Somente
o ar festivo e aquela maralha ululante dentro do carro tornavam menos tétrico o
negro daquele antigo modelo, mal estimado, barulhento, de ar ameaçador e que,
lançado a grande velocidade, excitava a atenção de todo o bairro.
Eu
hesitava entre a partilha de júbilo do Sezídio e a surpresa condenatória de
todo aquele escabeche, como se entre a criança que largava a pele e o jovem que
a não vestira ainda. Contudo, apercebia-me perfeitamente da necessidade de
mestre Agnelo em mostrar o carro, coisa que raríssimos possuíam, ainda que um
desconjuntado modelo 203 da Peugeot, única prova provada do seu recente êxito
em terras de França, onde, como por cá fizera a vida inteira sem qualquer
proveito, pintava e caiava “maisons” a preço de ouro.
A
desforra era pois compreensível, e as viagens festivas de toda a gente naquele
carro que acelerava doido pelas ruas do bairro tornavam-se admissíveis. Até
a senhora D. Leonor, mãe do Flávio, vizinha de portas meias de mestre Agnelo foi
honrada com três ou quatro daquelas voltas, voltas e alegria que a uniram com
D. Julieta, vizinha e mulher do mestre, e que por mor deste ou pela falta dele
tantas vezes se tinham zangado e reconciliado as duas.
O
Sezídio era por aqueles dias adulado por todos nós. Não só porque perderíamos
para sempre a sua amizade, na esteira do sucesso de mestre Agnelo por aquelas
terras da estranja, já que toda a família retornaria com ele, até o pequeno
Valdemar que nada entendendo devido à tenra idade, havia quase uma semana que
nem dormia nem fechava a boca de espanto devido a tanta traquitana que
testemunhava, nem a limpava do castanho guloso do muito chocolate que o pai
trouxera e o Sezídio perdulariamente distribuía por todos nós.
Mestre
Agnelo orientava a vidinha. Na taberna do velho Gerardo não se cansava de
apregoar aos quatro ventos o novo mundo, a riqueza ao alcance de todos, o
trabalho em barda e bem pago, e, à sorrelfa, lá ia largando baixinho o alívio
que seria livrar os filhos da guerra, que ele sofrera na Guiné e achava jamais
teria fim.
Por
causa dessas e de outras mestre Agnelo viu-se obrigado a regressar a França à
pressa, mais de uma semana antes do premeditado, e nunca entendi se por isso,
levou com ele a senhora D. Leonor, não fosse a necessidade assalta-lo lá.
Certamente
o que sofrera vez nenhuma contaria a alguém, nem disso havia necessidade, os
anos de miséria conhecidos cá ninguém estava interessado em lembrar, e eu
apostava que muito menos ele, a quem agora o orgulho se estampara na face.
O
Sezídio foi só o primeiro, depois dele os irmãos Espanhol, o Barreto, o Tita, o
Januário, o Baltazar, o Balixa, o Altino. No espaço de um ano o bairro ficou
reduzido a metade e a malta nem brincava, com saudades dos idos e falta de
gente para animar as brincas e os jogos.
De
vez em quando uma cara, um episódio, acodem-me furtivos à memória. Não os sei se vivos se mortos, rememoro o que a sua fuga evitou, sim, porque foi uma
fuga, uma fuga para um lugar com futuro assegurado.