domingo, 19 de junho de 2011

58 - QUERIA OFERECER-TE UM RAMO DE CAMÉLIAS...




Eu queria oferecer-te uma flor amor, uma flor que cantasse um anseio, um receio, uma flor que encerrasse intimidades, lembranças, que te levasse puras e quentes, palavras ardentes.

Eu queria viver sempre em melodia, eu queria que não tivesse fim o dia, eu queria estar contigo agora, sempre, queria ser teu confidente, contar-te que sou alegria, gente.

Não esquecerei os teus olhos, o teu sorriso, se sinceros.

Eu queria oferecer-te um ramo de camélias, e corri doido, por floristas, campos e revistas, sem que em parte alguma o alcançasse, por isso pensei, que pétalas pudessem florir dos meus braços e cobrir-te, que o seu aroma preenchesse espaços, te fizesse rir, sorrisses…

Imagino o teu cabelo em desalinho, a tentação de o querer domar, só porque não quero que esconda um rosto lindo, cujo sorriso me fará sentir bem-vindo, e querer ao pé de ti ficar.

Sou aquele que mente, pensas tu, mas sou já crescido, gente, em que vive um coração que sente, alma temente, sonho persistente, atrevido e consciente, que o tempo ensinou a ser sincero.

Voo por cima dos meus pensamentos, sonho acordado, monto o cavalinho, parto à desfilada, delirante, e só a tua lembrança me acalma o caminho errante, me faz tornar à terra de mansinho.

Queria imaginar-te a meu lado prazenteira, e esse momento fosse de festa, bebedeira, ter-te comigo p’ra me consolar, para conspirar, guiar na cegueira, sossegar em mim esta canseira.

Canseira de incertezas e temores, de não poder sonhar-te eternamente, receios e pesadelos de perder-te, medo de procurar-te em vão e não te achar, olhar, não te ver e te chorar.

Vivo inquieto, imagino-te, e tudo me parece um sonho lindo, céus multicores, cheirinhos a mil flores, e irrequieto temo o sonhar findo.

Febril, em alvoroço, me ergo do sono, desvairado, procuro-te a meu lado, sento-me à beira da cama, angustiado, a noite profanada novamente me enleando no seu seio, deixando uma lágrima, um esteio, um esboço.

Um esboço que sonhei e se sumiu, que horrorizado vejo fugir do meu alcance, que temi perder, ficar distante, e foi essa saudade que uma lágrima traiu.


Não te escondas, não me abandones, não quero ficar sozinho neste mundo, serás tanto para mim, meu doce amor, não deixes que estoire no meu peito um grito agudo, porque para mim tu serás vida, tu serás tudo !



O TIRO DE MISERICÓRDIA QUE NÃO FOI DADO


O problema era mesmo o cheiro a sangue, se nada pior acontecesse a diversa bicharada deambulando faminta cinco milhas em redor dele se encarregaria de lhe dar fim, não de o estraçalhar pois estraçalhado já ele estava.

É daquelas coisas da vida que pensamos nunca virem a acontecer-nos, um tipo esquiva-se a morteiradas, bazucadas, paludismo e o que mais calhar, incluindo rajadas atiradas em jeito de despachar fogo e a que nos safamos como quem ginga com a sorte e, dias depois, arma ao ombro e julgando longínquo o perigo, avançando descontraidamente por uma picada, pisa-se uma mina, clic e pum !

Afinal não acontece somente aos outros, que merda de sorte, estou fodido, e agora ?

Se não fossem os bichos a dar com ele e a dar conta dele seriam os sul-africanos, por duas vezes já tínhamo-nos conseguido esquivar aos hélis, uma das vezes quase nos enterrámos na areia para não sermos vistos, sabíamos que não iriam desistir de nos procurar, tínhamo-los deixado suficientemente enraivecidos para que não pusessem de lado o prazer duma vingança a quente, o Mhuanha teria que desenvencilhar-se sozinho, que optar, que escolher, desde sempre o sabíamos, a guerra é feita de escolhas, qualquer guerra, nada de debates, de burocracias, nem opções inadiáveis, é antes feita de opções imponderáveis, imediatas, como no velho oeste, quem não sacasse primeiro morreria às mãos do inimigo.

