domingo, 2 de setembro de 2012

124 - ............. MADRUGADOR ... MUITO ................

 - “ Muito madrugador ! “ – disse ela ao aperceber-me a pé, tão cedo, num dia lindo de sol fresco e suaves nuvens, tipo sombreiro… Mal adivinhava que a minha matinal presença se devia a uma chegada tardia, e me preparava para o banho e descansar nos lençóis o peso das pálpebras, o cansaço do corpo, os segredos da mente e as divagações do espírito. Não duraram muito, nem o meu descanso nem a minha paz.

A minha Mimi não tardou a entreter-se pulando-me em cima, ritual habitual e que só pára quando me levanto e lhe renovo a ração de granulado na gamela e o patê fresco num pires bem lavado, caso contrário nem lhe toca… Basta-lhe adivinhar uma nesga de claridade nas persianas e o seu reflexo é despoletado, só desarmando quando consegue acordar-me e ver-me levantado para a servir. É uma gata manhosa da qual nada consigo fazer. Em pequena não consegui, e agora, na plenitude da sua juventude e irreverência, muito menos consigo. Mais perseverantes e teimosas que ela só outras gatas que passaram pela minha vida. Devia ter adoptado um cão. Não por acaso é esse o fiel amigo do homem.

Razão teve a minha vizinha de cima. Tem um cão minorca que é o cúmulo do bom comportamento. A dona sai de casa cedo para enregar ás oito, deixa-o numa cestinha com uma peça de roupa dela que o conforte e aqueça e dali não se mexe até à hora de almoço, em que a dona vem aos morfes e o vai passear pá mijinha da hora. À tarde o processo repete-se até a dona regressar, lá pelas vinte ou vinte e uma horas, dependendo do dia e do turno em que labuta. Pasmo ver um cão tão ladino e arisco com comportamento exemplar, vai daí nutro pela minha vizinha uma admiração de espantar.

Admiração aliás de todo merecida. Indo já no terceiro ou quarto marido, pelo menos este último, um capitão do exército, o único que lhe conheci, está tão bem adestrado como o cãozinho minorca. Nas folgas desencontradas, deixa-o na cama o dia todo, com uma ida à varanda para sugar um cigarro, ao almoço, e espreguiçar os braços ao fim da tarde. Só não sei, mas imagino, que também o deixe com uma peça de roupa que o conforte e aqueça até ela voltar, e aqui, se me permitem a ousadia, imagino a lingerie que devia ter ido para a maquina de lavar mas cuja limpeza foi adiada devido a motivo de força maior…

A cada um as suas taras, vivemos numa democracia, e desde que a liberdade individual não colida com a liberdade dos outros não vejo motivos para lapidação… 

A este propósito lembro aqui a tara do meu amigo Maurício, “ NÃO, NÃO É O QUE PENSAM… * tara a que ele foi dando continuidade sem que daí tenha vindo mal ao mundo, a não ser para ele mesmo que nem sei como consegue dormir imerso naquele odor grosso e forte, minado de feromonas prontas a assaltar a índole mais bem treinada e a dominar o ego mais convencido, por exemplo o do Narciso… ehehehehe !!!

É domingo, as pálpebras pesam-me. O vizinho de cima acabou de sugar o cigarrito habitual. A Mimi está tratada, agora desapareça, vá caçar ratos.

Eu vou xonar, estarei a dormir antes que a cabeça tombe na almofada.

Tentarei caçar as memórias que o R.E.M. fizer correr durante…

Se as não esquecer prometo contar-vos as mesmas.

Bjssssssssss

Xau !

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

123 - O AGNELO DO 203 ............................................



Somente o ar festivo e aquela maralha ululante dentro do carro tornavam menos tétrico o negro daquele antigo modelo, mal estimado, barulhento, de ar ameaçador e que, lançado a grande velocidade, excitava a atenção de todo o bairro.

