domingo, 9 de fevereiro de 2014

176 - PAPA AGULHAS O TIO BUFARINHEIRO … *



Se deitado, ficava tempo sem fim olhando os caniços do tecto, lá fora o sol abrasando as telhas infiltrava-se soezmente por entre elas dando ao quarto e à minha sesta uma aura fantasmagórica. Somente as osgas trepando as paredes do rústico quarto me desassossegavam, ficava magicando, olhando a sua transparência luminosa até adormecer vencido pelo cansaço, envolvido na frescura em que essa semi obscuridade me embalava.

Entre as duas e as quatro ou cinco da tarde o verão era impossível e nas ruas crestadas do vilarejo nem uma mosca bulia no chão por empedrar, vermelho e barrento, onde o calor imprimia rotinas que se perpetuavam, eternas. A tia Aia ficara a única solteira das treze irmãs de minha mãe e, sem filhos, recebia à vez e a cada quinze dias daqueles longos verões os sobrinhos e sobrinhas que se dispusessem a partilhar-lhe a melancolia de metade da alma, porque a outra a havia juramentado e entregue a um bufarinheiro sem eira nem beira que arrastava a existência pelos lugarejos da margem direita da Guadiana.

Linhas, agulhas, colchetes, dedais e tesouras, botões, elásticos, nastros, pentes, travessas, cuecas, sutiãs, peúgas, peças de chita, bombazina e saragoça, ardósias, lápis de cor e cadernos, brinquedos de madeira e lata, bonés e chapéus de palha, louça de esmalte e em barro, fruta da época, e movia-se de terra em terra mercadejando, mil bugigangas. Tudo esse bufarinheiro feito meu tio, de alcunha o “papa agulhas” como era por aquelas bandas chamado, apregoava e vendia. Lembro-o bem. Alto, magro e espadaúdo, um bigodão farfalhudo, umas mãos enormes, sorriso ingénuo e sincero, olhos inocentes de menino, e uns joelhos altíssimos que balançavam como chata na corrente da ribeira e onde eu mal podia me escarranchava.

Sentia-o sair de casa ainda o sol nem despontava pois ouvia o chiar da carroça e as ferraduras da mula no cimento do quintal enquanto a aparelhava. Uma ou outra vez acenei-lhes à partida, os raios de sol tocando-me o rosto rompiam luzindo no horizonte e arrastavam os laivos da noite que se escoavam em cada matina agarrando a manhã. A tia Aia já se não deitava, cirandava por ali nas lides da casa, ligava a galena porque às seis em ponto havia que sintonizar as ondas castelhanas e viver o drama da vida de “Pedro Páramo” que a Rádio Nacional de Espanha difundia para lá da Guadiana e fazia furor cativando ouvintes dos dois lados da fronteira.

Quando me levantava já o café borbulhava na cafeteira de barro cujo cheiro se misturava com o dos madeiros respingando pelos nós dos toros, sacrificados ao lume de chão que os pingos das linguiças e morcelas penduradas na lareira avivavam. Lareira mesa galena, a tia Aia triangulava flutuando sem ruído pela casa que acordava muito antes do alvorecer dando tempo ao bufarinheiro de se pôr a milhas sem que o sol da manhã o escaldasse.

Um chapéu preto de abas largas emoldurava-lhe um rosto tisnado, a lentidão de movimentos e uma expressão calma acentuavam ainda mais essas particularidades tão suas e que eu admirava sobretudo quando, pelas sete da tarde me deixava pegar nas arreatas da mula e conduzi-la, a pé, ao bebedouro onde ela, qual camelo, se precavia até ao dia seguinte enquanto ele lhe assobiava a mesma e eterna ladainha que inda hoje lembro tão bem e cujas notas ele repetia incansavelmente terminando-a somente quando “Linda” erguesse o pescoço e sacudisse o rabo e as moscas. Na volta esperava-a um petisco de forragem favas e alfarrobas cuja mistura depressa eu aprendi a dosear. Era entre a Linda e os mimos do tio “papa agulhas” e da tia Aia que a minha vida decorria, eu, o “meu menino” como ela me chamava, lembro-a de olhos vivos sorrindo para mim e carregando na expressão como se no receio de que eu não entendesse ser o “seu menino”.

