segunda-feira, 5 de março de 2018

492 - ... ME TOO… YES ME TOO, AND YOU ??????


O edifício tinha uma fachada linda, estava à data pintado num cambiante de azul, ora claro ora escuro, e que jogava muito bem, tinha janelas amplas, um jardim na entrada e, glória das glórias vidros duplos o que, na esturrina do verão mais que um alívio era um consolo para todos nós.

Estava instalada a repartição, resultara de um dos felizes primeiros actos de descentralização da administração pública, já lá vão uns trinta anos, é hoje um serviço autónomo dentro da tutela. Eu chefiava uma secção cujos gabinetes, todos virados a nascente, nos garantiam calma, bem-estar e paz desde a manhã, uma paz maravilhosa que durava todo o dia.

Adianto mais alguns pormenores, não se ganhava mal e, como hoje, ninguém fazia nada a não ser preocupar-se gerindo a carreira, digo estar atento às promoções, porque de resto nada que aparecesse era urgente e, sendo-o, deixaria logo de o ser.                                                                                                                  
Mas em dias não elas eram belicosas e difíceis de aturar, qualquer que fosse o espaço, nesses dias apertado para dúzia e meia de mulheres. Eu limitava-me a gerir os ânimos, a manter a calma, a ouvir muito e falar pouco, sempre ouvira dizer, e ainda se diz, “o calado é o melhor “.

Ela entrara já enfurecida e nem me ouviu, nunca me ouviam sempre que calhava dizer-lhes quanto àquele item em particular nenhum poder ou influência eu ter, nada podia fazer, nenhuma capacidade de manobra me restava ou me estava atribuída, reservada ou em sobra. Para bom entendedor meia conversa bastaria, para a Glória, tal como para outras, nem a conversa inteira chegava, simplesmente nem queriam ouvir o que repetidamente lhes dizia, ou por simplesmente não crerem ou não quererem ouvir o que de mim ouviam.

Quanto a isso cada uma delas não era em nada diferente das outras, gesticulavam, berravam, gritavam, glorificavam a sua posição, o seu pensamento, a sua razão e, não me ouvindo, ficavam contudo contentes por as ter ouvido, esperançosas, expectantes, e algumas, nem interessa quais delas nem quantas, crentes, embevecidas, agradecidas e resolvidas a recompensarem-me por tamanha atenção e consideração dedicadas, dispostas a mostrar ou demonstrar-me logo ali a sua gratidão, outras mais logo, outras mais tarde, outras estamo-nos a entender, temos que nos ver, ninguém precisa saber, sei que me estás a perceber.


E percebia, oh se percebia, e com umas era logo ali a questão dirimida, com outras era mais logo, mais tarde ou conforme combinado, entendamo-nos, estão a perceber ? Só vos peço que ficais calados, ninguém precisa saber, ou perceber, estamos entendidos ? Eu devia andar pelos quarenta e já então era bonito, era mesmo muito bonito, ainda hoje o sou, vocês aquelas que me conhecem testemunharão certamente em meu favor. Garanto que não havia pressa, nem pressão, não havia sedução, nem submissão, nem ascensão ou ascendente, nem eu era nem nunca fui prepotente, oportunista, abusador e muito menos violador, tomara eu que não me violem a mim. 

A haver alguma coisa seria apenas glorificação, e nisso fui sempre tão democrata quão liberal, se uma era a outra era-o igualmente, não por questões de fé ou de devoção mas de igualdade de tratamento, não de género, nesses tempos era assim, era essa a cartilha, e chefe era chefe, o respeitinho sempre foi muito bonitinho, agora é que é tudo tu cá tu lá, maricas para aqui maricas para acolá, nessa época eu era mais o turismo, foram os anos das grandes passeatas turísticas, da Madeira, dos Açores, Marrocos, Itália, Alemanha, Suíça, França, Espanha, Andorra, e a porra dos pinhais e eucaliptais, conhecia todos como a palma da minha mão, inda hoje gosto do cheiro a pinho e a mentol, gosto de ouvir a passarada, de a observar, ter na mão, criei pombos, canários, pintassilgos, periquitos, por essa época vinham comer-me à mão.
 
