O problema era mesmo o cheiro a sangue, se nada pior acontecesse a diversa
bicharada deambulando faminta cinco milhas em redor dele se encarregaria de lhe
dar fim, não de o estraçalhar pois estraçalhado já ele estava.
É daquelas coisas da vida que pensamos nunca virem a
acontecer-nos, um tipo esquiva-se a morteiradas, bazucadas, paludismo e o que mais calhar,
incluindo rajadas atiradas em jeito de despachar fogo e a que nos safamos como
quem ginga com a sorte e, dias depois, arma ao ombro e julgando longínquo o perigo,
avançando descontraidamente por uma picada, pisa-se uma mina, clic e pum !
Afinal não acontece somente aos outros, que merda
de sorte, estou fodido, e agora ?
Se não fossem os bichos a dar com ele e a dar conta
dele seriam os sul-africanos, por duas vezes já tínhamo-nos conseguido esquivar
aos hélis, uma das vezes quase nos enterrámos na areia para não sermos vistos, sabíamos
que não iriam desistir de nos procurar, tínhamo-los deixado suficientemente
enraivecidos para que não pusessem de lado o prazer duma vingança a quente, o Mhuanha teria que desenvencilhar-se
sozinho, que optar, que escolher, desde sempre o sabíamos, a guerra é feita de
escolhas, qualquer guerra, nada de debates, de burocracias, nem opções inadiáveis,
é antes feita de opções imponderáveis, imediatas, como no velho oeste, quem não
sacasse primeiro morreria às mãos do inimigo.
Sabia-o qualquer de nós e sabia-o o Mhuanha,
a vida decide-se ao minuto, um tiro certeiro do guerreiro e é a glória, um
passo mal dado e é a morte do artista. Desfeito já ele estava, encostado a um
penedo baixo, segurando com as mãos as tripas, ora apertando o garrote ora relaxando-o,
enxotando moscas e mosquitos, leões, chitas, guepardos* hienas e mabecos seriam
mais difíceis de enxotar, e se aparecessem os sul-africanos haviam de gostar de
ouvi-lo falar, obrigá-lo-iam a falar, portanto o melhor seria guardar para si
mesmo a última bala, se para a usar lhe dessem tempo e oportunidade…
Isso, tempo, o tempo seria doravante o
seu pior inimigo, a terra, já de si avermelhada, escurecia e criava crostas
empapada de sangue, a mesma terra que, como uma compressa lhe secava as entranhas
expostas e lhe escondia a gravidade da situação em que se encontrava,
tornando-a mais aceitável aos seus próprios olhos. Mhuanha sabia tão bem quanto
nós não haver maneira de o levar dali até à base, muito menos chegar lá vivo
caso teimássemos ou conseguíssemos carregá-lo, esperavam-nos pela frente três a
quatro dias de marcha, a pé, isto se o despiste dos sul-africanos não nos obrigasse
a rodeios que acrescentassem a esses mais dois ou três, em qualquer dos casos
ele não resistiria, e sabia-o, não que alguém abordasse a questão, nem era necessário,
ele sabia, já sabia, sempre soubera e sempre ignorara essa certeza, há coisas
que nem ao diabo confessamos, esta era uma delas, chegara a hora, ele
simplesmente se limitava a aceitar o destino o fim e a morte, nunca sentira
medo na vida, só agora, via-o nos seus olhos mudos, na sua boca calada, nos
dentes cerrados, no olhar resignado.
Bande preparou-lhe o cantil, encheu-o de água,
municiou-lhe a arma, ajeitou-lhe as costas contra o penedo e entregou-lhe mais três
cunhetes de munições, todo o grupo se mantinha em silêncio, cada um olhando
para dentro de si mesmo, Mhuanha olhando pra mim, implorando, a sua boca não se
abria mas os olhos imploravam, percebi-o e fiz-me desentendido, ele sabe que
sou cristão, católico, que a minha doutrina não mo permite ainda que eu seja um
ateu herege. Socolo fez-me sinal com a cabeça, percebi pelo seu olhar que não
se importaria de ficar, eram amigos desde crianças aqueles dois.
Sem estrilho e em silêncio fomos partindo em dupla fila
indiana, cabisbaixos, pesarosos, todos confiando que Socolo cuidaria dele até
ao fim e todos ficámos atentos ao menor ruido, mas não houve ruido, não houve
tiro, nem houve qualquer surpresa.
Vinte minutos depois Socolo juntava-se-nos.
Ninguém disse nada, ninguém perguntou nada, alguém, não sei quem, nem
perguntei, sussurrou entre dentes;
- Misericórdia
Eu ter-me-ia benzido, se tivesse fé.
* https://blog.rhinoafrica.com/pt/2018/01/30/guepardo-e-leopardo/