Dele jamais esquecerei a calma contagiosa e o sorriso meigo que nunca mais vi igual num adulto, nem as mãos calosas que pegavam em mim e de um balanço só me punham no dorso da Linda, ou sobre os seus joelhos vogando nas ondas dos mares encapelados por onde na brincadeira me fazia singrar quando não era cavalgando um garanhão andaluz e fazendo-me passar as passinhas do “Al garbe” comigo desfeito em sonoras gargalhadas.

Ambos tiveram cota parte importante nas recordações felizes que guardo da minha infância, até de quando regavam com amor de pais a terra vermelha em que me dispunha a brincar para que pudesse abrir estradinhas na volúvel poeira barrenta que grassa naquelas bandas e onde, à sombra dos altos muros de terra batida tantas tardes me entretive brincando. Foram desvelos que deixaram marca, acredito que muita da calma que anima o meu carácter e do amor que me enforma a personalidade lhes são devidos e a verdade é que jamais encontrei vida fora a tranquilidade desse lugar nem a bondade desinteressada com que por eles fui brindado. É certo que a infância, como a mocidade ou a Primavera, vão uma vez e não voltam mais e, só muitos anos mais tarde a companheira de uma vida me marcou como esses tios hoje ternamente lembrados.

Lembro especialmente uma tarde de catequese meses depois dessas férias em que, confrontado com os ensinamentos de Deus, me punha a imaginá-lo no céu, sentado no trono, rodeado pelo Filho e pelo Espírito Santo, e acreditem, ainda hoje estou convencido que a existir Deus terá um olhar inocente de menino o sorriso ingénuo e sincero e as mãos grandes e calosas como esse meu tio bufarinheiro, o meu tio “papa agulhas”.

Deus lhe tenha a alma em conta.

           

* O lugarejo a que aludo nesta história é a aldeia de Outeiro, a 15 km da cidade de Reguengos de Monsaraz e a 6 ou 7 da vila de Monsaraz. Pintura, Monsaraz por Marcelino Bravo - Évora. 



domingo, 19 de janeiro de 2014

175 - AH !!! AQUELE BEIJO !!!! ............................

Anna-Rocheta *

AH !!! AQUELE BEIJO !!!! 

Ah ! aquele beijo !!

aquele grande beijo !!!!!
com que me mortifico e te sonho
em que te mordo os lábios 
sugo a língua
uma mão apertando a bochecha da tua coxa
forçando-te a virilha que abrasa 
os dedos sumindo-se subtis nas rendas de filigrana
ao longe o rumor da tempestade
dedos que abrem pétalas
e na mesa o odor do néctar melado 
geléia liquefeita no apetite do manjar
um turbilhão apossando-se de mim
e nem sei como as tuas pernas nos meus ombros
bem me quer mal me quer bem me quer
fixo-te o verde dos prados, cor da esperança
o sorriso tinto de sangue
enquanto me aposso de ti
como um tornado 
agora !!!!
e então.......
estrelas cadentes........
liríadas ...
e num milagroso instante percorre-nos um raio !!
a turquez das tuas pernas brancas na minha cintura
prendendo-me
arrastando-me
quebrando-me
possuindo-me e ..........
oh !! tu !! nereida !!!!!!
os dentes rangendo
simmmmmmmmmmmmmmmm
simmmmmmmmm
simmmmm
depois da tempestade a bonança
puxo de um cigarro
conversa que perece de horas

finalmente 
o sono dos justos.

* Pintura vista em Monsaraz - Galeria igrj de Santiago – Exposição - Anna-Rocheta - Nós.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

174 - O HOMEM DO PINGALIM ..........