Eu hesitava entre a partilha de júbilo do Sezídio e a surpresa condenatória de todo aquele escabeche, como se entre a criança que largava a pele e o jovem que a não vestira ainda. Contudo, apercebia-me perfeitamente da necessidade de mestre Agnelo em mostrar o carro, coisa que raríssimos possuíam, ainda que um desconjuntado modelo 203 da Peugeot, única prova provada do seu recente êxito em terras de França, onde, como por cá fizera a vida inteira sem qualquer proveito, pintava e caiava “maisons” a preço de ouro.

A desforra era pois compreensível, e as viagens festivas de toda a gente naquele carro que acelerava doido pelas ruas do bairro tornavam-se admissíveis. Até a senhora D. Leonor, mãe do Flávio, vizinha de portas meias de mestre Agnelo foi honrada com três ou quatro daquelas voltas, voltas e alegria que a uniram com D. Julieta, vizinha e mulher do mestre, e que por mor deste ou pela falta dele tantas vezes se tinham zangado e reconciliado as duas.

O Sezídio era por aqueles dias adulado por todos nós. Não só porque perderíamos para sempre a sua amizade, na esteira do sucesso de mestre Agnelo por aquelas terras da estranja, já que toda a família retornaria com ele, até o pequeno Valdemar que nada entendendo devido à tenra idade, havia quase uma semana que nem dormia nem fechava a boca de espanto devido a tanta traquitana que testemunhava, nem a limpava do castanho guloso do muito chocolate que o pai trouxera e o Sezídio perdulariamente distribuía por todos nós.

Mestre Agnelo orientava a vidinha. Na taberna do velho Gerardo não se cansava de apregoar aos quatro ventos o novo mundo, a riqueza ao alcance de todos, o trabalho em barda e bem pago, e, à sorrelfa, lá ia largando baixinho o alívio que seria livrar os filhos da guerra, que ele sofrera na Guiné e achava jamais teria fim.

Por causa dessas e de outras mestre Agnelo viu-se obrigado a regressar a França à pressa, mais de uma semana antes do premeditado, e nunca entendi se por isso, levou com ele a senhora D. Leonor, não fosse a necessidade assalta-lo lá.

Certamente o que sofrera vez nenhuma contaria a alguém, nem disso havia necessidade, os anos de miséria conhecidos cá ninguém estava interessado em lembrar, e eu apostava que muito menos ele, a quem agora o orgulho se estampara na face.

O Sezídio foi só o primeiro, depois dele os irmãos Espanhol, o Barreto, o Tita, o Januário, o Baltazar, o Balixa, o Altino. No espaço de um ano o bairro ficou reduzido a metade e a malta nem brincava, com saudades dos idos e falta de gente para animar as brincas e os jogos.

De vez em quando uma cara, um episódio, acodem-me furtivos à memória. Não os sei se vivos se mortos, rememoro o que a sua fuga evitou, sim, porque foi uma fuga, uma fuga para um lugar com futuro assegurado.


Sem que o queira comparo aqueles dias com os de hoje, então fazíamo-nos homens demasiado cedo, hoje nem deixam que o sejamos. A democracia, essa, continua como então, longe, muito longe...

           

sábado, 4 de agosto de 2012

122 - UMA ESPLANADA SOBRE O PASSADO ...



Ondas de calor reverberam no prolongamento deste largo lago que a esplanada toca. São ondas com sabor a Alentejo e, de repente, eu sentado lado a lado com o Leontino(1), balançando os pés na água, equilibrando-nos os dois naquele tronco caído enquanto ele, lembro-o como se fosse hoje, graceja para mim que, se caísse de costas não se mataria como o tal velho na cadeira, mas decerto se afogaria pois o lago ali era fundo e nunca aprendera a nadar.

Era aliás, de nós todos, o único que não o sabia fazer mas, muitos antes dele, e alguns bons nadadores, tinham ficado enredados naquele pego da Guadiana, cavado na dobra do rio, em cotovelo, provocando essa volta azo a um curso impetuoso no inverno mas enganadoramente manso no verão, diria mesmo assustadoramente manso, calmo e traiçoeiro.

