quarta-feira, 28 de setembro de 2016

385 - MARCHA A RÉ .................................................


MARCHA A RÉ

Olha, voltaram para trás,
separaram-se,
talvez por se lhes ter acabado a gasolina.

Não, não terá sido disso a culpa, o motivo,
dizem que se lhes acabara a poesia,
que já não iam beber à mão um do outro.

O romance terá chegado ao fim, assim mo garantiram,
ainda assim foram mais de trezentas páginas.

Terão passado a ver o mundo de uma outra maneira,
um problema de perspectivas,
um desembestado ladeira abaixo,
outro suando as estopinhas ladeira acima.

O mundo é o mesmo, os olhos é que serão outros,
ou o mirante,
ou o explicador,
dantes,
ele por vezes pintava-lhe as paisagens para melhor lhas explicar,
e ela bombardeava-o com perguntas para melhor o entender,
ou vice – versa.

Alguém estranhara a reviravolta nas cadeiras da varanda,
de uma passaram a duas,
e nunca mais um no colo do outro, navegando,
nunca mais as mãos engalfinhadas, as bocas coladas,
uma segredando na outra, nunca mais as línguas às cegas,
titilando.

Depois foi tudo muito rápido,
para um a Estrela Polar, para outro o Cruzeiro do Sul.

Nem jamais alguém voltou a vê-los passar,
mirando a abóboda celestial, cantando e assobiando,
nem sequer entrando juntos na igreja para orar.

O Registo tomou nota da ocorrência e promulgou os éditos,
e de novo eles, lépidos, buscaram demonstrar a nova liberdade,
ora envergonhados, escondendo-lhe o peso,
ora ocultando grilhetas ao facto consumado, 
a esperança atrofiada por anos e anos de inutilidade, 
é o que faz não dar uso às coisas.

E a saudade, a saudade que mina um e outro,
não esqueçamos a saudade dos velhos e dos mesmos fados,

tenho-lhos ouvido de novo na grafonola…

Évora 28 de Setembro de 2016, por Humberto Baião.

sábado, 24 de setembro de 2016

384 - NÃO SEI NÃO SEI NÃO SEI NÃO SEI ..............


NÃO SEI NÃO SEI NÃO SEI NÃO SEI NÃO SEI NÃO SEI

Não sei onde pára o meu blusão azul dos dias frescos,
o tempo arrefeceu e vou deixar de andar descalço pela casa,
antes que me constipe, ou te ouça ralhando-me tanta leviandade.

É saudade isto que sinto, dos dias curtos, da casa acolhedora,
da chuva, do cheiro a terra molhada, do escuro pelas seis horas,  
da gata ronronando e roçando-se-me nas pernas fugindo da rua,
chegando a casa molhada e mendigando uma escovadela.

Não sei onde pára esse meu blusão meia estação, corri a casa toda,
abri até o teu roupeiro onde, como na vida,
tudo tens arrumado de um modo ordeiro,
os casacões primeiro, os casacos, os vestidos, os casaquinhos de lã, 
as saias, os blusões leves, as calças e os calções,
entre os quais não está o meu blusão aquele,
mas dei de caras com estes vestidos de que tanto gostas,
e já foram alargados e encolhidos uma data de vezes.

Toquei-os com ternura e fiquei por momentos olhando-os com carinho,
não é pela balança que regulas, nem pelos equinócios ou solstícios,
a ti calhou-te a majestade dos dias, talvez por mais caprichosa, 
mais elegante, duma exigência que não é para toda a gente,
mas que dominas com paciente mestria,
ou deverei dizer com uma mestria paciente ?

Olha ali naquele canto as mantinhas, as écharpes, todas dobradinhas,
a caixa dos turbantes e este cheiro que eu tanto gosto,
bolotas de naftalina.