Farda e galões faziam dele um homem, fácies de durão, erecto, calado, pingalim sempre na mão batendo contra a perna (e quem sabe se não terá sido esse o motivo primevo da queda da Magui por ele ?), olhava todos de cima arrastando atrás de si os olhares da mulheraça. Ora foi por essa altura que ela o terá conhecido.

Não sejas otário Honório, certamente não será por os negócios se terem feito e te correram bem independentemente das forças politicas que ocuparam a urbe que avaliamos o sucesso ou insucesso da cidade. Ademais, se assim fosse, como explicas os desastres que tens sofrido nos últimos anos ?

Depois calou-se, estranhamente calou-se, embatucou, de olhos fixos nalguma coisa e eu, que me sentava de costas para a entrada, ia rodar ligeiramente a cabeça afim de enxergar o que tão repentinamente o calara quando ele, socando-me violentamente o braço

- Não olhes porra ! Não olhes agora pá, depois perceberás.

Hesitaram na entrada mas lá se sentaram, passaram por nós e escolheram uma mesa recatada ao fundo do café. Era a Magui, há que anos a não via. Desde o colapso da sua saúde para ser mais preciso.

Agora entendi o Honório, fora nessa época que andara com ela, a perder tempo dizia ele, feito oportunista havia confessado ela, que estas coisas de alcova sempre se vêem a saber.

Na verdade a Magui há uns vinte anos sofrera uma depressão acentuada que a impedira de trabalhar por bem mais de uma década.

Jovem, espampanante, e ingénua, apressadamente trocara o bate chapas com quem casara num rebate apaixonado e cego para mais repentinamente ainda se ver requestada por doutores e engenheiros no laboratório onde, como técnica, sonhava as horas passando.

O ex-marido refugiara-se do vergonhoso revés escudando-se na bebida e entregando-se ao sindicalismo operário militante e solidário, a Magui por seu lado, a quem o términos da relação guindara a uma liberdade nunca imaginada, nela mergulhara de cabeça e alardeando a recente disponibilidade, que amiúde confundia com valorização pessoal.

               Apressadamente deitara para a sucata o bate chapas, transformado em chapa batida chapa lambida e mais depressa ainda saltou ela de proveta em proveta e de cadinho em cadinho, para depois de experimentada e sacudida por todos os engenheiros e doutores do laboratório, saltar de régua em régua, esquadro e compasso por toda a cidade, cidade a quem em boa verdade os antigos colegas fizeram saber o seu peso especifico e estar-se perante carne de primeira, atirando-a para uma depressão extrema uma vez intuída por ela a vera relatividade das coisas.

Fora durante grande parte dessa década perdida em que a baixa médica a afastara do amoroso convívio dos colegas de laboratório público onde trabalhava que o Honório, que nada tem de otário, amesendou no regaço da Magui de tal modo que só as meias esta se recusara a lavar-lhe, construindo entre os dois o único pomo de discórdia que a malta lhes conheceu, a ponto de, por natais ou aniversários, nos voluntariarmos e colectarmos para

- Honório, aceita esta caixinha surpresa, é o brinde da malta que jamais vos esquecerá pá, e festa da boa…

E, no meio da galhofa geral ficávamos aguardando ele abrisse a caixa e admirasse a prenda, reiteradamente uma dúzia de peúgas de homem e dois ou três pares de calcinhas de senhora do mais fino corte e bastas vezes com rendinhas e pompons.

Era risada geral pois sabíamos como o otário, que de Honório não tinha nada, era doido por cuequinhas vistosas e minimais.  

Mau grado os nossos esforços a coisa não acabou bem e quando a Magui exigiu dele mais estabilidade na relação, o Honório, otário de alcunha, raposa velha e trilhada, meteu-se a milhas deixando-lhe a depressão escorrendo entre dedos.

Ora todos sabemos como desde 2011 a coisa pública se deteriorou e, no laboratório recusaram aceitar a baixa médica da Magui exigindo-lhe uma junta médica.