Sabia-o qualquer de nós e sabia-o o Mhuanha, a vida decide-se ao minuto, um tiro certeiro do guerreiro e é a glória, um passo mal dado e é a morte do artista. Desfeito já ele estava, encostado a um penedo baixo, segurando com as mãos as tripas, ora apertando o garrote ora relaxando-o, enxotando moscas e mosquitos, leões, chitas, guepardos* hienas e mabecos seriam mais difíceis de enxotar, e se aparecessem os sul-africanos haviam de gostar de ouvi-lo falar, obrigá-lo-iam a falar, portanto o melhor seria guardar para si mesmo a última bala, se para a usar lhe dessem tempo e oportunidade…

Isso, tempo, o tempo seria doravante o seu pior inimigo, a terra, já de si avermelhada, escurecia e criava crostas empapada de sangue, a mesma terra que, como uma compressa lhe secava as entranhas expostas e lhe escondia a gravidade da situação em que se encontrava, tornando-a mais aceitável aos seus próprios olhos. Mhuanha sabia tão bem quanto nós não haver maneira de o levar dali até à base, muito menos chegar lá vivo caso teimássemos ou conseguíssemos carregá-lo, esperavam-nos pela frente três a quatro dias de marcha, a pé, isto se o despiste dos sul-africanos não nos obrigasse a rodeios que acrescentassem a esses mais dois ou três, em qualquer dos casos ele não resistiria, e sabia-o, não que alguém abordasse a questão, nem era necessário, ele sabia, já sabia, sempre soubera e sempre ignorara essa certeza, há coisas que nem ao diabo confessamos, esta era uma delas, chegara a hora, ele simplesmente se limitava a aceitar o destino o fim e a morte, nunca sentira medo na vida, só agora, via-o nos seus olhos mudos, na sua boca calada, nos dentes cerrados, no olhar resignado.

 Bande preparou-lhe o cantil, encheu-o de água, municiou-lhe a arma, ajeitou-lhe as costas contra o penedo e entregou-lhe mais três cunhetes de munições, todo o grupo se mantinha em silêncio, cada um olhando para dentro de si mesmo, Mhuanha olhando pra mim, implorando, a sua boca não se abria mas os olhos imploravam, percebi-o e fiz-me desentendido, ele sabe que sou cristão, católico, que a minha doutrina não mo permite ainda que eu seja um ateu herege. Socolo fez-me sinal com a cabeça, percebi pelo seu olhar que não se importaria de ficar, eram amigos desde crianças aqueles dois.

         Sem estrilho e em silêncio fomos partindo em dupla fila indiana, cabisbaixos, pesarosos, todos confiando que Socolo cuidaria dele até ao fim e todos ficámos atentos ao menor ruido, mas não houve ruido, não houve tiro, nem houve qualquer surpresa.

Vinte minutos depois Socolo juntava-se-nos. Ninguém disse nada, ninguém perguntou nada, alguém, não sei quem, nem perguntei, sussurrou entre dentes;

- Misericórdia

Eu ter-me-ia benzido, se tivesse fé.


                   * https://blog.rhinoafrica.com/pt/2018/01/30/guepardo-e-leopardo/

sábado, 11 de junho de 2011

57 - HORROR DOS HORRORES....



UM CAPITULO AO ACASO, UM CASO ENTRE MILHARES...    BAGDAD MARÇO / ABRIL DO ANO DE 2003

No percurso diário, do nosso sítio para os hotéis Palestina/Sheraton, passamos forçosamente, todos os dias, próximo à central telefónica que alimenta esta área da cidade.

É uma entre as muitas centrais desta metrópole gigante, precisamente aquela que nos canaliza para casa os telefonemas diários que, gratuitamente, a organização e o avanço da guerra ainda permitem efectuar.