Mudaram-te o norte de lugar e passas agora os dias de agulha na mão, 
acertando o rumo, 
acertando tudo como se fosses partir para um outro mundo, 
e eu, armado por vezes em filisteu, finjo não te perceber, não te ver,
não entender esta tua revoltada obsessão contra o novel azimute,
o novel azimute que os fusos das Moiras tecem,
como se ventos contrários te empurrassem,
contrariando-te a sina e ameaçando cortar-te o fio de Ariadne,
o fio, a trama que te liga ao mundo, e o futuro em que acreditaras.

A vida é uma viagem que tens cruzado como imponente navio,
sempre sulcando as águas e as vagas alterosas de sete mares que,
Neptuno espalhara na tua frente e agora, na hora da manutenção,
mais estranha ainda se torna para ti a placidez dum estaleiro,
o sossego lúgubre duma qualquer doca seca.

Compreendo-te, adicta que eras do nunca parada,
admiradora que foste da Teresa Madre a quem hoje convidam ao marasmo, cuja contemplação te convida, permite e consente e que recusas enfrentar, porque as marés mortas nunca foram a tua praia.

E não imagino onde estará,
não acho aquele blusão que me ofertaras na feira do Rossio de S. Braz,
azul, da cor do primeiro céu sob o qual há muitos anos nos acoitámos,
que recordo como se fosse ontem,
tal como lembro as constelações que nos foram manto nesta galáxia,
nesta galáxia que juntos começámos nessa noite a percorrer,
e cuja sina fora selada quando nos beijámos,
não sonhando, antes confirmando,
vendo p’lo canto do olho céus e chão pejados de estrelas cadentes,
era isso, eram elas as estrelas que estavam chovendo e cantando,
e atapetando em cascata luminosa e cintilante o chão que pisávamos.

Cá está ele !
quem se lembraria de o colocar aqui que o não vi quando dele precisava,
agora é tarde, já não vou sair, vou ficar aqui contigo,
repartindo o tempo, contando memórias, contabilizando-as contigo,
conferindo-as contigo,
fazendo com elas montinhos como com as fichas nos casinos,
e para que as possamos enrolar em rolinhos de papel de lustro ou de seda,
como fazíamos com as moedinhas que guardávamos numa gaveta,
num cofrinho só para elas, só para nós,
e quando não couberem construirei parra elas um baú tal,
que tenha em vez de rebites, estrelas,
um baú com um candelabro em cima,
e nele uma dúzia de velas sempre acesas.


sexta-feira, 23 de setembro de 2016

383 - PEGA-ME AO COLO, FAZ-ME UM DESENHO


 Notava-se-lhe a aflição, a glote parecendo subir e descer no elevador da garganta, como quem fincara uma dentadinha no fruto proibido e lhe ficasse atravessada, a maçã-de-adão, vingativa, atrapalhando-lhe o respirar, o engolir da saliva que o nervosismo miudinho lhe fazia brotar na boca e sobretudo o responder ao jornalista que, inquisidor e ameaçador lhe fazia tremer o lugar no pódio sonegando-lhe o tapete debaixo dos pés. *

Cá fora gerou-se natural burburinho e, como habitualmente o campo dividiu-se em dois, no mínimo em dois pois menos nem seria possível, cada cabeça sua sentença e com o passar dos dias múltiplas e várias soluções, versões e recomendações aparecerão, teoricamente poderão chagar aos dez milhões, já devem ter notado que para o efeito não estou a considerar os emigrados. Os que se foram não aguentaram tanta democracia, tanta gente opiniosa e palavrosa, não suportaram aguardar que se cumprissem tantas potencialidades que este lindo país encerra. É gente que não está para conversas, será gente mais de fazer que de discutir, ou reflectir, ponderar, decidir, pensar, resolver, determinar, concluir, deliberar, sentenciar, dispor, optar, preferir, preterir, escolher, separar, gente muito diferente de nós que gostamos sobretudo de aprofundar, improvisar e em conformidade, concomitantemente, agir posteriormente em cima do joelho, com calma e ponderação, sem pressas, a pressa todos o sabemos, é inimiga da perfeição. Em fim, gente que estará melhor lá fora, é gente com quem não se pode manter uma conversa que não a queiram logo dar por acabada, gente sequiosa por chegar a uma solução, a uma conclusão, a um entendimento, coarctando cerce qualquer prolongamento de aprazível diálogo pela raiz. 