Mau mau terá pensado ela, mau Maria terá dito para com os seus botões, primeiro foram os doutores e engenheiros a trama-la e a recusa-la, mas agora todo um povo se levantava em clamor contra ela e a sua desdita.

Havia que pensar e repensar outras tácticas e estratégias e essas, acabaram de entrar pelo café adentro pela mão do tenente coronel Albino, garboso e ególatra oficial de cavalaria, agora reformado, que eu já vira preso pelo beicinho da Magui duas ou três vezes nos últimos três ou dois anos, noutros cafés, mais centrais e mais bem frequentados.

Farda e galões faziam dele um homem, fácies de durão, erecto, calado, pingalim sempre na mão batendo contra a perna, olhava todos de cima arrastando atrás de si os olhares da mulheraça, mas… que a malta soubesse o nosso tenente coronel nunca tinha sido casado nem se lhe conhecia trato concerto ou experiencia com mulheres, sorte a nossa o país jamais ter precisado dos seus brios militares porque teria sido um desastre, comentava-se no nosso friends inner circle acerca do pavão de pingalim cuja vida passou a ser escrutinada desde que pela 1ª vez foi visto com a mulheraça que a Magui ainda era, e que não lhe cobiçaria os dotes de mancebo que ele já nem tinha, e provavelmente nunca tivera, mas a quem a choruda reforma com que a nação o prendara soava aos ouvidos dela como “segurança Magui segurança” e, para essa estratégia trazê-lo a este café era uma boa táctica, das melhores…

Sem galões e sem dourados, desprovido do pingalim, reformado, o garboso guerreiro, pança proeminente, os dentes enegrecidos do tabaco quando não em falta ou cariados, a barba por escanhoar, nem branca nem preta, o cabelo ralo acusando entradas, os olhos avermelhados, a postura curva, nem parecia o mesmo marcial soldado que nos habituáramos a ver conduzido por uma ordenança que a todo o lado o transportava.

Perdia fulgor, decerto não seria já intento digno de ser mostrado, em especial às amigas...

Ao senhor Dr. Juiz Leal De Mascarenhas, o tal que por tudo e por nada perorava que desde que as partes o quisessem até em cima de uma agenda… toda a gente sabia não ser capaz de dar a volta, mas ao bravo batalhador que se reformara como tenente coronel nada nem ninguém a impediria de conquistar, mais a mais nem lhe eram conhecidos os tiques sadomasoquistas com que toda a gente verberava o senhor juiz, a quem, segundo opiniões correntes, só os colegas salvavam reiteradamente de uma condenação vergonhosa.

Foi pois em passinho tremido e hesitante que aquele já nada combativo ser se aproximou da cadeira e, a medo, nela se sentou. Ela, ternamente, ajeitou-lhe a gola do blusão (não lhe limpou a baba como Hermes maldosamente afirmou) sentou-se em frente dele, pegou-lhe meigamente na mão, que tremia, e sorriu-lhe.

Estava no papo.

Nós, por uma vez na vida resolvemos ser corteses, levantámo-nos calmamente e, um a um, abandonámos o café sem nada dizer. 


...



sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

173 - ESTAMOS A PERDÊ-LA * por Maria Luísa Baião...


Estamos a perdê-la. Apesar da muito boa vontade já demonstrada, das alternativas e experiências desenvolvidas estamos a perdê-la. Curioso como sempre a perdemos, curiosamente, como sempre, por culpa nossa. Se não foi a guerra colonial foi a falta de perspectivas. Sempre espalhámos órfãos, pelo mundo e na nossa própria casa. Somos madrastas e padrastos dos nossos filhos, e, nem para os que apesar de tudo nos sobram estamos mais atentas, disponíveis.

Em especial nos últimos anos tem-nos faltado boa vontade, eficácia, mas sobretudo disponibilidade de recursos técnicos e financeiros que promovam alternativas ao vazio para que os atiramos.