Porém, o destino fadara mal aquele dia, aquela hora.

O velho autocarro avançava devagar, aos solavancos pelo trânsito super apinhado, como ele, também só velharias.

Repentinamente, à esquerda, estática sob o assobiar de uma sirene, som que em tantos de nós provocava autêntico mas diferenciado reflexo condicionado, uma mãe estaca hirta no meio de uma rua lateral.

Pela mão levava uma criança, caminhavam de mãos dadas, estugando os passos na pressa de cumprir o recolher e evitarem os acidentes dessa rua térrea.

Seriam umas vinte horas, mais minuto menos minuto, pois como veremos umas vezes um minuto não é nada, outras é todo o tempo do mundo que nos resta.

Um clarão, um estrondo enorme.

Depois de dissipada a nuvem criada, uma estrutura completamente esventrada.

Uma menina jaz no chão, a alguns metros.

Em frente, uma parede fica toldada de vermelho vivo, pedaços de mulher juntam-se aos destroços daquilo que fora uma central telefónica, numa rua super movimentada.

Onde somente o trânsito era caótico surgiu, inesperado, o caos.

O autocarro estanca, avança de novo, de novo os solavancos, depois pára.

No lugar forma-se um aglomerado.

A criança ficou estática, muda e de olhos fixos em coisa nenhuma, como se de repente tivesse perdido a visão ou o mundo tivesse deixado de existir para ela...

Instantâneo, o clarão deve ter cegado as duas, o estrondo da explosão, esse, só a criança o terá ouvido, se é que ficou em condições para tal.

Nunca mais nenhum de nós conseguiu qualquer telefonema para casa ou para onde quer que fosse, e perceberão porquê.

O velho autocarro que tomáramos para o nosso sítio, fugira ao trânsito desviando-se para essa rua secundária e esburacada quando, a cinquenta metros, a central telefónica foi atingida por um míssil, cientifica, diligente e cirurgicamente disparado, mostrando-nos que, se estávamos vivos, a esse desvio o devíamos.

Em redor, a destruição descomunal, pára por momentos a urgência de todos, só então reparamos que, nessa rua das traseiras, uma alva parede apresentava um rasto de sangue, terminando sumido na terra seca.

O corpo da mulher seria prontamente recolhido, a cabeça, que se separara do corpo, terá sido enrolada na mesma mortalha.

Uma criança ficara repentinamente órfã, de mãe e do mundo.

Disseram-nos que não chorara, que haveria de passar muito tempo até perceber o que se tinha passado, se é que alguma vez o estado catatónico em que ficara lhe permitiria entender esse minuto.

Talvez não, talvez fosse preferível que não.

Cumprindo ordens de populares que acorreram ao desastre subimos, o autocarro avançou de novo para libertar a rua aos bombeiros entretanto chamados ao local, e, porque um míssil nunca vinha só, pois já por que não raramente um segundo vinha emendar, ou confirmar a eficiência do primeiro, nada melhor que abandonar essa zona, e depressa.

Não por causa dos solavancos, cheio de náuseas, vomitei tudo e todos em redor.

Ninguém dizia nada. Ninguém disse nada.

Como nos habituámos depressa a esta normalidade.

É a guerra, dela nada há a esperar de bom, todo o mal é normal. 

Para trás, mau grado o risco que corriam, ficava um aglomerado que aumentava a cada minuto que passava, bradando a uma só voz contra o céu, esse lugar divinizado, em direcção ao qual ao longo de séculos ergueram as suas preces e agora lhes remetia crime e castigo. Porquê?

O mundo pode ser tão bonito, se quisermos.

Como é grande a força dos poderosos.

Já imaginaram quanto bem podiam fazer pelos mais fracos?

Uns morrem de operações cirúrgicas, outros de operações cirurgicamente planeadas.

Uns de ataques fatais, outros de danos colaterais. Nós portugueses, morremos em listas de espera, é menos chocante.