Tirando a criação da passarada eu nada mais fazia, em boa verdade nada pedia e nada conseguia, porém, mau grado não mexer uma palha os resultados apareciam, talvez por intervenção divina, minha é que não, e então, promoção hoje promoção amanhã toda a gente andava contente, feliz e reconhecidamente agradecida. Quanto mais eu dizia que não, que nada tinha a ver com aquilo maiores os agradecimentos, ganhei mesmo fama de modesto e, mais que isso, de homem honesto. E naturalmente uma legião cada vez maior de fãs…

Melhor que eu só a Santa da Ladeira, cheguei a pensar em distribuir umas pagelas e montar um consultório de vidente, “Professor Humbertão, cura todos os males e todos os nãos”, imaginam a cena, ou não ?  


Inda hoje a Glória crê, isso mesmo me diz sempre que me vê, ser eu o santo milagreiro que lhe meteu na mão tanto dinheiro, não se cansando de alardear a boa reforma que tem a qual não se priva de atirar à cara de outras com desdém. Claro que fico contente e, por uma última vez nego a minha culpa ou participação na sua tão feliz situação,

- Meu maroto, sempre tão modesto, a humildade fica-te mal Baião, para mim serás sempre o meu santo milagreiro, o meu Baiãozinho.

e no entretanto apresenta-me às noras, aos genros, à catrefa de netas e netos. Eu sorrio, passo-lhes a mão pelas cabeças, afago-lhes os cabelos, sorrio e conformo-me com a minha sina.

Depois vejo as cenas do me too no telejornal e volto a sorrir, varro o ecrã com o olhar em busca de noras e genros, netos e netas, famílias felizes, gente com carreiras, gente de recheadas carteiras, gente no topo, e volto a sorrir.

A mim já tudo me faz rir, se não rir pelo menos sorrir, e não há já  modo de me convencerem a levar de novo esta gente a sério, nem estas gentes nem este mundo …

quinta-feira, 1 de março de 2018

491 - V DE VITÓRIA, DE VITÓRIA, VITÓRIA ...


V DE VITÓRIA 

Sim são meus dedos em V,

sim são um sinal de vitória.



E por que não um sinal de glória ?

ou dedos gloriosos…



Não são só dedos fugindo p’lo teclado,

posso imaginá- los passeando em ti,

irrequietos e indisciplinados,

adoram andar em desvario !



Mantenhamos a serenidade,

a mente é muito criativa  e um perigo !



Penso-os subindo montes, descendo vales,

demorando-se em rotundas,

e entroncamentos…



Dedos mágicos, práticos,

atrevidos, insinuantes,

destemidos na intenção,

desmedidos na ambição…



Adoram liberdade e rebeldia,

e eu, ser como sou !



Largando gotas de orvalho,

 destilando-as aos primeiros raios de sol de cada dia !



Esses dedinhos são muito irrequietos,

o menino é um provocador,

não tenho a menor dúvida !



Provavelmente os meus também serão !



O diagnóstico virá após minuciosa inspecção !

a sensibilidade acudirá a dedinhos milagrosos,

a estímulos dum olhar demorado e apreciador,

a tudo que a vista permita,

nada se pode desperdiçar…



Tudo é aproveitado,

admirado e demoradamente apreciado !

e degustado !

então as pontinhas das línguas ?



Adoro miminhos porque me alimento deles,

e coisas raras, já se vê !

dedos…

 dedos deliciosos,

aposto !



São dedos muito cuidados, unhas aparadas,

sem espinhas carnais,

nada que possa romper umas meias,

 ou causar arrelias que tais,

são dedos acarinhados e carinhosos,

deliciosos e doces, ternurentos…



Laboriosos e irresistíveis...

simultaneamente calmos mas insinuantes…



Perfeitos de graça e ousadia,

picantes,

alimentam esperanças,

são tão aliciantes que,

o que eu mais queria era perder a sensatez…



É sempre um prazer para mim,

dedilhá-los através da magia das palavras,

existe tanta  e doce loucura em tais trinados,

dedilhados repetitivamente,

o que eu gosto disso,

e de dois dedos de conversa,

são eles quem faz toda a diferença…



Sim, adoro, trinados, dois dedos de conversa,

porque os nossos são dedinhos mágicos,

falam com convicção !



Verdade,

dois dedos,

construo com eles os miminhos que adoro,

confesso,

sou parte interessada no caso,

por outras palavras,

gosto de saber que estás bem,

apesar das circunstâncias delicadas…



Que pena se te martirizas,

não queiras ser o teu carrasco,

desculpa se estou sendo rude,

mas também temos que pensar,

cair em mim, cair em ti, cair em si,

pensar no ser, no bem estar,

no ir e voltar…



Pensar pode ser doloroso,

o recordar cruel,

as lágrimas teimosamente fel,

inundando a face...