Efectivamente não há nada melhor que uma boa conversa, pena que muitos não a consigam ou saibam desenvolver com a devida perfeição, infelizmente há ainda pessoas, e muitas, que não sabem conversar. Não significa que não o façam, fazem-no contudo com todas as dificuldades, perdas (não percas, a perca é um peixe) e desvantagens de não se elevar a conversação ao supra sumo das suas potencialidades, fazendo-o as pessoas, fazendo a conversa, caminhar aos tombos, aos encontrões e aos trambolhões, como se tivessem chegado a um bazar após atravessado, a custo, um largo de foliões e dançarinos acotovelando-se para depois, no bazar, nos atirarem rifas, que são por natureza todas igualmente enroladinhas, fechadinhas e iguaizinhas, como as conversas que puxam, e enroladas como as frases que atiram ao ar para depois rolarem por ali aos tropeções como os carros com dificuldades no arrancar e que o fazem aos soluços.

Para além deste óbice muitas vezes também não sabem ouvir, nem escutar, comummente atalham-te ainda tu tens a pergunta a meio, tentando antecipar a resposta, falhando-a cristalinamente claro, isto quando apesar de te deixarem acabar ou formular a pergunta completa, não enveredam por absurdas derivações;

- E hoje ? que pensa o meu amigo fazer hoje em relação a isso ?

e ao responderem-te, em vez do isso ou do fazer, optam pelo hoje e pelas imensas possibilidades p’lo hoje abertas, se fará sol ou chuva, calor ou frio, se haverá nevoeiro ou nuvens, desmultiplicando-se estas últimas por mais um conjunto  de variáveis de dispersão, de escape ou de fuga oferecidas pelas alternativas de nimbos, cúmulos, cirros ou estratos.
 
Por que motivo ou razão o fazem daria azo a uma catrefa de estudos específicos ou transversais, a que não seria alheia, em caso nenhum, a superficialidade de que tudo hoje se reveste para todos, ou quase todos, ou uma grande maioria, que tudo tocam pela rama sem na realidade tocarem coisa nenhuma.

O comodismo, mas sobretudo a ignorância ditam as leis e campeiam, e, se dantes era difícil levantá-los da cadeira pra irem junto da estante sacar de um dicionário, abri-lo, procurar até por fim encontrarem o tal vocábulo redondo que lhes estivesse atravessado na garganta, hoje, com uma miríade, resmas, paletes de dicionários online, virtuais, à distancia de um clique, nem se incomodam, é tão fácil que nem vale a pena o esforço e, se é fácil não terá valor algum pelo que nem valerá a pena o incómodo da consulta, confirmando- se assim as razões de Arturo Perez-Reverte que, numa recente entrevista desabafou:

- ... A Europa da liberdade morreu. O Ocidente vai perder a guerra com o Islão. Já não há homens brilhantes, e os escritores não têm nada para contar...

efectivamente confirma-se o percurso que o ser humano trilha desde a pré-história, de trogloditas fomos paulatinamente evoluindo para senhores e escravos, bárbaros, servos, cidadãos, estando hoje a processar-se e a confirmar-se a nossa qualidade de consumidores, materialistas, e no caso português sobretudo o de contribuintes. Para além de contribuintes e consumidores a actual geração é caracterizada em pleno por alheados ou alienados, no amplo e plural sentido a este último vocábulo atribuído.