Somos, já o demonstrámos à saciedade, incapazes de articular soluções que façam frente aos novos problemas, articular meras e correctas adequações dos meios essenciais, os quais, ainda que não ultrapassem comezinhas acções pontuais, resultam vulgarmente em coordenações deficientes com resultados sempre sempre aquém dos desejados.

Para o que não renda de imediato lucros palpáveis consideramos demasiado valioso todo o dinheiro empregue, não lobrigamos mais que maneiras de maximizar o uso dos recursos sempre limitados que possuímos, como se tratasse de uma e única aposta num qualquer jogo de sorte e azar.

Paradoxalmente, perante certo tipo de problemas, move-nos um prazer mórbido de os resolver deitando-lhe dinheiro em cima, que nestes casos resulta invariavelmente numa espiral sôfrega e insaciável de desperdício que nos sossega a consciência mas não resolve absolutamente nada.

Por comodismo ignoramos a desagregação dos valores éticos e dos laços de sociabilidade que acreditamos existirem, contribuímos de forma anónima e paulatina para a substituição de modos de vida que, curiosa e inexplicavelmente passamos a vida criticando.

Afinal quem fomenta a exclusão social, as desigualdades sociais, a ausência de pleno emprego e a vil distribuição de riqueza que inconscientemente nos orgulhamos de apresentar ?

Quando e quem lutou, ou no mínimo contestou ou denunciou esta injusta repartição dos bens comuns que a ninguém prometem nem alimentarão um qualquer projecto de vida com dignidade no futuro, e que, supostamente, dariam coesão à nossa sociedade ?

Como mobilizar o meio envolvente, como mobilizar a comunidade, como sensibilizar este nosso mundo, mais preocupado consigo que com os demais, mais virado para si que para o que o rodeia ?

 Somos soezes a cavar fossos comunicacionais, hábeis a fingir, mestres no parecer, impetuosos no forjar de paternalismos e maternalismos serôdios e inconsequentes, exímios na afirmação de contrastes entre os valores apregoados e praticados.

Erguemos como valor dos valores o individualismo, ajustamo-nos a solidariedades vazias, inventámos a Escola inclusiva, e apresentamos os mais elevados e vergonhosos índices de abandono escolar.

Razão têm os adolescentes, somos nós os inadaptados, somos nós que os obrigamos aos códigos de rejeição que acusamos de usarem contra o nosso mundo, mundo onde lhe negamos espaço para se sentirem e serem adultos, viverem as suas insubstituíveis experiências, experiências que os façam sentir vivos e actuantes, sentir que nesta sociedade há um lugar que é deles.

Nem satisfatoriamente desenvolvemos a prevenção, nem cabalmente fazemos reduzir, limitar ou ao menos atrasar o início de tipos de consumos que, por bem parecer, pelo menos assim parece, nos esforçamos por evitar. A juventude não pode ser um mal a rejeitar.

A toxicodependência não pode ser uma batalha perdida, em que poucos mas muito empenhados, lutam contra tantos e tão alheados.

Que fazer ? Baixar os braços porque todos os dias surgem novos consumidores a quem nada ampara ? Não me façam crer que escola, família, poder, são tudo tretas para inglês ver, ou, ontologicamente falando, tsunamis de indiferença.

Há custos que não podem ser contabilizados como feijões em mercearia, há experiências que não podem deixar de ser ousadas, há formas mínimas de comunicação que não podem ser desprezadas. Não nos façam acreditar que é natural este resquício de despojados da riqueza, de afastados dos bens materiais que, mau grado a nossa singularidade ainda nos resta.

Não batam mais na tecla das diferenças étnicas e culturais ou dos novos tribalismos. Somos todos diferentes mas todos iguais.