Deixo aquele abraço.






segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

490 - GENTE COMPLICANDO O QUE É SIMPLES...


Mau grado tanta cautela o malandro escapou-se, escapuliu-se entre os dedos, a vida tem destas coisas, umas vezes oitenta outras oito somente. O outro surgira-lhe pela frente e ele pisara repentinamente o travão enquanto em simultâneo buzinava com estridência.

Eu nem pusera o cinto de segurança, pelo que dei um salto no banco e por pouco não bati com a cabeça no tejadilho do carro, mas ouvi-lo foi a minha salvação, parei instantaneamente e a coisa foi por um triz, não tivesse eu parado e certamente lhe teria dado um valente porradão. O outro carro era bem visível, pelo menos para quem o visse, grande e branco, mas surgira no meu angulo morto e se bem que cuidadosamente em marcha atrás e olhando p’los três espelhos à minha disposição não o lobrigara, sorte eu estar recuando a dois à hora quando não …

A ruidosa buzinadela chamara a atenção de uma centena de mirones saídos do Clube de Motards frente a minha casa, os quais de copo na mão acudiram à rua p´ra gozarem o espectáculo, e o espectáculo era eu, de chinelo/sapato, pijama arlequim azul e branco, um robe por cima de tudo e fazendo de mim um cossaco pronto a uma daquelas danças nem em pé nem agachado. Naturalmente não gostei, nem dos mirones nem de toda a vizinhança assomando das janelas, é um bairro pacato e buzinar daquela maneira é o mesmo que dar um pontapé num formigueiro. A coscuvilhice é tão velha quanto a história, faz parte do género humano, e muitas vezes confundida com o Manel Germano.

Estragos na viatura do paspalho. 

Tinha o carro estacionado ao lado do passeio e metê-lo na garagem era uma questão de noventa graus, mas a fim de dar a volta mais larga e o enfiar nos portões sem neles bater, faço habitualmente uma marcha atrás de poucos metros que me permita alargar a curva e entrar de frente. Foi nesta pequena manobra de marcha atrás que a coisa se deu.

Há quem não tenha noção da relatividade das coisas, quem não distinga oito de oitenta, quem ande na rua de carabina caçando moscas ou esteja pronto p’ra ir a África caçar leões com uma fisga… Nem sei quem bateu em quem, se eu que fazia marcha atrás e parei, se ele que vinha no seu caminho e deparou comigo não tendo contudo e devido ao sobressalto parado a tempo. De qualquer modo saltava à vista ser um assunto de lana caprina, uma insignificante esfoladela no meu pára-choques, um risquinho de caca no dele, uma questão de pentelhos havia de dizer o ministro Catroga se estivesse presente.

Saído do carro e apreciando a coisa abri os braços, pedi desculpa e prontamente assumi a culpa* alegando não haver problema, tinha seguro, ele certamente também, seria só tirar o carro do meio da rua, estávamos impedindo o trânsito e sendo gáudio da turba dos mirones, ele que entrasse, na garagem trataríamos dos pormenores.

Foi quando a coisa descambou, o homem, o moço, o jovem, o parvalhão não deve saber o significado de declaração de acidente amigável, tem mesmo esse nome, consta no cimo da papelada, amigável, destina-se a evitar conflitos entre condutores. Ora se é amigável é para ser tratada entre amigos, mais a mais eu não lhe arrancara o pára-choques, nem lhe partira a viatura ao meio ou virado a dita do avesso.

Mas ele grita:

- Você daqui não sai, ó Marina chama lá a policia !

Confesso que me pareceu ele ter dito ó Varina chama lá a policia mas preocupado com a atitude brusca e indelicada dele, que largara o volante e saltara do carro para me segurar a porta não se fechasse ela e este bandido fosse fugir-lhe, mesmo em pijama e chinelo/sapato, c'o carro atravessado na rua apontado à garagem, e visto por centenas de mirones/testemunhas, dizia eu temendo ele que este bandido dado a gravidade do acidente fugisse do local do mesmo. 