Voltando à vaca fria, estamos perante uma população que não sabe conversar, na maioria das vezes nem conversa, antes desconversa. Não fala, não pergunta, nem sei onde aprenderá tudo, ou se nem aprende nada… Magote, mole ou turba que não sabe falar mas que também nem sabe ouvir, que não procura respostas nem ao menos saberá fazer as perguntas ou tão pouco que perguntas fazer. Já devem ter reparado que este blogue não é para toda a gente, se está entre os meus leitores, se continua meu leitor dou-lhe os parabéns, não estou aqui para facilitar a vida a ninguém, este blogue é elitista, elitista no sentido de que coloca alta a fasquia e não alinha pelo facilitismo tuga. Poderemos ser poucos mas certamente somos bonzinhos. Pelo menos tenho-me nessa conta, não sou modesto pois há muito me disseram que a modéstia e a humildade me ficavam mal e sei por experiência própria que quanto mais a gente se baixa mais o cu lhe aparece…

Devido aos factos assinalados o país está encalhado, e dificílimo será encontrar solução para tão profundos males. Há quarenta anos ainda se olhava para o país e para quaisquer problemas procurando para eles soluções totais, globais, soluções que tivessem em conta todos nós, hoje a democracia permite-nos várias visões e perspectivas, diversificados ângulos de observação, escutar diferentes sensibilidades, ouvir uma multiplicidade de soluções sendo que nenhuma responde convenientemente à questão, ou à pergunta, pois ninguém se atreve a aflorá-la sequer, nem a medo quanto mais em voz alta, do que resulta ser parida uma qualquer solução em função de interesses escamoteados, disfarçados, camuflados, que nada resolvem a não ser a ambição de uma classe, uma categoria, um grupo, uma ideologia, um partido, tornando não raras vezes o problema ainda de maior dimensão do que aquela que tinha antes de para ele ser buscada e encontrada qualquer solução.

É nisto que dão os escapes, as fugas, a dispersão e sobretudo a desatenção ao cerne das questões, o abandono da interrogação, da pergunta, da conversa. Urge que os programas escolares do básico ao secundário e sobretudo ao superior sejam repensados e neles incluída uma disciplina de conversação, uma nova propedêutica abordando a lógica, a retórica, a sofistaria, a dialéctica, a gramática, a maiêutica, revolucionando-se a didáctica e a pedagogia, contornando a demagogia e a mania deste pessoal andar sempre com os cornos no ar, desatento de tudo, incapaz de pensar, de reagir, de agir e de avançar.

O país não está somente parado no tempo, regride, regride no campo económico, social, cultural, politico e a continuarmos assim não tardará que a moca e o fogo voltem a ser para nós os principais instrumentos do dia-a-dia, a par evidentemente do urro, do grunhido, do grito, do monossílabo, do vocábulo, redondo ou não… 



* Glosando a entrevista ontem ou anteontem dada por Mariana Mortágua à TVI

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

382 - O ESTRANHO E EXTRAORDINÁRIO USUAL


Esta história que hoje vos conto nem é ficção, é verídica, se bem que salpicada de sal para vos proporcionar uma mais agradável comichão no palato. Como terão oportunidade de aferir, há mais marés que marinheiros, nem eu imaginaria que no mesmo mês em que me fizeram passar as passinhas do Algarve me desforraria a bandeiras despregadas… Será caso para dizer que cá se fazem cá se pagam.

Mais vale tarde que nunca é bem verdade, mas tão cedo nem o calor da vingança se dissipará das vossas mentes sanguinárias, sempre esperando de garras afiadas as historietas que tenho para vos contar. Esta conta-se em poucas palavras, é hilariante pelo ridículo de que cobre os protagonistas, e metáfora das cabecinhas pensadoras em cujas mãos entregaram há muito este país de provincianos.