Olhe-se para este mundo, olhe-se para a nossa casa, e perguntemo-nos quais são e onde estão, as políticas de Juventude, os incentivos ao Associativismo juvenil, o regaço onde possamos acolher os que têm a desdita de cair nos labirintos, nos abismos, que o nosso mundo lhe estende. A toxicodependência não é mais que uma doença, não se cura todavia em fabulosos estádios como os que erguemos hedonisticamente a não sei quê…
                                                                        
Escrito e publicado por Maria Luísa Baião em Março de 2005, Diário do Sul, coluna “ Kota de Mulher “ 


terça-feira, 26 de novembro de 2013

172 - AINDA UMA MULHER BONITA

 

 É ainda uma mulher bonita. Diria apesar dos anos que parecem nem ter passado por ela, mesmo muito, para ser justo na minha apreciação pois gosto de ser bem entendido se me percebem.

Quando rapaz via-a passar ao princípio das manhãs e no fim das tardes, certamente moraria perto do escritório de uma empresa nacional onde eu, noviço, contava notas juntando-as em atados que prendia com elásticos coloridos, verde para as de vinte, amarelo para as de cinquenta, azul para cem, vermelho para quinhentos e a púrpura reservada às de mil e raramente utilizada.

Eram tempos em que não havia maquinetas conta notas, cobiça sim, aos molhos, e na verdade tentava-me a cada hora e de tal modo que ainda hoje, passados tantos anos me arrependo cada vez mais de não me ter abotoado com um saco cheio deles numa sexta feira, único dia em que me pediam contas do labor de toda a semana.

Era vizinha e pensei até ser dela um pequeno BMW  700 verde limão ali parado dias a fio, se não acima abaixo da entrada ou uns metros mais à frente sem que alguma vez tivesse lobrigado proprietário ou condutora para ser mais preciso. Na cidade, medieval e pequena, nada distava mais de uma salutar marcha de dez ou quinze minutos a pé, já lugar para estacionar era um enigma idêntico ao de hoje.

Seria portanto normal que, enquanto contava as notas, divagasse com ela no pequeno BMW pelos Alpes e cordilheiras da Europa, talvez daí a minha propensão para o romantismo e a pancada de sonhador. Nunca lhe soube sequer o nome, era querida umas vezes, amor outras, minha princesinha ou queridinha, e nesse entretanto o BMW, por artes mágicas ficava descapotável permitindo que os meus sonhos rolassem connosco de cabelos ao vento pela Riviera francesa.

Àquele pequeno BMW 700 seguiu-se um 1502, depois um 1602, e quando o laranja forte de um 2002 alegrou o largo já as Tv's anunciavam o novel e moderníssimo série 3, dia em que eu dei de frosques e fui fazer de crescido para as forças especiais como me exigira a minha condição de mancebo e de vaidoso.

Vi-a amadurecer, de agradável jovem passou a mulher madura firme e segura, no mesmo intervalo de tempo em que, na Alemanha, o velhinho BMW modelo 700, o tal de de cor verde limão, evoluia e se guindava a um dos melhores automóveis do mundo, dos mais cobiçados e preferidos pela técnica evoluída, qualidade de construção, beleza e fiabilidade.

Eu, que já amava as mulheres e as motas, assistia e sofria com a morte, impávido, da fábrica dos “Sado”, uns pequeninos mata-velhos que com o passar dos séculos poderiam via a fazer a nossa glória, e da “Famel” e de mais umas quantas fabriquetas, como a “Casal”, que detinha o record do mundo de velocidade na cilindrada da sua classe, metalúrgica que encerrou as suas fábricas para se dedicar à importação, distribuição e venda de motociclos chineses ou japoneses …

Os continentes rodopiavam sobre as convenções do comércio mundial, a minha vizinha ia-se transfigurando, estava cada dia mais linda que nunca e no mundo a “Triumph” era destronada pela “Wonderbra”, que irrompera causando furor entre as mulheres de todas as idades. Enquanto crescia e me fazia homem olhava a transmutação dessa vizinha com a mesma placidez atenção e cuidado que Kafka terá colocado na mente enquanto escrevia a historieta da barata em que supostamente se metamorfoseou.