Confesso, de há muito tempo a esta parte se há coisas que me dão vómitos uma delas é a parvoíce das pessoas, a sua cegueira, a estupidez, pelo que à primeira distracção do bicho bati com a porta, tranquei-a, meti a primeira e avancei garagem dentro. Nem sei como o parvalhão num pulo se meteu à frente do carro, mas sei que teve no mínimo muita sorte ou esperteza para com novo pulo sair da frente dele, se quereria dessa forma impedir-me de entrar ou guindar-se ao estatuto de mártir nunca saberei.

Estragos na minha viatura.

O que sei é que o parvalhão podia ter arranjado a merda dum trinta e um, ter ficado com as pernas entaladas, a bacia partida, ou a coluna, ou paraplégico, ou tetra. Eu fiquei branco, siderado, quando me apercebi da sua idiotice, o cabrão podia ter-me arranjado uma carrada de problemas, até de consciência. Há gente mais parva do que possamos imaginar, e por causa de um pentelho diga-se. Fechei o portão do quintal, avisei o patareco que não se atrevesse a transpô-lo e antes de bater o basculante da garagem disse-lhe que sim, que fazia bem, que se entendesse com a polícia e passasse bem.

Claro que daí a quinze minutos tinha a PSP a bater-me ao portão da garagem, abri-o, convidei-os a entrar pois queriam ver o veiculo e os estragos, voltei a avisar o parvalhoco para que nem pensasse em transpor o portão, cedi à PSP a carta de condução e o cartão de cidadão, únicos documentos que me solicitaram, educadamente diga-se, foram sempre impecáveis, tendo eu solicitado que me submetessem ao teste do balão a fim de ficar registado não me encontrar sob efeito de álcool ou de alcalóides, ao que me responderam ser de lei, sempre que são chamados a intervir num acidente os envolvidos serem automaticamente submetidos a esse procedimento, por isso Baião sopra e cala-te, e não, nunca fiz o teste do balão, é esta a primeira vez, respondi ao agente que me interrogava e me pediu posteriormente que preenchesse um questionário onde descrevi, a seu conselho e sumariamente a minha versão do acidente ocorrido. Quanto ao balão naturalmente marcou zero, que esperavam ?

Preenchi-o assumindo a culpa, o que não devia ter feito por duas razões, a primeira porque a culpa será avaliada pelas seguradoras e pelos seus peritos de acordo com a lei e baseadas nas nossas declarações amigáveis, a segunda por ter constatado à força de ver o parvalhão “dançando” em redor das autoridades enquanto eu era inquirido e me ter apercebido exalar ele um forte hálito a álcool a par de algum desacerto nos passos e das pernas mas, como competia à autoridade avaliar e analisar esses factos, mais a mais fazem parte do seu protocolo de actuação, assim me tinham dito elas mesmas, calei-me.

Calei-me mais por estar farto de dar espectáculo para a turba e para a vizinhança pendurada das janelas, pois se haviam juntado já umas três viaturas policiais e, que me tivesse apercebido no mínimo cinco agentes, quatro eles e uma ela, todos eles volto a frisar simpatiquíssimos e a quem decerto aquela merda de ocorrência, insignificante, estragara possivelmente a tarde desse sábado 24 de Fevereiro do ano da graça de 2018. (18:15h).

Eu acabei por me retirar para os meus aposentos pensando de mim para mim haver gente que só sabe complicar o que é simples. Eu que até estava disposto a pagar a insignificância do meu bolso só para não perder o prémio de seguro e ver a próxima cobrança aumentada. Agora vai ser um calvário até que tudo se resolva, tudo por culpa dum parvalhão incapaz de discernir o significado de amigável inscrito no cimo da participação de acidentes às seguradoras.

Provavelmente será um daqueles taradinhos que ante o frio ou a chuva não hesitarão em meter a mulher na rua e enfiar o carrinho na cama. Interrogo-me, que terá o parvalhão ganho com tanta parvoíce a que deu azo ? Rapidez ? Justiça ? Paz de alma ? Castigo aos bandidos provocadores que infestam ruas e estradas ?

Um lugar no Paraíso ?

Haja Deus …




* Apesar de as seguradoras recomendarem que nunca o façamos, a culpa será avaliada por elas e pelos seus peritos de acordo com a lei  e as declarações amigáveis que entregamos.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

489 - ADEUS BENEVIDES MEU QUERIDO AMIGO


Ao entrar tomei um ar condoído, não era dia para festas e a disposição de toda aquela gente nem deveria ser a melhor pelo que me apresentei de presente nas mãos, bem visível e no sentido de desviar outras atenções e ali as fixar procurando dar algum ânimo à casa. Como quem carrega uma lamparina de Aladino esbocei um sorriso amarelo, pequeno, o suficiente e quanto bastasse para que toda aquela trupe me abrisse portas e desimpedisse os corredores até à velhota, desejoso que depois me esquecessem por completo.