Nesses tempos recuados, uma vez o repasto enfardado, mal a tarde acalorava debandávamos pela hora da esturrina, galgando léguas, montes e cabeços, alinhando tropelias e digerindo o almoço. Por isso, uma vez chegados ao pego, o último a entrar na água era maricas e nem as roupas tirávamos já que o sol em pouco tempo se encarregaria de as pôr capaz de se segurarem em pé.

Galgados cabeços, pilhados ninhos, lapidados varanos, roubados marmelos e assaltadas colmeias nos montados, o nosso primeiro momento zen era aquele em que entrávamos na água, e depois quando o cansaço nos vencia e deitava por terra. Esses dois momentos eram a nossa paz dos deuses. A pegada ecológica era ainda uma ficção distante, mas o rasto que deixávamos podia ser seguido à distância por um cego… Outros tempos.

E, desta esplanada, olhando este mar sonso a perder de vista que malmequeres e papoilas pintam, lembro aquela malta que somente em sonhos, tornados bocados de bonecos mal delineados em cor sépia, fragmentos de mim, acerca dos quais acredito o futuro me trará cada vez mais saudosas e melhores recordações.

E à minha direita no areal o Inácio da Granja, de sardas e modos repentinos, que me roubaria a Lúcia das tranças e com ela zarparia para a capital. O Sezídio(2), sempre de botifarras, que o pai lhe comprava três ou quatro números acima para que servissem mais tempo e que, talvez por isso fosse o terror dos jogos e um excelente avançado que levava tudo à frente e à sarraifada. O Xico Inácio(3), alto alourado e um rapagão, cuja lembrança regurgita a luta de titãs com o Tonicha(4), do Reguengos, o único que era rico, por os pais terem uma mercearia e nos chamava “os langonhas” porque nós só uma aguadilha e ele já se vinha a sério, no que era singular, pois por tal se arvorava no direito de comandar o pagode. Bem fez o Xico Inácio que lhe pôs as barbas de molho obrigando-o a engolir a arrogância.

E o Cunha(5) ! Grande grande e que já trabalhava deveras ! Ganhava mais que a mãe ! Bem lembro o gabarolas ! Atrás de todos, espojados na areia da Guadiana, com umas mãos que mais pareciam barbatanas, o “mama na burra”, exibindo para todos o seu cacete que mais parecia o de um burro…  O Tonico, o ás da fisga e o líder desde que o grupo do Tonicha deixara de ser maioritário. Isto porque à sombra da fábrica de papel o montante e a jusante do areal tinham cada um o seu gangue, cada qual mais permeável ás influências e pressões da liderança. Gaiatos...

O matreiro do Flávio(6) e o manhoso do “Tói cadela”(7) só tinham paralelo na astúcia do “Luís índio”(8) e do “Junça”(9), mais finos todos e cada um deles que a família do Manel Jaquim(10) e do Gregório(11) juntas, ou até que os irmãos espanhóis(12).

Balanço-me, a brisa traz-me as lembranças, agora em catadupa, em ondas que se atropelam, sucessivas, encadeadas.

Salpicos.

Rumores.

Uns perdidos para sempre em França, Suíça, em Lisboa.

Já então éramos perdulários no esbanjar do tempo e da excelência do lugar. Esta terra, agora este mar largo, este lago e estas ondas que o vento encapela só permitem o ir, nunca o estar, menos ainda o ficar.

Foram.

Foram-se, e na sua peugada estas reverberações que o calor cozinha, estas recordações que a memória cerze e me crestam as horas à beira - esplanada deste lago onde desagua o rio de brumas do meu passado.

O “Tim- tim“ e a “Violeta” meus fiéis cães que nunca me largavam.  A “Shamira”, melhor que muito boa gente e junto a cuja sepultura já uma ou duas vezes meditei. Os barcos baloiçando-se no horizonte sem que eu os veja. O iodo que o vento não arrasta. As falésias que não há. Caras cujas feições a custo mantêm o traço. O futuro que acredito me traga cada vez mais e saudosas recordações.