À minha volta o país saltava de crise em crise e as atenções com as jogatanas, quezílias e golpadas políticas ocupavam os nossos decisores, de tal modo que por via disso vamos ter que fazer em cima do joelho reformas que já deviam estar feitas há vinte ou trinta anos. Eu apercebia-me vagamente que os problemas das mulheres, da beleza e do mundo eram outros, mas nunca me foi dado motivo para não pensar que essa percepção fosse só minha devendo portanto estar enganado e a laborar em erro havia anos.

Que a minha vizinha, com a carteira cada vez mais recheada de cartões “gold” e ainda bela ou quase tão bela como antanho surgisse a meus olhos com um busto soberbo daqueles que só a Wonderbra publicitava, mau grado o passar dos anos a concorrência dos “Super Push Up” da “Intimissimi” ou dos modelos da “Tezeni” e da BMW, competindo em todo o mundo pela supremacia nos lugares cimeiros que só o trabalho a conjugação de esforços a inovação a cooperação e o empreendedorismo permitem alcançar, espantou-me.

Anos mais tarde deixei de a ver, após a nossa triunfal entrada na Europa a empresa não aguentou o embate e quinhentos de nós foram para o olho da rua sem qualquer contemplação, um lustre volvido e quando o produto que restava dessa empresa falida mudou o nome para um lindo e sonoro “Star Start” era tarde e a rede de vendas e distribuição tinham implodido.

Em meu redor tudo ou quase parecia evoluir, só em Portugal, pelo que me era dado a ver na Tv dirrimimos questões pertinentíssimas, e variando entre um segundo resgate e um programa cautelar abjurámos a Irlanda esquecida que está a fome na Marinha Grande e o fecho das fábricas de plásticos de Leiria, deslumbrados com a CEE que mais parece uma loja “gourmet” onde tudo se compra feito, nós grunhos, que nada de jeito produzimos e nem baldes ou alguidares de plástico lá conseguimos introduzir, babados e entretidos que andamos de volta dos queijos e dos vinhos de França como se nem disso tivéssemos a preceito.

 Somos lestos a sacrificar os nossos belmiros e soares dos santos, e na generalidade uns aos outros, ou porque não são do nosso clube ou do nosso partido, esquecemo-nos ser todos portugueses e navegar no mesmo barco, o que nos sobra em prepotência falta-nos em coerência, de punho fechado e erguido renegamos os nossos para engordar os de fora, de chineses a angolanos. 

 Contudo estou convencido de que não devo ter sido o único matarruano que andou a dormir sonhando com dinheiro fácil boas mulheres e melhores passeios em carros do último modelo adquiridos com juros de agiota e crédito farto.

Afinal vociferamos contra o capital e o investimento mas damos o cu e oito tostões por mais como a AutoEuropa, manifestamo-nos contra o imperialismo mas corremos de mão dada com toda a família para o McDonald’s a empanturrarmo-nos de hambúrgueres pepsis e coca-colas, abjuramos a Merkel mas aceitamos pagar anos de vencimentos e em 72 meses ou prestações o mais moderno Mercedes Audy ou BMW fabricado numas meras 120 horas… não passamos de grunhos e matarruanos. O resto é combersa…

 Todavia ainda somos um país bonito, pena que nem essa beleza o clima ou o sol excepcionais logremos alienar com cabeça tronco e membros. Tanto é verdade o que digo que já ninguém vai achando graça a isto e a fila para a debandada é cada vez maior. Talvez desta nos convençamos que nada fazemos e de que o pouco que produzimos a poucos mais que o menino Jesus vai interessando. Cera, devíamos ter apostado em grande no negócio da cera, mas pensar em grande é cena que também não nos assiste.

Porém, depois das especiarias da Índia dos negros da África do açúcar e do ouro do Brasil alguma coisa virá, haja calma e fé, isto é uma crise passageira e daqui a trinta ou quarenta anos estará ultrapassada esquecida e alguma coisa aparecerá de novo vão ver.

Será assim ou não será ? Vai uma apostinha ?

Ah ! Já me esquecia desculpem ! 
Ainda hoje guardo elásticos por tudo que é gaveta ...