domingo, 25 de fevereiro de 2018

489 - ADEUS BENEVIDES MEU QUERIDO AMIGO


Ao entrar tomei um ar condoído, não era dia para festas e a disposição de toda aquela gente nem deveria ser a melhor pelo que me apresentei de presente nas mãos, bem visível e no sentido de desviar outras atenções e ali as fixar procurando dar algum ânimo à casa. Como quem carrega uma lamparina de Aladino esbocei um sorriso amarelo, pequeno, o suficiente e quanto bastasse para que toda aquela trupe me abrisse portas e desimpedisse os corredores até à velhota, desejoso que depois me esquecessem por completo.

Não era tarefa fácil, tínhamos acabado de enterrar o meu amigo Benevides, a manhã estivera fria, eu sem querer dirigi-me ao café habitual e pedi um Licor Beirão, não suporto funerais, nem mortos, pois inconscientemente alegro-me quando algum parte, sobretudo os da minha idade, e dou graças a Deus por ainda por cá andar mas fico com um peso na consciência que me dura dias, pelo que emborquei o licor de um trago para, mal acabado esse rito, pedir que me enchessem de bolinhos secos, dos mais baratinhos, uma das caixinhas mais pequeninas que tivessem e a fechassem com um grande e vistoso laço.


Era essa caixa que levava nas mãos quando bati à porta deles, não que me interessassem minimamente, nem a velhota fazia caso algum deles, mas eu já os ia conhecendo tão bem quanto ela, ela sim o verdadeiro móbil da minha visita. Eu adorava as nossas conversas, para ser franco idolatrava-a, não tinha sido minha professora mas fora-o de literatura no liceu a vida inteira. Era esse o nó entre nós, a literatura, e nem vos conto quanto com ela aprendi e continuo aprendendo. Por seu turno ela tem em mim um ouvinte de excelência e como tal não esconde quanto as minhas visitas lhe agradam.

Reparei ao repeti-las, às visitas, que toda aquela rapaziada não via na velhota mais que um estorvo, e ela neles mais que uns adoráveis netinhos e uns verdadeiros abortos. Confessou-mo uma vez portanto nada estou  inventando ou conjecturando. Para quem tinha sido amante e mestre de literatura a vida inteira, quem não pegasse num livro só poderia ser filho do demónio, e por vezes malfadava a hora em que tinha parido quer as filhas quer os filhos, inda que na sua tábua de classificações não os tivesse na conta dos netos, a esses é que nada perdoava, até por eles se abarbatarem com tudo que a velhota tivesse, desde um qualquer anel ou pregador, a uma fatia dourada ou mesmo uma simples torrada.

Gananciosos e esfomeados, assim ela os mimava, e eu, mal me deram oportunidade ao meterem o nariz na caixa dos bolos, antes que lha surripiassem desabafei para um deles, todavia de molde a que todos me ouvissem:

- A avozinha hoje não está com apetite, revolveu e cheirou todos os bolos, a bem dizer a todos babou sem nenhum ter mordiscado, nem sequer chupado, deve ser do fastio, ou do Senhor ter levado hoje o teu tio.


Quando digo o teu tio digo o tio de todos eles e enterrado nesta mesma manhã, ou seja o Benevides, um tipo um tanto ou quanto amaneirado e com quem em boa verdade nunca tinha tido uma amizade muito próxima, quanto mais intima, os seus tiques de afectado nunca ligaram muito bem com a minha intolerância quanto a determinados procedimentos seus a cuja interacção sempre que podia me furtava, aturava-o mor da velhota, e agora com ele enterrado e bem enterrado os dias serão para mim e para ela certamente mais risonhos, especialmente para ela.  

Pelo menos desta vez terei a certeza que ninguém lhe roubará os bolos, aliás belíssimos e que em parte comemos ao redor de uma camilha e acompanhados de um bule de Earl Grey a escaldar com sabor a caramelo e baunilha, como só nós dois gostamos dele. Nem imaginam, uns bolinhos de comer e chorar por mais, uma tarde bem passada, cheguei há minutos, de lá, digo dela, trazendo recomendada a obra “Sementes Mágicas” de V. S. Naipul, um gentleman inglês nascido na Trinidade e prémio nobel da literatura 2001, da D. Quixote. Tenho que falar com a Helena Girão. Quanto ao Benevides, sete palmos abaixo de nós e no Espinheiro, o Senhor lhe torne a terra leve.

Ámen.