Sentimos que andamos sempre, se não com a tensão altíssima, no mínimo debaixo de grande tensão.

Quando chegarmos a casa, se chegarmos, todos prometemos tudo fazer para evitar males maiores e ajudar a todos no que puder e estiver ao nosso alcance.

Por aqui vamos fazendo o que podemos, as mais das vezes nada mais que não seja lamentar o que se passa, em especial nos hospitais.

Não entendemos já nem o que os nossos olhos vêem...


in "A Guerra No Iraque" A Experiencia Inesquecível de um Voluntário de Paz Na Tomada De Bagdad "
- Ed NossoFuturo - 2005 - Humberto Baião - ISBN 972-9060-31-2

quarta-feira, 8 de junho de 2011

56 - DA NATUREZA DAS COISAS...



Conheci-a vai para muitos anos. Conheci-a é modo de dizer, na verdade vi-a, integrada numa cena qualquer cujos factos já esqueci, certamente acontecimento já então e sobretudo agora completamente irrelevante para o caso. De momento interessa somente saber que não a esqueci devido ao rosto, de uma beleza impar, mas também ao porte altivo e sobranceiro que ostentava, fazendo lembrar, na época, e em muito devido igualmente a um condicente mas pleno efeito conjugado com o contexto restante, um peito extraordinária mas naturalmente empinado, rijo, cuja projecção não deixava ninguém indiferente, como não me deixou a mim, que nestas coisas não sou nem mais nem menos santos que os outros. Sou homem, com todos os defeitos e qualidades que tal acarreta.

Tanta conversa para quê, perguntar-me-ão?

Tão simples como isto, a coincidência da sua imagem se me ter gravado na mente e, ao longo dos últimos vinte ou trinta anos decorridos, como espectador involuntário ter acompanhado, entre aspas, a sua vida, ou pelo menos as suas acções e posições, desde meras compras num híper a posições de carácter, denunciadoras da sua personalidade, e visíveis nas suas atitudes que, sem que ela o soubesse, e, como atrás afirmei, involuntariamente presenciei.

Todo mundo deixa “pegadas”, aqui no Face então…

E assisti, imensas vezes, à exuberante manifestação da sua natureza selvagem, rebelde, inconformista e espontânea, tanto quanto só a natureza nos permite observar. Tinha muito, muito de tudo, para além da muita beleza um carácter vincado, uma personalidade forte, e o porte, esse, sempre parecendo suster um ego hedonista, narcísico, do género de antes quebrar que torcer.

Não me desculpo, tomara eu tantas notas de cem euros quantas as pessoas que me conhecem sem que eu dê por elas e, sem que me aperceba, me observam e até julguem ou sobre mim ajuízem sem que minimamente note as suas presenças. Toda a gente tem casos idênticos, não serei excepção. É da natureza das coisas manifestarem-se, evoluírem, acontecerem, independentemente da nossa vontade e desejo, como só na pródiga e rica diversidade da natureza sucede.

Mas continuemos com a história, verídica, nem triste nem feliz, da divinal criatura que, a bem dizer contra si apenas a característica de ser uma daquelas mulheres com o cu debaixo dos braços, quero dizer, há as que têm o dito descaído, tronco comprido e pernas pequenas, as normais, em que a proporção é vitruviana, a pessoa terá proporções áureas (há quem cientifica e anatomicamente tal designe de divinas proporções), e há-as como ela, de pernas altas e esbeltas, mas com o dito demasiado subido para o gosto geral. Avancemos, pois esta questão não é mais que mera constatação sem valor de juízo para a meta que pretendo atingir.

Impossível avaliar até que ponto tão fortes traços, fisionómicos e de carácter terão influenciado a sua vida, faço conjecturas que partilho aqui convosco e que poderão estar tão longe da realidade quanto de Urano ou Plutão, e eu, errando, cerzindo juízos de valor, preconceitos, e comprometendo a minha idoneidade, todavia correndo esse risco para que ao menos fiquem V. Exas. conhecendo o modo enviesado como a mente se pode portar e, neste capitulo não serei diferente de muitos de vós, lendo-me neste momento. Porém assumo o erro e o risco, a história, com mais de vinte anos como vos disse, é algo cómico e simultaneamente trágica.