Num sábado não muito recente, talvez há quatro ou cinco anos e mais concretamente num dia 11 de Julho, este vosso amigo engalanou-se que nem um pavão para ir comer uma sardinhada a uma cidadezinha perto, a convite do moto-clube local, convite recebido pelo Facebook. Fato e capacete à maneira, bota de ferro por causa das curvas e das rectas, óculo de sol p’ra cortar o vento, só o cabelo esquecera pintar tuti-color como era meu habito… Rumei à vila, ou aldeia, nem sei que vos diga, e lá entrado logo deparei com inusual movimento de motards, a maioria de cabedal e capacete integral, e apesar de ter chegado bem cedo eles eram já muitos.
 
Percorri ruas e ruelas em busca do CBD, até que me deparei com o que vim a saber ser a Praça da República, que mais me pareceu o 5 de Outubro, tal o movimento de peões que àquela hora apresentava. Uma passadeira com mais de cinquenta metros atravessava-a lado a lado. Eu ia quase parado, com tanta gente passeando por ali nem poderia ter sido de outro modo, talvez eu circulasse a cinco à hora, os pés a rojar o chão, pois a tal velocidade é impossível manter a mota em equilíbrio sem a ajuda das “ botas de ferro “ a fazerem de tripé… ou quadripé… Alarguei os olhos uns vinte metros para cada lado da passadeira, mantive a velocidade que trazia, menos que essa só parado, e avancei atravessando-a para parar, mais à frente, frente a uma formosa pastelaria, famosa pelos seus bolinhos pequeninos e gostosos, que nem fazem mal à dieta nem à psico, isto é nem deixam arrependimento nem peso na consciência…

Entrei, bebi um café, dei dois dedos de conversa com um amigo que há muito não via e, mal saí, um apito da autoridade policial logo me fez pensar que estacionara precisamente em cima dos riscos assinalando o espaço para cargas e descargas, e que eu nem sequer vira… Cumpri, fui junto da autoridade demandando salvatério pelo lapso e admitindo a culpa… Mas não, nada disso me esperava, o que me esperava, espantem-se, era uma acusação de atravessamento da passadeira dos peões em velocidade excessiva !  Excessiva e agravada com desrespeito pelos peões, e, pasme-se ! Não visualizada, isto é não presenciada por qualquer policia, mas baseada numa denúncia ! Sim ! Falo-vos verdade ! Não acreditam ? Pois acreditem ! Pretenderam multar-me devido a uma delação ! Eu nem queria acreditar ! Defendi-me e argumentei como pude, fiz ver o ridículo da situação e o regresso aos tempos da PIDE e dos “ bufos “ mas nada demoveu os senhores Feliz e senhor Contente, cada vez mais teimando absurda e prepotentemente no que eu já considerava uma situação abusiva dos meus direitos de cidadão e em que somente uma vez, numa tourada em Cóias, ou Coina, me vira tão igual e estupidamente tratado. 


Fui reclamando à medida da injusta imposição das suas prepotências, a tal ponto que, certamente desejosos de me “apertarem” mandaram vir da central uma colega com um estojo para que eu soprasse o balão, operação que deu zero, pois que a acusar algo, teriam que ter-me deixado em primeiro lugar comer a sardinhada que me levara ali. O zénite da coisa deu-se quando um dos agentes preencheu a terceira ou quarta folha do livro de multas com ajuda via rádio de um colega na central, até aí eu recusara-me a assinar todas elas, pois umas não discriminavam a hora da infracção e da autuação, entre as quais mediavam quase duas horas… outra porque não referia estar eu a ser alvo de mera denúncia não flagrantemente presenciada pela autoridade, noutra recusavam apontar o denunciante, ou nada diziam acerca do facto de eu envergar um capacete integral facto que durante a ocorrência poderia contribuir para ter sido facilmente confundido com um qualquer outro eventual e verdadeiro prevaricador, é que nestas coisas das leis e do direito o que conta são os factos, enfim, uma lástima de actuação e exemplo das autoridades digno de nota e nota dó…

