É ainda uma mulher bonita. Diria apesar dos anos que
parecem nem ter passado por ela, mesmo muito, para ser justo na minha
apreciação pois gosto de ser bem entendido se me percebem.
Quando rapaz via-a passar ao princípio das manhãs e
no fim das tardes, certamente moraria perto do escritório de uma empresa nacional
onde eu, noviço, contava notas juntando-as em atados que prendia com elásticos coloridos, verde para as de vinte, amarelo para as de cinquenta, azul
para cem, vermelho para quinhentos e a púrpura reservada às de mil e raramente
utilizada.
Eram tempos em que não havia maquinetas conta notas,
cobiça sim, aos molhos, e na verdade tentava-me a cada hora e de tal modo que
ainda hoje, passados tantos anos me arrependo cada vez mais de não me ter
abotoado com um saco cheio deles numa sexta feira, único dia em que me pediam contas do labor de toda a semana.
Era vizinha e pensei até ser dela
um pequeno BMW 700 verde limão ali parado dias a fio, se não acima abaixo da
entrada ou uns metros mais à frente sem que alguma vez tivesse lobrigado
proprietário ou condutora para ser mais preciso. Na cidade,
medieval e pequena, nada distava mais de uma salutar marcha de dez ou quinze
minutos a pé, já lugar para estacionar era um enigma idêntico ao de hoje.
Seria portanto normal que, enquanto contava as notas,
divagasse com ela no pequeno BMW pelos Alpes e cordilheiras da Europa, talvez
daí a minha propensão para o romantismo e a pancada de sonhador. Nunca lhe
soube sequer o nome, era querida umas vezes, amor outras, minha princesinha ou
queridinha, e nesse entretanto o BMW, por artes mágicas ficava descapotável
permitindo que os meus sonhos rolassem connosco de cabelos ao vento pela
Riviera francesa.
Àquele pequeno BMW 700 seguiu-se um 1502, depois um
1602, e quando o laranja forte de um 2002 alegrou o largo já as Tv's anunciavam
o novel e moderníssimo série 3, dia em que eu dei de frosques e fui fazer de
crescido para as forças especiais como me exigira a minha condição de mancebo e
de vaidoso.
Vi-a amadurecer, de agradável jovem passou a mulher
madura firme e segura, no mesmo intervalo de tempo em que, na Alemanha, o velhinho BMW modelo 700, o tal de de cor verde limão, evoluia e se guindava a um dos melhores automóveis do
mundo, dos mais cobiçados e preferidos pela técnica evoluída, qualidade de
construção, beleza e fiabilidade.
Eu, que já amava as mulheres e as motas, assistia e sofria com a morte, impávido, da fábrica dos “Sado”, uns pequeninos mata-velhos que com o passar dos séculos poderiam via a fazer a nossa glória, e da “Famel” e de mais umas quantas fabriquetas, como a “Casal”,
que detinha o record do mundo de velocidade na cilindrada da sua classe,
metalúrgica que encerrou as suas fábricas para se dedicar à importação,
distribuição e venda de motociclos chineses ou japoneses …
Os continentes rodopiavam sobre as convenções do
comércio mundial, a minha vizinha ia-se transfigurando, estava cada dia mais
linda que nunca e no mundo a “Triumph” era destronada pela “Wonderbra”, que
irrompera causando furor entre as mulheres de todas as idades. Enquanto crescia e me fazia homem olhava a
transmutação dessa vizinha com a mesma placidez atenção e cuidado que Kafka
terá colocado na mente enquanto escrevia a historieta da barata em que
supostamente se metamorfoseou.
À minha volta o país saltava de crise em crise e as
atenções com as jogatanas, quezílias e golpadas políticas ocupavam os nossos
decisores, de tal modo que por via disso vamos ter que fazer em cima do joelho
reformas que já deviam estar feitas há vinte ou trinta anos. Eu apercebia-me vagamente que os problemas das
mulheres, da beleza e do mundo eram outros, mas nunca me foi dado motivo para
não pensar que essa percepção fosse só minha devendo portanto estar enganado e
a laborar em erro havia anos.