Conheço-lhe um filho, quase homem, mas como e por que nunca lhe conheci marido ? O porte afastou os homens da sua proximidade ? Foi o medo da sua beleza ? Medo da cultura por ela tida ou presumida ? A personalidade forte e propiciadora a choques ? A opção dela de ser mãe solteira ? Dos macacos às aves mais exóticas do reino animal, “homem” incluído, existe toda uma panóplia de rituais de acasalamento a que ela não me parece tenha fugido, o permanente culto do corpo e da beleza, o esmerado cuidado com o vestir, o propositado pretensiosismo no andar e no estar, nos modos, atitudes e posições, ná, ou nã como vulgarmente nós alentejanos dizemos, aqui há gato… ainda que os gatos, pardos como tantas coisas, se insiram na normal natureza delas, coisas, a saber, o bom, o belo, mas também o mau, o feio, o adverso.

Casualmente tive contactos com a dita senhora vai para uns cinco ou seis anos, mas foram contactos de grupo, de trabalho, esporádicos, episódicos, pontuais, largamente intercalados no tempo e meramente impessoais, jamais de lazer, e nunca um contacto pessoal, próximo. Foi sempre simpática, cativante, atenciosa, atitudes ás quais igualmente retribui, mas, tenho que admitir, ou confessar-vos, não me escaparam os inicialmente detectados laivos de sobranceria e pretensiosismo… Problema dela pensei de mim para mim, e segui em frente que atrás vinha gente… Todavia a entendi, como não deixará igualmente de ser da natureza das coisas, rebelde, revoltada, intransigente, frustrada, ressabiada, zangada…

Com quem ? ou contra quem ? Porquê ?

Conheci-a pessoal e uma vez mais casualmente num longínquo dia, apresentei-me, cumprimentei-a, trocámos umas breves palavras de circunstância e baldei-me pesaroso, demasiado perturbado com a natureza que as coisas tomaram.

Que desilusão vista de perto !

Como pode ser falaciosa a natureza !

Escondida por trás de uns óculos cujas lentes teriam cada uma o tamanho de um punho meu, fechado, desvendei então a razão da sua falta às reuniões de trabalho dos grupos nos últimos tempos, eu estranhara a ausência do sorriso radiante, pepsodente, e que lhe era, mais que uma imagem de marca, um atributo divino, ou divinal atributo a que ninguém ficava indiferente e que, com a sua proverbial sabedoria a natureza a tinha bafejado prodigamente.

É da natureza das coisas que tudo vem do pó e ao pó regressará um dia, na natureza nada se perde e nada se ganha, toda a gente o sabe, tudo se transforma, como é da natureza de cada um de nós o modo como lidamos com isso, o intuímos e aceitamos, ou inconformados e recalcitrantes o negamos. Rugas, rugas na testa, nos olhos, nas faces, no pescoço, e nem sei onde mais, terão sido ou estarão na origem da perda do seu sorriso, e então, uma vez mais, fiquei pensando como lidará ela hoje, agora, com isso, habituada que estava a lidar com o seu oposto, uma beleza radiante e contagiante, capaz de deitar aos seus pés os mais renitentes ou refractários ás leis naturais.

Como ? Como lidará ela com tal coisa ?

Por certo tarefa difícil, ingrata mesmo.

E porquê agora a boca descaída, o sorriso forçado, temerá sorrir para não acentuar mais as rugas que lhe sulcam o rosto outrora incomensuravelmente lindo ? Que mistério transformou uma personalidade radiante numa cara fechada ? Onde, agora, os amigos e amigas que anterior e constantemente a rodeavam ? Será verdade que Ele tudo dá e tudo tira ? Estarei a extrapolar e a efabular para além do admissível ? Ter-lhe-á morrido algum familiar próximo e muito querido ? E onde o luto então ? Será somente cansaço derivado das políticas ministeriais e da tumultuosa avaliação dos professores ? Uma paixão impossível ? Uma vida inconsequente ? Desilusão ?