Não era tarefa fácil, tínhamos acabado de enterrar o meu amigo Benevides, a manhã estivera fria, eu sem querer dirigi-me ao café habitual e pedi um Licor Beirão, não suporto funerais, nem mortos, pois inconscientemente alegro-me quando algum parte, sobretudo os da minha idade, e dou graças a Deus por ainda por cá andar mas fico com um peso na consciência que me dura dias, pelo que emborquei o licor de um trago para, mal acabado esse rito, pedir que me enchessem de bolinhos secos, dos mais baratinhos, uma das caixinhas mais pequeninas que tivessem e a fechassem com um grande e vistoso laço.


Era essa caixa que levava nas mãos quando bati à porta deles, não que me interessassem minimamente, nem a velhota fazia caso algum deles, mas eu já os ia conhecendo tão bem quanto ela, ela sim o verdadeiro móbil da minha visita. Eu adorava as nossas conversas, para ser franco idolatrava-a, não tinha sido minha professora mas fora-o de literatura no liceu a vida inteira. Era esse o nó entre nós, a literatura, e nem vos conto quanto com ela aprendi e continuo aprendendo. Por seu turno ela tem em mim um ouvinte de excelência e como tal não esconde quanto as minhas visitas lhe agradam.

Reparei ao repeti-las, às visitas, que toda aquela rapaziada não via na velhota mais que um estorvo, e ela neles mais que uns adoráveis netinhos e uns verdadeiros abortos. Confessou-mo uma vez portanto nada estou  inventando ou conjecturando. Para quem tinha sido amante e mestre de literatura a vida inteira, quem não pegasse num livro só poderia ser filho do demónio, e por vezes malfadava a hora em que tinha parido quer as filhas quer os filhos, inda que na sua tábua de classificações não os tivesse na conta dos netos, a esses é que nada perdoava, até por eles se abarbatarem com tudo que a velhota tivesse, desde um qualquer anel ou pregador, a uma fatia dourada ou mesmo uma simples torrada.

Gananciosos e esfomeados, assim ela os mimava, e eu, mal me deram oportunidade ao meterem o nariz na caixa dos bolos, antes que lha surripiassem desabafei para um deles, todavia de molde a que todos me ouvissem:

- A avozinha hoje não está com apetite, revolveu e cheirou todos os bolos, a bem dizer a todos babou sem nenhum ter mordiscado, nem sequer chupado, deve ser do fastio, ou do Senhor ter levado hoje o teu tio.


Quando digo o teu tio digo o tio de todos eles e enterrado nesta mesma manhã, ou seja o Benevides, um tipo um tanto ou quanto amaneirado e com quem em boa verdade nunca tinha tido uma amizade muito próxima, quanto mais intima, os seus tiques de afectado nunca ligaram muito bem com a minha intolerância quanto a determinados procedimentos seus a cuja interacção sempre que podia me furtava, aturava-o mor da velhota, e agora com ele enterrado e bem enterrado os dias serão para mim e para ela certamente mais risonhos, especialmente para ela.  

Pelo menos desta vez terei a certeza que ninguém lhe roubará os bolos, aliás belíssimos e que em parte comemos ao redor de uma camilha e acompanhados de um bule de Earl Grey a escaldar com sabor a caramelo e baunilha, como só nós dois gostamos dele. Nem imaginam, uns bolinhos de comer e chorar por mais, uma tarde bem passada, cheguei há minutos, de lá, digo dela, trazendo recomendada a obra “Sementes Mágicas” de V. S. Naipul, um gentleman inglês nascido na Trinidade e prémio nobel da literatura 2001, da D. Quixote. Tenho que falar com a Helena Girão. Quanto ao Benevides, sete palmos abaixo de nós e no Espinheiro, o Senhor lhe torne a terra leve.

Ámen.



sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

488 - A TRIBUTE TO MY DEAR AUNT JOAQUINA


Não guardo de mais ninguém recordações como as da tia Joaquina, nem mais nem iguais, inda que tenha sido com ela que menos convivi, e durante menos tempo. As últimas lembranças estarão agarradas aos meus catorze ou quinze anos, nem sei precisá-las com exactidão, depois morreu-me, assim sem mais nem menos, assim do pé pra a mão e, após isso somente uma campa no cemitério dos Remédios, por mim visitada mais vezes que quaisquer outras, logo por mim, logo eu, absolutamente nada amigo dessas coisas, de andar metido em igrejas, em conventos, em procissões ou em cemitérios e idênticos mistérios.

