Se deitado, ficava tempo sem fim olhando os caniços
do tecto, lá fora o sol abrasando as telhas infiltrava-se soezmente por entre
elas dando ao quarto e à minha sesta uma aura fantasmagórica. Somente as osgas trepando as paredes do rústico
quarto me desassossegavam, ficava magicando, olhando a sua transparência
luminosa até adormecer vencido pelo cansaço, envolvido na frescura em que essa
semi obscuridade me embalava.
Entre as duas e as quatro ou cinco da tarde o verão
era impossível e nas ruas crestadas do vilarejo nem uma mosca bulia no chão por
empedrar, vermelho e barrento, onde o calor imprimia rotinas que se perpetuavam,
eternas. A tia Aia ficara a única solteira das treze irmãs de
minha mãe e, sem filhos, recebia à vez e a cada quinze dias daqueles longos
verões os sobrinhos e sobrinhas que se dispusessem a partilhar-lhe a melancolia
de metade da alma, porque a outra a havia juramentado e entregue a um
bufarinheiro sem eira nem beira que arrastava a existência pelos lugarejos da
margem direita da Guadiana.
Linhas, agulhas, colchetes, dedais e tesouras,
botões, elásticos, nastros, pentes, travessas, cuecas, sutiãs, peúgas, peças de
chita, bombazina e saragoça, ardósias, lápis de cor e cadernos, brinquedos de
madeira e lata, bonés e chapéus de palha, louça de esmalte e em barro, fruta da
época, e movia-se de terra em terra mercadejando, mil bugigangas. Tudo esse
bufarinheiro feito meu tio, de alcunha o “papa agulhas” como era por aquelas
bandas chamado, apregoava e vendia. Lembro-o bem. Alto, magro e espadaúdo, um bigodão
farfalhudo, umas mãos enormes, sorriso ingénuo e sincero, olhos inocentes de
menino, e uns joelhos altíssimos que balançavam como chata na corrente da
ribeira e onde eu mal podia me escarranchava.
Sentia-o sair de casa ainda o sol nem despontava pois
ouvia o chiar da carroça e as ferraduras da mula no cimento do quintal enquanto
a aparelhava. Uma ou outra vez acenei-lhes à partida, os raios de sol
tocando-me o rosto rompiam luzindo no horizonte e arrastavam os laivos da noite
que se escoavam em cada matina agarrando a manhã. A tia Aia já se não deitava,
cirandava por ali nas lides da casa, ligava a galena porque às seis em ponto havia
que sintonizar as ondas castelhanas e viver o drama da vida de “Pedro Páramo”
que a Rádio Nacional de Espanha difundia para lá da Guadiana e fazia furor cativando
ouvintes dos dois lados da fronteira.
Quando me levantava já o café borbulhava na cafeteira
de barro cujo cheiro se misturava com o dos madeiros respingando pelos nós dos
toros, sacrificados ao lume de chão que os pingos das linguiças e morcelas
penduradas na lareira avivavam. Lareira mesa galena, a tia Aia triangulava flutuando
sem ruído pela casa que acordava muito antes do alvorecer dando tempo ao
bufarinheiro de se pôr a milhas sem que o sol da manhã o escaldasse.
Um chapéu preto de abas largas emoldurava-lhe um
rosto tisnado, a lentidão de movimentos e uma expressão calma acentuavam ainda
mais essas particularidades tão suas e que eu admirava sobretudo quando, pelas
sete da tarde me deixava pegar nas arreatas da mula e conduzi-la, a pé, ao
bebedouro onde ela, qual camelo, se precavia até ao dia seguinte enquanto ele
lhe assobiava a mesma e eterna ladainha que inda hoje lembro tão bem e cujas
notas ele repetia incansavelmente terminando-a somente quando “Linda” erguesse
o pescoço e sacudisse o rabo e as moscas. Na volta esperava-a um petisco de
forragem favas e alfarrobas cuja mistura depressa eu aprendi a dosear. Era entre
a Linda e os mimos do tio “papa agulhas” e da tia Aia que a minha vida
decorria, eu, o “meu menino” como ela me chamava, lembro-a de olhos vivos
sorrindo para mim e carregando na expressão como se no receio de que eu não
entendesse ser o “seu menino”.
Dele jamais esquecerei a calma contagiosa e o sorriso
meigo que nunca mais vi igual num adulto, nem as mãos calosas que pegavam em
mim e de um balanço só me punham no dorso da Linda, ou sobre os seus joelhos
vogando nas ondas dos mares encapelados por onde na brincadeira me fazia
singrar quando não era cavalgando um garanhão andaluz e fazendo-me passar as
passinhas do “Al garbe” comigo desfeito em sonoras gargalhadas.
Ambos tiveram cota parte importante nas recordações
felizes que guardo da minha infância, até de quando regavam com amor de pais a
terra vermelha em que me dispunha a brincar para que pudesse abrir estradinhas
na volúvel poeira barrenta que grassa naquelas bandas e onde, à sombra dos
altos muros de terra batida tantas tardes me entretive brincando. Foram desvelos que deixaram marca, acredito que muita
da calma que anima o meu carácter e do amor que me enforma a personalidade lhes
são devidos e a verdade é que jamais encontrei vida fora a tranquilidade desse
lugar nem a bondade desinteressada com que por eles fui brindado. É certo que a
infância, como a mocidade ou a Primavera, vão uma vez e não voltam mais e, só
muitos anos mais tarde a companheira de uma vida me marcou como esses tios hoje
ternamente lembrados.
Lembro especialmente uma tarde de catequese meses
depois dessas férias em que, confrontado com os ensinamentos de Deus, me punha
a imaginá-lo no céu, sentado no trono, rodeado pelo Filho e pelo Espírito Santo,
e acreditem, ainda hoje estou convencido que a existir Deus terá um olhar
inocente de menino o sorriso ingénuo e sincero e as mãos grandes e calosas como
esse meu tio bufarinheiro, o meu tio “papa agulhas”.
Deus lhe tenha a alma em conta.
* O lugarejo a que aludo nesta história é a aldeia de
Outeiro, a 15 km
da cidade de Reguengos de Monsaraz e a 6 ou 7 da vila de Monsaraz. Pintura, Monsaraz por Marcelino Bravo - Évora.