Já farto da situação e vendo não atarem nem desatarem arrisquei e pus termo ao degradante espectáculo dizendo aos senhores agentes que se desejassem me prendessem, e ofereci-lhes os pulsos bem a jeito de lhes ser facilitada a colocação de uma algemas, tendo-lhes afirmado ao mesmo tempo ser o vagar coisa que me sobrava, ser fim-de-semana e andar em turismo, pelo que, prepotência por prepotência, o mais tardar na segunda-feira um juiz decerto ouviria as minhas razões. Resmungaram, que esperasse a multa em casa ida pelo correio, e foram desandando de mãos atrás das costas agitando o molhe das chaves e o apito. Eu nem o papel da dita multa assinara ou aceitara, pelo que arrisquei virar-lhes as costas e fazer-me à vida…

À vida e à esquadra, pronto a apresentar queixa da prepotência de que fora alvo, do que fui demovido pelo agente de serviço que me aconselhou a contestar a multa no prazo uma vez recebida via CTT, visto que os agentes não eram por mim acusados de má educação ou violência, e não eram, eram-no apenas de abuso de autoridade e de prepotência… mas enfim… agradeci-lhe, virei as costas, já não fui à sardinhada por me ter passado a vontade, duas horas de tortura quebram o mais forte… jurei a mim mesmo não voltar a fazer turismo naquela triste terra nos próximos duzentos anos e acelerei quanto pude até casa para queimar a raiva que me consumia, mas atenção, tudo dentro dos limites legais, não vá alguém querer multar-me por confessar aqui excesso de velocidade…

“Não perderam pela demora” assim reza outro velho aforismo popular e, ainda antes do fim desse mês de Julho, quando em todo o país as autoridades eram instruídas para poupar, para não fazer giros diários superiores a trinta quilómetros, diminuindo e fazendo perigar a segurança dos cidadãos, eis que a esquadra da dita terrinha ou alguém que dela fazia parte organizou uma matança alentejana, (desconheço se obedecendo às imposições da ASAE), precisamente no último fim-de-semana desse mês e, nadando em dinheiro ou autoridade, envia a Évora propositadamente em serviço de “táxi”, ida e volta, uma viatura da esquadra, paga por mim e por si que me está lendo, ambos contribuintes sem obrigação de suportar os devaneios deste ou destes agentes, que foram a casa buscar e depois devolver um excelente magarefe, reformado da Manutenção Militar e homem de muitos pergaminhos nesta área, que passa os dias a matar e esquartejar carcaças, e com nome conhecido e afamado na praça de Évora.

Ora quem não tem dinheiro não deve ter vícios.

E eu não estou a bufar, estou a comentar e dar testemunho de uma situação caricata mas verídica, extraordinária mas usual entre nós, pois entendo que a “quem do seu for mau despenseiro, não devo fiar o meu dinheiro” … E tu que achas meu amigo ?

Aches o que achares, a verdade é que seja Verão seja Inverno, quando se declara uma guerra, nos devemos lembrar alargar o Diabo o Inferno…

              Ah ! A multa ?? Ainda estou esperando que chegue...

terça-feira, 20 de setembro de 2016

381 - MARIA DO ROSÁRIO, A POETISA PINTORA.



Não sou piegas, nem tão pouco um grunho insensível, tenho-me até descoberto no que de mais recôndito em mim existe já que dia após dia a poesia vem, comigo, ganhando maior adesão e significado. Não aprecio poesia por poesia, para ser franco detesto o rimar por rimar da poesia popular com que se enganam os tolos nos jogos florais, compreendo que saia mais barato e dê menos trabalho distribuir prémios que ensinar àquela gente os contornos da poética, cousa a que abro pequenas excepções, como ao poeta António Aleixo por exemplo.

 

Aprecio poesia inteligente, trabalhada, lavrada ou bordada, culta ou como queiram chamar-lhe, e já agora retiro o bordada não vá dar-se o caso de pensarem que a adoro adornada de enfeites e confetes, referi bordada do sentido de trabalhada, no entanto também admiro a poesia espontânea, evidentemente desde que rica de sentido e de conteúdo, substância, forma, corpo, o que a coloca longíssimo das quadras populares dos jogos florais que atrás referi.