A canícula apertando, eu galgando montes e cabeços antes do almoço. O último a almoçar é maricas. Sorvo o mel nos favos e os ovos de melro por uma palhinha. Um lagarto sangra. Metade das caras e dos nomes esquecidos. O Flávio apanhou dez cobras de água.  O Grilo é torneiro mecânico.  O “Sarol” professor de ginástica. O Luís da Granja foi para a tropa(13). A cerveja morta.

- Mais alguma coisa chefe ?

- Obrigado. 

- Traz a conta Calado.     *

               

*  NOTAS :

(1)  Falecidodevido ao Covid após toma da 1ª vacina.

(2)  Herói nacional. Os seus restos mortais encontram-se na terra que adoptou como sua e onde casou com uma natural de Madina do Boé, Guiné, onde tombou em Janeiro de 74.

(3)  Residente em Mourão. Falecido em 2020 após um AVC.

(4)  Após o serviço militar fixou residência em Malange, onde o vi pela última vez em 1973.  Não sobreviveu à guerra civil angolana. 

(5)  Costumava visitá-lo no Algharve, Lagos, onde era gerente duma importante unidade hoteleira. Reformou-se há cerca de 2 anos.

(6) Formara-se em Engenharia Civil, deu o salto para França em vésperas de mobilização.  Nunca mais soube nada dele.

(7) Emigrou para a Suiça  um mês antes do 25 de Abril. Há 2 ou 3 anos retomei contacto com ele graças ao Facebook. Foi gerente de Hiper. Reformado. Sem raizes em Portugal. 

(8) Foi professor, viveu amancebado com várias colegas, sempre de muito mais idade que ele. (Com uma de cada vez claro). Actualmente reformado vive com uma idosa podre de rica que fora sua colega e que leccionara Artes Visuais. 

(9)  Junça, descobri-o casualmente uma vez depois de visita 
à Feira do Livro de Lisboa e,m 2002. Tinha uma pequena galeria de artesanato e pintura na Madragoa. Não deixou xontacto. Desapareceu misteriosamente dois anos depois, ele e uma colombiana com quem vivia. 

(10) Operário soldador especializado, soube que andava pelas arábias, Alemanha, França, soou-me ter-se radicado em Israel. 

(11) Foi cameraman da RTP, depois da TVI, depois em Angola após a independência deste país e posteriormente de uma agência de noticias estrangeira, dele se diz ter tombado no conflito do Kosovo. 

(12) De Vila Nueva D'El Fresno. Nunca mais soube nada deles. 

(13)  E nunca mais soube dele nem da Lúcia das lindas tranças. 





terça-feira, 24 de julho de 2012

121 - CULTURA ..............................

CULTURA

Falar de cultura implica uma complexidade mui idêntica à multiplicidade de conexões que o próprio termo implica.

CULTURA…

Podemos não a apreciar em muitas das suas vertentes.

Podemos ignorar muitas das suas diversas formas e manifestações.

Podemos até considera-la Kitsch e, ou, nos antípodas dos nossos padrões.

Mas podemos, sempre que possível, aprecia-la, critica-la, e sobretudo produzi-la, já que ela se enquadra

num limitado mas múltiplo campo de actuação humana que não nos está individualmente vedado.

Produtores então, importa divulga-la, faze-la compreender, entender e aceitar pelos outros e, concomitantemente receber os louros, os proventos e também as criticas mais funestas.

E regressamos ao princípio, porque em democracia, enquanto fazedores de cultura, todos os caminhos nos são permitidos.

Faze-la.

Goza-la.

Deprecia-la.

Nega-la.

Recusa-la.

Vende-la.

Submeter-se a ela, à nossa, ou arruma-la num baú…

Depois ?

Então, depois e só depois, estaremos aptos a julga-la e a condena-la.

Antes disso, tudo que possamos fazer é bater com a cabeça na parede e vazar as nossas pulsões.

A cultura foi feita precisamente para isso, expressar e vazar pulsões, sentimentos, estados de alma.

Agora já poderemos então colar, colocar, meter, aplicar, um penso rápido…

Para finalizar, mero exercício, que podes dizer sobre ou acerca da expressão : “ a mão que embala o berço… ? “

Falar de cultura implica uma complexidade mui idêntica à multiplicidade de conexões que o próprio termo implica.

