NÃO SEI NÃO SEI NÃO SEI NÃO SEI NÃO SEI NÃO SEI
Não sei onde
pára o meu blusão azul dos dias frescos,
o
tempo arrefeceu e vou deixar de andar descalço pela casa,
antes
que me constipe, ou te ouça ralhando-me tanta leviandade.
É saudade
isto que sinto, dos dias curtos, da casa acolhedora,
da chuva, do cheiro a terra molhada, do
escuro pelas seis horas,
da gata
ronronando e roçando-se-me nas pernas fugindo da rua,
chegando a casa molhada e mendigando uma escovadela.
Não sei
onde pára esse meu blusão meia estação, corri a casa toda,
abri
até o teu roupeiro onde, como na vida,
tudo
tens arrumado de um modo ordeiro,
os casacões
primeiro, os casacos, os vestidos, os casaquinhos de lã,
as saias, os blusões
leves, as calças e os calções,
entre
os quais não está o meu blusão aquele,
mas
dei de caras com estes vestidos de que tanto gostas,
e já
foram alargados e encolhidos uma data de vezes.
Toquei-os
com ternura e fiquei por momentos olhando-os com carinho,
não
é pela balança que regulas, nem pelos equinócios ou solstícios,
a ti
calhou-te a majestade dos dias, talvez por mais caprichosa,
mais elegante, duma
exigência que não é para toda a gente,
mas
que dominas com paciente mestria,
ou deverei
dizer com uma mestria paciente ?
Olha
ali naquele canto as mantinhas, as écharpes, todas dobradinhas,
a
caixa dos turbantes e este cheiro que eu tanto gosto,
bolotas de naftalina.
Mudaram-te
o norte de lugar e passas agora os dias de agulha na mão,
acertando o rumo,
acertando tudo como se fosses partir para um outro mundo,
e eu, armado por
vezes em filisteu, finjo não te perceber, não te ver,
não entender
esta tua revoltada obsessão contra o novel azimute,
o
novel azimute que os fusos das Moiras tecem,
como
se ventos contrários te empurrassem,
contrariando-te
a sina e ameaçando cortar-te o fio de Ariadne,
o
fio, a trama que te liga ao mundo, e o futuro em que acreditaras.
A vida
é uma viagem que tens cruzado como imponente navio,
sempre
sulcando as águas e as vagas alterosas de sete mares que,
Neptuno
espalhara na tua frente e agora, na hora da manutenção,
mais
estranha ainda se torna para ti a placidez dum estaleiro,
o sossego
lúgubre duma qualquer doca seca.
Compreendo-te,
adicta que eras do nunca parada,
admiradora
que foste da Teresa Madre a quem hoje convidam ao marasmo, cuja contemplação te
convida, permite e consente e que recusas enfrentar, porque as marés mortas
nunca foram a tua praia.
E não
imagino onde estará,
não acho
aquele blusão que me ofertaras na feira do Rossio de S. Braz,
azul,
da cor do primeiro céu sob o qual há muitos anos nos acoitámos,
que recordo
como se fosse ontem,
tal
como lembro as constelações que nos foram manto nesta galáxia,
nesta
galáxia que juntos começámos nessa noite a percorrer,
e
cuja sina fora selada quando nos beijámos,
não
sonhando, antes confirmando,
vendo
p’lo canto do olho céus e chão pejados de estrelas cadentes,
era
isso, eram elas as estrelas que estavam chovendo e cantando,
e atapetando
em cascata luminosa e cintilante o chão que pisávamos.
Cá está
ele !
quem
se lembraria de o colocar aqui que o não vi quando dele precisava,
agora
é tarde, já não vou sair, vou ficar aqui contigo,
repartindo
o tempo, contando memórias, contabilizando-as contigo,
conferindo-as
contigo,
fazendo
com elas montinhos como com as fichas nos casinos,
e para
que as possamos enrolar em rolinhos de papel de lustro ou de seda,
como
fazíamos com as moedinhas que guardávamos numa gaveta,
num
cofrinho só para elas, só para nós,
e
quando não couberem construirei parra elas um baú tal,
que tenha
em vez de rebites, estrelas,
um
baú com um candelabro em cima,
e
nele uma dúzia de velas sempre acesas.