtase e delírio incontidos, um sorriso nos lábios, um torpor no corpo macerado, renascido, Fénix, Ícaro, Apolo, Deus…

Assim me sinto quando me falas, me sorris, ter-te-ia decerto dito tudo isto se não temesse a reacção em mim, a dor em mim, o sofrimento em mim, a frustração em mim…

Ter-te-ia dito…

Mas não disse, jamais direi, preferi esconder o que mudaria o rumo ao mundo, lhe deslocaria o eixo.

A terra move-se, a vida flui, os sonhos vivem-se no lugar próprio, e eu, qual formiga no carreiro, recuso-me a dar o pontapé que enlouqueça o formigueiro…

           

quinta-feira, 21 de abril de 2011

41 - OUTRO 25 DE ABRIL?



Ainda não é um bambúrrio, mas que um burburinho atravessa os nossos quartéis não tenhamos a mínima duvida.

Desde que em 74 tiveram a sua dose de protagonismo que os militares não davam acordo de si, embalados primeiro no prestígio e na consideração que alcançaram, depois na dolce vita que o regime sucessivamente lhes foi proporcionando, criaram barriga e maus hábitos.

Saíram agora de novo das casernas, não já para reporem a ordem das coisas, mas reclamando o pagamento atempado do pré, sempre pouco, numa tentativa histriónica para garantirem privilégios que nunca deveriam ter sido continuados, por desnecessários, num pós guerra colonial, guerra cuja teimosia nos exauriu.

Verdade que nem sei para que actualmente nos servem tantos marechais, generais tenentes e coronéis, e por aí abaixo, sabido que, para que se vão os anéis e nos fiquem os dedos, muitos quartéis acabarão por ser vendidos ao desbarato.

Magalas para varrer as paradas já faltaram ás chefias, e, agora que descobriram a possibilidade de não haver pecúlio que lhes baste, temo por nós.

É certo que tivemos um dos nossos pontos altos em Aljubarrota, cuja padeira fez o que tinha a fazer, e que o recuo para o Brasil quando das invasões francesas, foi táctica que nos garantiu uma vitoria sem mérito mas indiscutível.

Concedo terem sido momentos altos da nossa história.

Mas eram outros os tempos, hoje, com três submarinos entre os recebidos e os encomendados, que tomara não venham a ser penhorados por quem os financiou, se metermos um em Alqueva, duvido que os dois restantes nos sirvam para leiloar em caso de ameaça de fominha generalizada, ou até p’ra pescar lá longe o bacalhau, onde dantes uma frota se aventurava, tendo sido paga p’ra nada fazer…

Quanto ao resto do material bélico que nos anima, nem sei se teria venda na feira da ladra.

Andaram mal os militares, pois se em 74 tinham do seu lado toda ou quase toda a populaça, agora, por nem dela se terem lembrado e apenas colocado em causa privilégios pessoais, olhando exclusivamente para o próprio umbigo, ficaram sem o meu apoio e certamente o de outros portugueses que teriam preferido vê-los de novo clamar pelos direitos de todos nós, o célebre povo unido recordam-se ???? … Porque todos nós temos algo a lamentar e nem ao menos as barrigas e honrarias que no entretanto eles acumularam e tanta inveja nos fazem.

Necessidades temos todos, que alguns só deles se lembrem, fez-me lembrar Salazar e a sua divisa de dividir para reinar.

O mal é estas coisas serem faladas, nem o governo nem qualquer tuga com dois dedos de testa, acreditará que sejam capazes de um desiderato qualquer apesar das bocarras do Otelo.

Causam por certo mais mossa ao governo os comentários a propósito passados na comunicação social, que as mal disfarçadas ameaças de levantamentos de rancho a que a sua marcial insubordinação der azo.

Mas não foi pela igualdade e solidariedade que se bateram em 74 ?

E agora seria então pela desigualdade ? Pelos seus privilégios ?

Mas disso estamos nós fartinhos de todo !

Para esse peditório não contem comigo ! Já dei uma vez e bastante arrependido estou !

Assumo ser difícil ter mão nesta gentalha, como em professores e alunos que desde o tempo em que tudo se resolvia à chapada nunca mais nos deram descanso.

Para mais, com ministros que se portaram com civis como se fossem ditadores militares e se portam agora com os militares como se eles fossem civis, nunca mais a bota baterá com a perdigota.

Eu já me ria, passados que são tantos anos, das vãs glórias que o 25 de Abril nos trouxe, e em que, qual trouxa, acreditei então plenamente.

Agora a coisa chia mais fino, não só me admira como se aguenta sem ir abaixo este país, que só pode ser rico por muito que nos façam crer no contrário, pois somente os ricos se dão ao luxo de um desperdício idêntico ao que desde então praticamos desportivamente, como me admira que, passados tantos anos após a revolução das promessas, continuem por resolver senão todos mas mais alguns dos problemas com que então nos debatíamos.