CULTURA…

Podemos não a apreciar em muitas das suas vertentes.

Podemos ignorar muitas das suas diversas formas e manifestações.

Podemos até considera-la Kitsch e, ou, nos antípodas dos nossos padrões.

Mas podemos, sempre que possível, aprecia-la, critica-la, e sobretudo produzi-la, já que ela se enquadra

num limitado mas múltiplo campo de actuação humana que não nos está individualmente vedado.

Produtores então, importa divulga-la, faze-la compreender, entender e aceitar pelos outros e, concomitantemente receber os louros, os proventos e também as criticas mais funestas.

E regressamos ao princípio, porque em democracia, enquanto fazedores de cultura, todos os caminhos nos são permitidos.

Faze-la.

Goza-la.

Deprecia-la.

Nega-la.

Recusa-la.

Vende-la.

Submeter-se a ela, à nossa, ou arruma-la num baú…

Depois ?

Então, depois e só depois, estaremos aptos a julga-la e a condena-la.

Antes disso, tudo que possamos fazer é bater com a cabeça na parede e vazar as nossas pulsões.

A cultura foi feita precisamente para isso, expressar e vazar pulsões, sentimentos, estados de alma.

Agora já poderemos então colar, colocar, meter, aplicar, um penso rápido…

Para finalizar, mero exercício, que podes dizer sobre ou acerca da expressão :

“ a mão que embala o berço… ? “

segunda-feira, 18 de junho de 2012

120 - SOBRE TU CARNE TRIGUEÑA *......................


 Sobre tu carne trigueña – Mista / tela 100x200 cm - Àisar Jalil Martinez

Dei com ele por mero acaso numa daquelas pesquisas aleatórias na net. Declaro-vos que já nem o recordava. Impressionou-me exactamente há dez anos quando, numa digressão mundial, honrou Évora com a sua presença e uma impressionante exposição. Foi oportunidade que não descurei, há que não perder ocasião de olhar uma outra panorâmica do mundo, coisa que a arte jamais deixará de nos propiciar. No caso, uma visão além Atlântico, de que deixei testemunho, como poderão ver nas linhas que se seguem e que foram publicadas no Diário do Sul em principios de 2002 .

Confesso que recebi um choque emocional, fui apanhado desprevenido pelo impacto projectado pelas belas imagens de um artista ímpar, suficientemente sabedor para com grande mestria ter agarrado perfidamente o visitante mais distraído. Apesar do tempo nessa manhã, que ainda recordo, chuvoso, a visita ao Palácio de D. Manuel para ver com os meus olhos a exposição “ Sobre tu carne trigueña “, de Àisar Jalil Martinez, valeu a pena.

Nascido em Cuba, o que me suscitou alguma desconfiança, Àisar, recordo, apresentou-me ou melhor, presenteou-me com cerca de quarenta telas, todas elas fortemente expressivas, provocatórias, e que na realidade me deram do “ homem “ uma visão muito redutora… Não contestei. Se esta sociedade não é matriarcal, tal sucederá porque a “ mulher “, as mulheres, não fazem ou não sabem fazer uso do seu potencial persuasivo e dissuasor.

Mas não as “ mulheres “ de Àisar, estas, não só dominavam toda a exposição, como todos os homens. Desnecessário dizer que cheguei ao fim do périplo com a emoção acumulada e a tensão altíssima, e, literalmente, insolentemente apanhado desprevenido por aquela alucinação. Vindas do Caribe, as cores não teriam podido deixar de ser calientes, com um contraste pictórico muito vivo e acentuado. Àisar atirou-me repentinamente á cara com uma sensibilidade levada ao extremo, tão trabalhada e polida que se convertia em espelhos que me interrogavam e incomodavam.

Latinos que somos, todos, machistas por inerência, em maior ou menor grau, senti-me mais que provocado pelo traço do artista, quiçá ofendido. No mínimo a tentação será para dizer que me senti despido… Lembro que uma critica colocada no folheto de apresentação sublinhava, ou colocava em relevo a relevância da teatralidade impregnada às mulheres interpretadas pelo pintor.