Que a minha vizinha, com a carteira cada vez mais
recheada de cartões “gold” e ainda bela ou quase tão bela como antanho surgisse
a meus olhos com um busto soberbo daqueles que só a Wonderbra publicitava, mau
grado o passar dos anos a concorrência dos “Super Push Up” da “Intimissimi” ou
dos modelos da “Tezeni” e da BMW, competindo em todo o mundo pela supremacia
nos lugares cimeiros que só o trabalho a conjugação de esforços a inovação a
cooperação e o empreendedorismo permitem alcançar, espantou-me.
Anos mais tarde deixei de a ver, após a nossa
triunfal entrada na Europa a empresa não aguentou o embate e quinhentos de nós
foram para o olho da rua sem qualquer contemplação, um lustre volvido e quando
o produto que restava dessa empresa falida mudou o nome para um lindo e sonoro “Star Start” era tarde e a rede de vendas e distribuição tinham implodido.
Em meu redor tudo ou quase parecia evoluir, só em
Portugal, pelo que me era dado a ver na Tv dirrimimos questões pertinentíssimas, e variando entre um segundo resgate e um programa cautelar abjurámos a Irlanda
esquecida que está a fome na Marinha Grande e o fecho das fábricas de plásticos
de Leiria, deslumbrados com a CEE que mais parece uma loja “gourmet” onde tudo
se compra feito, nós grunhos, que nada de jeito produzimos e nem baldes ou
alguidares de plástico lá conseguimos introduzir, babados e entretidos que
andamos de volta dos queijos e dos vinhos de França como se nem disso
tivéssemos a preceito.
Somos lestos a sacrificar os nossos belmiros e soares
dos santos, e na generalidade uns aos outros, ou porque não são do nosso clube
ou do nosso partido, esquecemo-nos ser todos portugueses e navegar no mesmo
barco, o que nos sobra em prepotência falta-nos em coerência, de punho fechado
e erguido renegamos os nossos para engordar os de fora, de chineses a angolanos.
Contudo estou convencido de que não devo ter sido o
único matarruano que andou a dormir sonhando com dinheiro fácil boas mulheres e
melhores passeios em carros do último modelo adquiridos com juros de agiota e
crédito farto.
Afinal vociferamos contra o capital e o investimento
mas damos o cu e oito tostões por mais como a AutoEuropa, manifestamo-nos
contra o imperialismo mas corremos de mão dada com toda a família para o McDonald’s
a empanturrarmo-nos de hambúrgueres pepsis e coca-colas, abjuramos a Merkel mas
aceitamos pagar anos de vencimentos e em 72 meses ou prestações o mais moderno Mercedes Audy ou
BMW fabricado numas meras 120 horas… não passamos de grunhos e matarruanos. O resto
é combersa…
Todavia ainda somos um país bonito, pena que nem essa
beleza o clima ou o sol excepcionais logremos alienar com cabeça tronco e
membros. Tanto é verdade o que digo que já ninguém vai achando graça a isto e a
fila para a debandada é cada vez maior. Talvez desta nos convençamos que nada
fazemos e de que o pouco que produzimos a poucos mais que o menino Jesus vai
interessando. Cera, devíamos ter apostado em grande no negócio da cera, mas
pensar em grande é cena que também não nos assiste.
Porém, depois das especiarias da Índia dos negros da
África do açúcar e do ouro do Brasil alguma coisa virá, haja calma e fé, isto é
uma crise passageira e daqui a trinta ou quarenta anos estará ultrapassada
esquecida e alguma coisa aparecerá de novo vão ver.
Será assim ou não será ? Vai uma apostinha ?
Ah ! Já me esquecia desculpem !
Ainda hoje guardo elásticos por tudo que é gaveta ...