Mas sobre esses problemas nenhum dos nossos sargentos lateiros nem generais empertigados se pronunciou.

Isso é política, e a política é para os políticos.

Estamos bem defendidos creiam-me.

Cai nessa Vanessa!


sábado, 16 de abril de 2011

40 - QUE SE QUEBRE O ESPELHO...


 A hora era tardia mas seria antes a escuridão precoce a tornar a tarde fria. Vi-a na saída do híper, triste, bonita, os cabelos lindos, bem tratados, contrastando com a tristeza espelhada, cavada no rosto de bronze, como quem carrega dentro as culpas de um mundo tão feio quanto o podemos saber, chorosa, ou quase, mas emanando candura, meiguice e doçura impares.

Ameaçava chover e ela ter vindo de longe, talvez trazida pelo vento que, mesmo brando, soprava sempre no Outono.

Perguntei-me o que levaria no coração e quedei-me, imaginando-a, forçando a sua mente, tentando adivinhá-la e senti ter vindo de longe, de muito longe.

- Sim, é verdade amigo, comigo, uma oração, uma prece carregada desde o fim do mundo, desde essa longínqua partida até hoje, até aqui.

Busco, já não resignada ou magoada porque, dentro de mim outra dimensão, do tamanho do mar, outra largura de horizontes, paisagens, praias, rios, ares. Resisto e medito, mais que minhas forças consentem.

Sonho um país encantado, venho de longe, de muito longe.

Aprendi que não se pode ter o mundo, não se pode ter tudo, não se pode ter nada. Somente persigo a esperança, a esperança !

Levanto-me e caio, levanto-me e caio, e levanto-me sempre, como a Lua, como a Lua, que pena, que pena.

Quando chegará a minha vez, quando chegará ? Quando será ? Quando será ? Quando chegará a Primavera ? Sim ! Busco a Primavera !

A minha vida é um iô-iô ! Subindo e descendo, indo e vindo, sim !

Cuidado ! Minha vida é um iô-iô !

Vim em busca da Primavera iô-iô ! Embrulhada em bandeira ! Ao alto hasteada e jamais arriada, como numa janela sempre aberta, juramentada, fiel bandeirante de mim mesma.

Venho de longe, tenho esperança, trago esperança, cor, calor, o odor de outra rosa-dos-ventos, coisas trazidas no coração bem embrulhadas e protegidas desta tão grande ilusão. Qual escapulário das únicas relíquias que me permitem ser consentidas.

Não, já não quero palavras, já não me iludem, nem contentam nem confortam as palavras, sou senhora de mim, de meus sentimentos e desejos.
Sou assim, pouco quero e menos espero.

Quando chegará a minha vez? Quando será? Qual será a minha bandeira ?

Não recordo de todo se chuviscava ou não, pareceu-me vê-la ir pela rua, chorando lágrimas de ouro, nem lembro o que na minha imaginação e mente se confundiu de todo, se pingos de chuva, se lágrimas choradas ou brotando das pedras da calçada.

E tanto que desejava meter música neste texto e não alvitro como !
Dedicar-lhe uma valsa, um bolero, um tango !

E que a pudéssemos ver caminhar entre duas alas de uma orquestra, em que trombones, clarinetes, clarins, saxofones, erguessem em sua homenagem um hino, um cântico !

E estalassem foguetes ! Miríades de luminosas cores a cobrissem como se de flores se tratasse ! E ela pudesse pisar pétalas de milhares de rosas vermelhas !

E repentinamente também eu me senti de longe, muito longe, sozinho com os meus pensamentos, e naquele mesmo momento, eu, que nem dançar sei, apeteceu-me convidá-la para dançar !

Ali mesmo!
Um corridinho, um fandango, um vira do Minho !
Vê-la sorrir !
Pegar-lhe nas mãos, enlaçá-la, e, qual violão, vê-la feliz !
Dançar ali mesmo, esquecendo as caras surpreendidas das gentes !
Fugazmente julguei divisar em ti um sorriso, e eras linda !

Nem sei para quê nem porque pensei avançar sabido que a minha condição e timidez me travariam o ímpeto.

Por isso ali fiquei especado, vendo-te caminhar, abalar-me.

Procuravas nos bolsos do blusão talvez um telemóvel, umas chaves, e eu, quedei-me aturdido, agitado e já saudoso, apiedado de mim, jamais esquecido de ti.



quinta-feira, 14 de abril de 2011

39 - ANJINHOS..............................................................