Terei o direito de partilhar convosco os meus pensamentos sobre ela ? E não será isso para me envergonhar ? Confesso, confesso que na realidade preferia não a ter pessoalmente conhecido, preferia ter continuado a ter dela a imagem que tinha, eu morreria feliz, sabendo existir a beleza, jamais me ocorrendo quão falível e efémera ela é ou pode ser. E ela ? Serão essas características da natureza da beleza as culpadas de tão contrastante mudança na sua atitude perante a vida ? Jamais o saberei, jamais.

Quererão vocês dar-me uma ajuda ?

Esperarei os vossos comentários.


:)

terça-feira, 7 de junho de 2011

POUR TOI, MARIE KOVACS *....................................

                      

 Marie Kovacs é francesa, 68 anos, professora aposentada, casada há muito com um português que, segundo ela, acolhera no seu seio na década de sessenta e quando nem sabia, em Paris, onde cair morto.

Deixou filhos em França e veio com o seu Aníbal viver a reforma em Portugal, cuja gastronomia aprecia e onde o sol, a julgar pelo que diz na sua carta, a maravilha.

Todavia compreendo as razões de queixa que me apresenta, um casual mês “de vacances au Portugal “ não era o mesmo que os três anos que já leva entre nós. Um mês não chega para apreciar este torrão à beira-mar plantado, três anos é tempo suficiente para lhe descobrir as mazelas.

Da sua carta roubo uma frase, uma única, só, que não expressando totalmente o que lhe vai na alma, avivou em mim recordações daquelas que nos fazem deixar cair uma lágrima.  “ Et le Théâtre mon Dieu ! le théâtre “ !

Esta simples frase, nem por sombras a mais expressiva da sua “lettre”, (fala e lê bem o português, mas não o escreve), deu o mote a esta crónica e pretende expressar a Marie a minha compreensão pela situação que está vivendo entre nós, a minha solidariedade e simultaneamente um louvor à sua terra.

Corriam os finais dos anos oitenta, eu e meu marido passeávamo-nos em Paris, no “Bois de Bologne”, quando, na sua orla, do lado em que o mesmo confina com uma moderna zona residencial, se não erro “La Defense”, descortinámos invulgar movimento em redor de uma “Église”.

Do lado do bosque, caravanas, parecendo pelo seu exotismo, pelo tipicismo dos carros de muares, pela exorbitância das cores e das músicas um acampamento de saltimbancos.

Na contra-mão do mesmo “boulevard”, à porta da igreja, de um lado enorme cartaz pintado, do outro uma bilheteira em madeira, tipo barraca e qualquer deles rivalizando nos desenhos e cores com o alegre carnaval das caravanas. Bem anunciado; “Le Théâtre des Moliéres”, com espectáculo a decorrer na igreja (?), e cujo início se processara, segundo o horário afixado, há um quarto de hora.

Na bilheteira ninguém (viríamos a pagar somente no fim o que cada um quis), curiosos entrámos, a lotação estava a meio, imperava o silêncio, todos pareciam recatados, mais parecendo em oração que esperando uma peça que não recordo bem o nome mas aludia a qualquer coisa como “Le Monde réel c’est ici”. Única nota discordante, o trajar de alguns dos espectadores, expectantes, fugia em certos casos à normalidade vigente, ou por algum absurdo, ou por excentricidade. Não percebi mas calei, fui esperando, a igreja enchendo, contrastando a solenidade dos presentes com o inusitado movimento, som e cor que lá fora bradava aos céus.