Teatralidade ? Quando em noventa por cento dos casos são elas a comandar o homem ? Abordagem da problemática feminina ? Não brinquem, lembro bem Caballo rojo !, Oh vida ! E ainda hoje afirmo que os títeres, comandados, quais marionetes, precisamente por belas mulheres, eram os homens ! Reparei especialmente em Eva, cujo símbolo do pecado repousava a seu lado, símbolo do pecado ou fruto da dominação feminina ? Recordo a mulata de carne trigueña que dava vida ao cartaz da exposição e se metamorfoseava em leopardo…

Arquétipos ou reais, as imagens de Àisar, parecendo ir contra toda a lógica, muito pelo contrário encerravam uma sabedoria pelo pintor demonstrada soberbamente. Ao entrar na exposição entrei num mundo surrealista, em que transgressão e tragédia tomavam sobre o real que entendemos, ou queremos entender, uma ascendência expressionista e marginal.

Se vi a cidade por detrás dos personagens ? Sim vi ! Tratava-se claramente de Habana, la vieja, o que para mim foi absolutamente secundário, mas me autorizou a fazer-me outra pergunta: E quem terá visto, reparado, na forma como o homem era retratado nessas telas ? De faunos a bestas, de exóticos a luxuriantes seres, em quase todas elas a imagem do homem era abordada na sua vertente animalesca, fossando entre ninfas e divas, numa promíscua sensibilidade liminarmente transbordante de erotismo.

Os nossos medos, mitos e tradições mais antigas, do lobisomem ao íncubo, estavam ali prostrados mas actuantes, fazendo-me, fazendo sentir ao visitante quanto de animal vive em nós (ainda?), e o quanto de grotesco marca a nossa libido. Sobre todos aqueles animalescos seres que representavam o homem, pairava a mulher, quer no plano geométrico quer no simbólico. Por certo Àisar deve muito às mulheres, via-se em todos os seus quadros que lhes estava reconhecido.

Com uma eficácia mais simbólica que linguística, a mulher era endeusada por aquele cubano cujo curriculum foi o melhor convite para que tivesse corrido a ver as suas telas. Por mim teria comprado Eva, outros certamente teriam feito outras opções, os preços, esses, estavam claramente acima da minha modesta bolsa…
Quem tivesse querido perder algo de muito valioso, bastar-lhe-ia não ter ido ver aquela maravilhosa magnífica e estulta exposição, foi a sensação que recordo ter de lá trazido. Quanto ao autor, hoje encontra-se na galeria dos meus amigos, e honra-me com a sua amizade. Obrigado Àisar Jalil Martinez !  

* Nota: este texto já fora publicado no início de 2002 nas páginas do Diário do Sul.

https://www.facebook.com/media/set/?set=a.398281196874977.80203.100000792991962&

https://www.facebook.com/aisar.jalilmartinez/videos/vb.743573867/10153400704078868/?type=2&theater

https://www.facebook.com/aisar.jalilmartinez/videos/vb.743573867/10154787699968868/?type=2&theater

https://www.facebook.com/aisar.jalilmartinez

Eva – Oleo / tela – 110x70 cm - Àisar Jalil Martinez
Bicitaxi encantado – Óleo / tela – 80x120 cm - Àisar Jalil Martinez
Caballo rojo – Óleo / tela 80x121 cm - Àisar Jalil Martinez
Oh vida ! Óleo / tela 69x49,8 cm - Àisar Jalil Martinez
Paz – Mista / papel 61x49,6 cm - Àisar Jalil Martinez
Onírica – Óleo / tela 100x80 cm - Àisar Jalil Martinez
Uidaeysi – Óleo / tela 100x80 cm - Àisar Jalil Martinez
Rámon y Julita – Óleo / tela 100x80 cm - Àisar Jalil Martinez
Sobre tu carne trigueña – Mista / tela 100x200 cm - Àisar Jalil Martinez