E vejam lá se não é verdade que, na generalidade, todos os romances, novelas e filmes acabam moralmente, ou acabam geralmente com um fim feliz, casados para sempre, sempre felizes.

O casamento como meta, como um fim em si e que quer homens quer mulheres perseguem avidamente, é, ou parece ser tudo que ambicionam. Na realidade era e continua sendo tudo que nos dizem, como se a nossa felicidade dependesse sobremaneira de tal facto e esse estado civil representasse, na nossa sociedade, senão o mínimo que deveremos ambicionar, pelo menos muito ou quase tudo.

Realmente a sociedade confina-nos, constrange-nos e educa-nos essencialmente nesse artifício, socializa-nos, molda-nos enquanto seus filhos e ninguém, nem ao menos os nossos pais nos alertam para diferentes e igualmente possíveis opções, diferentes é certo, mas com tantas vantagens e desvantagens quantas as que o casamento acarreta. Na verdade ninguém nos diz, ou disse alguma vez, poder ser tudo uma farsa enorme e institucionalizada a nível mundial ! Nem sequer tal hipótese nos é colocada e então, jovens e incautos… embarcamos com o rebanho na mesmíssima maneira de pensar, na adopção dos mesmíssimos valores, e, claro, na sujeição aos mesmos problemas, mas sejamos justos também nas mesmíssimas vantagens se as houver, ou se as houvesse.

Não recordo a Editora e como há um ano ou dois dei todos os livros, toda a biblioteca com estantes e tudo, é tarde para citações, mas procurem na net ou nos livreiros, a “História Do Casamento”, prometo-vos que encontrarão um livro super interessante, com a história do casamento desde os seus primórdios pré históricos, em que as mulheres se encarregavam de manter o fogo perene que afugentava as feras e grelhava os nacos de carne arrancados às carcaças de diversos animais, enquanto em simultâneo, como mães faziam pelos seus rebentos e pelos do clã, num maternalismo cooperativo e comum. E ainda arrebanhavam lenha e se ocupavam de outros pormenores. Era o tempo, ou foi o tempo das sociedades matriarcais, enquanto o homem caçava, agricultava, construía, desde instrumentos para a caça e pesca às rudimentares habitações e utensílios.

O sexo era mais livre por esses tempos que foi nas décadas de sessenta e setenta, a promiscuidade era uma questão de sobrevivência, os ciúmes ainda não tinham sido inventados nem causavam a catrefa de mal entendidos e desaguisados a que hoje estamos habituados. Todos eram filhos de todos, pais de todos, mães de todos, e, a crer na história viveriam relativamente felizes. Mas o aumento da população e do número de filhos de todos acarretou duvidas e questões novas, às quais havia que dar resposta, pelo que mais ou menos em meados ou finais da Idade Média, a Igreja, a única instituição com força, para não dizer a única de pé após as trevas originadas pela queda do Império Romano, e a única disseminada por todo o mundo ocidental, já então a parte do mundo que contava para alguma coisa pois o resto era selvajaria, falo do nosso ponto de vista claro.

            A Igreja ia eu dizendo, lembrou-se então de pôr mão e ordem na feliz rebaldaria vigente e daí até os padres e respectivas paróquias terem começado a efectuar um registo de quem era filho de quem e quem casado com quem foi um ar que lhes deu, e do púlpito, a pregação começou a ser outra, ameaçando com a ira de Deus quem não cumprisse, obrigando o rebanho a manter-se ordeiro no novo redil então construído, criado ou inventado. Foi assim mesmo, sem salamaleques nem paninhos quentes. Entre a plebe foi o acto do casamento institucionalizado pela igreja (acreditem, isto é história, não são tretas) pois já ninguém sabia de quem eram tantos filhos, tantos pais e tantas mães, tendo ao longo de séculos sido as populações instrumentalizadas, mentalizadas para esse estado civil superior, o dito casório, e do qual já quase ninguém hoje lembra ou conhece as origens.

Sim, as populações plebeias, nós os plebeus, aceitemos que o casamento enquanto tal era já anteriormente vivido ou praticado, mas somente entre as classes superiores, as ditas classes possidentes, realezas e senhores feudais, coroas e dinastias, por causa das heranças, fortunas, terras, e mesmo assim só o primogénito se safava com a herança, as mulheres seriam felizes se tivessem a sorte de casar bem, com linhagem, e era-lhes imprescindível levarem um bom dote ou não valiam nadinha, os filhos segundos iam para cardeais ou bispos ou membros da corte, com tenças e lugares importantes, bem pagos, com terras dadas pelo rei, os condados, e daí foi um passo até aos duques, barões e merdas do género (foge cão que te fazem barão, para onde ? se me fazem conde...). Olha hoje… 

Nunca o Zé-Povinho tinha sido tão feliz ! Até que o lixaram com o casamento, com a mulher única e a responsabilidade conjugal, com as ameaças de não ir para o paraíso, com a excomunhão e o tanas, enquanto os pregadores, de Monges a Cardeais e até Papas, se abotoavam com os melhores pedaços de mulherio que podiam, desde freiras a beatas !

até com as criancinhas quando calhava….