Quando o cerimonial começou reparei que se tratava de um espectáculo inusual. O coro, de uma heterogeneidade de idades, vestes, sexos e raças que só tinha paralelo com o eclectismo que assinalei na assistência presente, começou com o que me pareceu “ A Marselhesa”, não tendo ficado a saber de onde e como foram aparecendo, aos poucos, nas suas mãos, os mais díspares instrumentos musicais.

Levantei-me, desviei-me um pouco para a coxia, na tentativa de observar em melhor ângulo determinado pormenor.

Um chefe de família e sua prole, (espectadores atrasados, pensei), ao encontrar-me no meio da coxia estendeu-me a mão e deu-me dois francos !, era o que faltava ! então não fui confundida com o sacristão, ou o arrumador ?

Debalde tentei devolver-lhe as moedas, sorria para mim, um sorriso do tamanho do mundo, de quem achou imensa graça (não sei a quê), recusou a devolução e fez-me sinal, indicador nos lábios, que me calasse, o que fiz.

Quando pretendi reocupar o meu lugar, sentei-me inadvertidamente no colo de um cavalheiro que sub-repticiamente ocupara o espaço por mim deixado vago ! Sem barulho, senti contudo pelo seu sorriso que ria a bandeiras despregadas, amuei e fiquei de pé, não daria àquele palhaço o prazer da minha atrapalhação.

Palhaço sim, pois como vestia mais parecia um palhaço !

No entretanto o coro avançara, tocou / cantou  Charles Aznavour, Jacques Brell, Maurice Chevalier, Edith Piaf, outras, muitas e alegres canções típicas francesas, abandonou a sua postura, e apercebi-me então que entre o coro e a assistência havia troca de lugares, e de papéis !

Dei-me conta mais tarde que talvez um quarto da assistência fazia parte da trupe, entre eles o tal chefe de família e o citado palhaço !

Assistência e personagens haviam-se aos poucos fundido. Como cá, se fez lá aquela fila indiana que dançamos ao som de “ O comboio apita, apitou três vezes...”. O espectáculo transbordou para fora da igreja, percorreu as rua limítrofes, viveu, conviveu e ligou-se aos passantes, passeantes, habitantes e operários encontrados. A todos arrebatou e arrebanhou.

Um senhor sentado à beira do bosque gritou comigo (eu ia na marcha), levantou-se irado, ameaçou-me com uma cana, que lhe tirei das mãos.

Noutra galáxia eu,  gritei-lhe; s'asseoir !, sentou-se, - Em pé !, levantou-se !

Abalei a correr, cantando alegre, para não perder a marcha, e surpreendida com a minha ousadia. Alguém me tirou a cana, deram-me uma bandeira bem grande que de imediato me lembrou um espectáculo / bailado chinês de “ Bandeiras Vermelhas”, que vira em 75 em Moscavide no auge do PREC. A bandeira virou gaita de foles !

E eu que não sabia tocar, toquei, eu que não sabia bailar, bailei ! eu que não sabia cantar, cantei !

Quando tudo terminou e reencontrei o meu marido, perdido como eu no seio de tamanha multidão, chorei ! Peguei-lhe nas mãos, chorando, e gritei-lhe; 

- Berto ! Isto é teatro !

Apaixonei-me logo ali pelo teatro, de lágrimas nos olhos, emocionada, teria abraçado uma carreira se mo tivessem pedido. Metade daquela gente misturara-se secretamente entre todos nós para nos divertir, para nos dar momentos inesquecíveis, vívidos.

Não fui ao teatro, fiz teatro !

Teatro que não sei classificar, se de revista, musical ou de outro cariz. O cartaz tinha razão; “ La realité c'est ici”, a realidade esteve ali !

Talvez compreendam agora porque mui raro vou ao teatro, custa-me  desvirtuar a ideia linda que tenho do teatro.

O teatro é a vida, eu fiz teatro, eu sou vida.

Como a compreendo Marie.

* In Diário do Sul, Kota De Mulher, – Évora,  por Maria Luísa Figueiredo Nunes Palma Baião, publicado em fins de 2005 princípios de 2006