 

É neste sentido que sou, e ao longo dos anos me tornei um admirador de Maria do Rosário Pedreira, MRP, a cuja poesia torno e retorno com uma cadência eivada por uma cada vez menor amplitude, pois se chapéus há muitos, e palermas, a poesia de MRP reveste-se porém de limites ilimitados, desculpai-me a contradição e redundância. Ainda que havendo muitos poetas, cada um assinala presença no mundo com a sua marca, o seu estilo, a sua época, ou geografia. Com a sua particular "literatura" MRP é única entre os únicos, “primo inter pares” ela surgiu-me como a poetisa da pintura, Maria do Rosário Pedreira escreve como quem pinta.

 

E pinta mesmo, pinta sensibilidades como quem pinta aguarelas, e do remanso de cada poema surge uma tela, que me sensibiliza até ao mais fundo de mim, até ao íntimo, cousa que eu mesmo desconhecia. O vento despenteando searas, os barcos aos gritos sobre as ondas, a agitação dos dedos fazendo crescer morangos, ou passeando-se insolentes nas sombras de um decote, cores vivas que a poetisa nada impunemente selecciona, grão a grão, pincelada a pincelada, abrindo ante nós paisagens imaginárias e deslumbrantes, sensuais pequenas histórias, as suas histórias, que bem podem ser as grandes histórias do mundo.  




Diz-nos MRP que o amor não cabe num poema, em nenhum poema, nem se enquadra em nenhuma geometria, nenhuma arquitectura, um poema pode ser, deve ser como uma explosão, como cratera em erupção, um trilho abandonado, saudade, farrapos de ausência, pulsão, convulsão, esperança, uma canção, redenção, um raio de sol pela manhã. Um poema é refúgio, repetição, memória, ressurreição, sendo a poesia como as coincidências que nos unem. Amamo-la, à poesia, ou por essas coincidências ou porque nos lembra despojos que o mar deixa de madrugada espalhados numa praia.

 

Maria do Rosário Pedreira, MRP, é exímia até no auto-retrato que nos deixa, um corpo numa tela, como um mapa onde tenhamos a prerrogativa de descobrir ilhas, paraísos, édens, o corpo exposto como um compêndio onde possamos passear os dedos devagar, tocando as linhas com que se cose a costa que nos abre os horizontes, ou as curtas linhas da mão, balizando sombras, conjecturas, sonhos, projectando as ondas que lhe balançam nos olhos. Os poemas de MRP são pedacinhos de vida flutuando na poeira dos dias e que facilmente confundimos com flores que o vento despiu, ou com estrelas escapadas das trevas, pingando luz, quais lágrimas de sol, alvas e puras penas de um anjo que perdeu as asas por amor.

 

Partida e desilusão vogam também neste seu peculiar e desvendado universo, pois a vida não é nada daquilo que sua mãe lhe dissera quando lhe começaram a crescer os seios. Parco amor e forte solidão depressa murcharam as rosas que lhe deram e por se ter deitado com mais homens que aqueles que amou, quando o que verdadeiramente amou nunca com ela acordou. Perdido o medo de morrer, desertas as ruas, fechadas as janelas, não quer ficar, não quer ver murchar as rosas prometidas pois ninguém virá fechar-lhe as pálpebras debaixo das quais os olhos descansarão como seixos numa praia que o mar nunca tocou...

 

Acicatar-vos o apetite é o meu fito, longe de mim sonegar-vos o prazer da leitura de MRP, só lendo poderemos extasiar-nos e deixar-nos embalar e conduzir por esta mulher que pinta versos, poemas, poesia, como quem nos desvenda e segreda o que lhe vai na alma em cada dia.

 

Boas leituras.