Tudo isto enquanto os mais exigentes mais intolerantes e moralistas mantinham amantes e rameiras, alcoviteiras e barregãs !

Tinham que viver a vidinha deles não era ?

E agora digam-me, para além do mito do amor e uma cabana, se os vossos papás e mamãs vos alertaram para alguns inconvenientes do casamento ?

Ou apenas vos quiseram longe de casa ?

Ver-se livres de vós ?

Falaram-vos de alguém mercê disso vos vir a esfolar vivos ?

Vos vir a tornar escravos ?

Escravos de uma casa, de um carro, de um qualquer ignóbil patrão, de um qualquer homem ou mulher menos dotado (a) de inteligência ? Dos filhos ?

Aposto que até vos pediram netinhos e netinhas !

Falaram-vos do desemprego? Da desvalorização da moeda? Da inflação ? Do lay off ? Do fim dos sonhos e das paixões ? Dos tachos padrinhos e cunhas ? Das crises permanentes ? Da água, da luz, do telefone, do gás ?

Da saúde ? Da educação ? Da justiça ? Da desigualdade ? Falaram-vos da prisão ? Da rotina ? Da quebra da novidade ? Da tentação ?

Aposto que não meus anjinhos, aposto que não ! 

Deus vos acuda….. !



segunda-feira, 11 de abril de 2011

38 - A SAUDADE, O DESEJO E A TUA AUSÊNCIA...




E quando a mente se queria libertar do pensamento que me oprime e tolda, eis que o dia surge baço, triste e chuvoso, quebrando-me a vontade de pelas estradas desvairar sem hora nem destino

Não quero pensar, custa-me pensar, dói-me pensar, por isso a tal me furto na vã ilusão de o conseguir

Não consigo

Pudera eu, mas não consigo

As ideias assaltam-me em catadupa entrechocando-se, cada uma exigindo primazia  atenção e dedicação exclusivas, e não consigo debruçar-me sobre absolutamente nada, sobre nenhuma delas, furtando-me às soluções que procuro e não alcanço, a sobressaltos nesta vidinha álacre mas rotineira, a esta alegre paz dos mortos que há tanto cultivo como se necessária, útil, essencial à vida, e não é

Não é, é erro e engano, viver não pode ser isto, decerto não é isto, pelo que, consciente da minha inconsciência e recusa de atenção aos tantos problemas e questões que em simultâneo me assaltam, sorrio, pela primeira vez sorrio e deixo andar, deixo para trás, o tempo que resolva esta minha impossibilidade, reservo-me gozar o momento e lembrar-te, a ti, cuja ausência me grita e me inquieta, tu, sim tu, a quem dei asas, aguardei planasses, por quem agora olho temerariamente os céus na incerteza do regresso, feliz por finalmente voares só, quebrados receios que não lembrara, antecipara, acautelara, como se o centro do mundo eu, e não sou, nunca fui, mas me julguei, tal o apreço que me votaste

Tomei então consciência da força em ti e da tua vontade

E quedei-me cônscio que tu és tu e eu sou eu, e jamais fomos ou seremos um só

Então, pela primeira vez lamentei não ter tido o que jamais pedira e tanto acabara desejando, quanto lamentei ter perdido o que vez nenhuma me pertencera e já dera como meu

Sim, o que jamais pedira ou vez alguma desejara, e se transmutara indelevelmente em algo que muito ambicionei e jamais tive, apesar assim o ter considerado, mas ao qual por direito algum que conscientemente possa arvorar a favor poderei por uma vez chamar ou dizer meu

E assim a saudade o desejo e a tua ausência em simultâneo evoluem num sonho lindo que alimento, mais acordado que dormindo, e me trazem encantado há tanto tempo, esquecido de tudo e de todos, e de mim, que me não penso, já que somente nesse sonho vertido em esperanças inverosímeis me é possível acalentar-te

Tão inverosímeis quanto o futuro que nos aguarda, quais castelos de nuvens engalanados de boas intenções e suspiros, e ais, e tu, e eu, em posições tais que o melhor é esquecer, não lembrar mas esquecer simplesmente que não podemos sequer augurar, sorrir, sorrir desta ironia que nos juntou sem juntar e contudo durante tanto tempo logrou enganar estas mentes ávidas, carentes, iludidas, sofridas, alienadas de si por vontade própria, agora cônscias de que contudo, todavia, valeu a pena esta impossibilidade…

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