Morreu simplesmente, e morreu-me quando eu menos esperava e mais necessitava dela, quando a vida me ocupava de tal modo que mal dei pela sua partida, indiferente à sua morte, por na altura ter coisas mais urgentes a fazer e em que pensar. Pois tinha, nem me apercebi na ocasião como ela era diferente, porém a sua falta foi vincando essa grandeza até que, a ausência e a saudade da sua presença trilharam o seu caminho do coração à consciência, tão depressa quão eu amadurecia e sentia o prejuízo, ou para ser mais rigoroso por sentir ausentes as suas falas, as suas conversas, os conselhos, as advertências, as alusões e o modo calmo como me transmitia impressões, emoções, sentimentos e paixões.


Abrando sempre quer de carro quer na mota aos três quartos da descida na rua Serpa Pinto, abrando sempre ao aproximar-me do beco de Alconxel, ali à esquerda, ao fundo do qual residia a tia, numa pequena e catita casita portuguesa entalada entre outras iguais e fruto da judiaria, sua última e única morada conhecida e naquela mesma rua onde, pelos meus treze ou catorze anos eu labutava num importador da Hanomag e da Laverda, nessa rua dando nome ao beco, e então designada de Alconxel. *

A proximidade aproximara-nos nos últimos tempos de uma vida que ela sabia curta mas eu não, não lhe adivinhando as manchas nas mãos e na cara, prenúncio da morte prematura e não adivinhada mas enfrentada por ela em segredo e com denodo. Por vezes enquanto falávamos e muito falámos porque ninguém mais conseguia baixar-se até mim, até aos meus treze, catorze, quinze anos como ela o fazia, muito conversávamos enquanto me deixava ajudá-la espalhando um creme branco naquelas manchas agoirentas as quais me garantia serem coisa passageira. 

Era doce o seu falar, doces os seus sorrisos e modos, tudo ela tinha para dar e nada para cobrar, nunca. Amei-a tanto quanto um sobrinho pode amar uma tia, uma d’entre doze ou treze irmãs de minha mãe mas única, inigualável, nenhuma outra me amava ou amou como ela, depois, muito depois, veio-me à lembrança quanto o saber estar de abalada, de partida, teria pesado na sua atitude, contudo sabia-me único, sabia-me amado, sentia-me reconfortado.

Um senão me toldava, a paixão e namoro mantido muitos anos com um oficial militar de carreira e que eu naturalmente detestava, mal via o seu Simca 1000 estacionado no beco ou nas imediações corava enraivecido, e mil vezes desejei a morte a esse usurpador, um Simca 1000 de um branco esverdeado ou de um verde branco ao qual estive por várias vezes para despejar as quatro rodas, até a cor era horrível.


Um dia morreu-me, nova, sem avisar, e eu esqueci-a, tresloucado que andava com uma adolescência vera montanha-russa em que primeiro eu, depois eu, de novo eu, só e sempre eu pois unicamente de mim me lembrava até que, com o amadurecer acudiu-me o sentimento da sua ausência, a falta, a necessidade daquele ser único, angélico, explicando-me a vida, e porque isto assim e aquilo assado, nunca me ralhando, antes me centrando no mundo e ajudando a encontrar-me a mim mesmo.

Hoje sinto e sei quanto lhe devo, muito, foi o meu suporte na adolescência, no crescer, foi alicerce, alimento da alma, sangue e paixão, sou como ela, também eu sou ela e, mais tarde, quando já homem fiz a minha escolha, forçosamente recaiu inadvertida ou inconsciente mas infalivelmente sobre alguém como ela, de modos calmos, transmitindo paz, pois foi assim que sentimento e paixão me enlearam até hoje, o mesmo sorriso doce, doces o falar e os modos, tudo tendo para dar sem nada cobrar.

Nenhuma outra me ama ou amou como esta, também esta é única, única e filha única, não se chama Joaquina, Joaquina Rosa Ventura Palma, uma pena não será ? 

              
             Uma pena que valeu a pena. 

   

* Rua de Alconxel, actualmente com a grafia Alconchel