Ao entrar tomei um ar condoído, não
era dia para festas e a disposição de toda aquela gente nem deveria ser a
melhor pelo que me apresentei de presente nas mãos, bem visível e no sentido de
desviar outras atenções e ali as fixar procurando dar algum ânimo à casa. Como
quem carrega uma lamparina de Aladino esbocei um sorriso amarelo, pequeno, o
suficiente e quanto bastasse para que toda aquela trupe me abrisse portas e
desimpedisse os corredores até à velhota, desejoso que depois me esquecessem
por completo.
Não era tarefa fácil, tínhamos acabado
de enterrar o meu amigo Benevides, a manhã estivera fria, eu sem querer
dirigi-me ao café habitual e pedi um Licor Beirão, não suporto funerais, nem
mortos, pois inconscientemente alegro-me quando algum parte, sobretudo os da minha
idade, e dou graças a Deus por ainda por cá andar mas fico com um peso na
consciência que me dura dias, pelo que emborquei o licor de um trago para, mal
acabado esse rito, pedir que me enchessem de bolinhos secos, dos mais baratinhos,
uma das caixinhas mais pequeninas que tivessem e a fechassem com um grande e
vistoso laço.
Era essa caixa que levava nas mãos
quando bati à porta deles, não que me interessassem minimamente, nem a velhota
fazia caso algum deles, mas eu já os ia conhecendo tão bem quanto ela, ela sim
o verdadeiro móbil da minha visita. Eu adorava as nossas conversas, para ser
franco idolatrava-a, não tinha sido minha professora mas fora-o de literatura
no liceu a vida inteira. Era esse o nó entre nós, a literatura, e nem vos conto
quanto com ela aprendi e continuo aprendendo. Por seu turno ela tem em mim um
ouvinte de excelência e como tal não esconde quanto as minhas visitas lhe
agradam.
Reparei ao repeti-las, às visitas, que
toda aquela rapaziada não via na velhota mais que um estorvo, e ela neles mais
que uns adoráveis netinhos e uns verdadeiros abortos. Confessou-mo uma vez
portanto nada estou inventando ou
conjecturando. Para quem tinha sido amante e mestre de literatura a vida
inteira, quem não pegasse num livro só poderia ser filho do demónio, e por
vezes malfadava a hora em que tinha parido quer as filhas quer os filhos, inda
que na sua tábua de classificações não os tivesse na conta dos netos, a esses é
que nada perdoava, até por eles se abarbatarem com tudo que a velhota tivesse,
desde um qualquer anel ou pregador, a uma fatia dourada ou mesmo uma simples
torrada.
Gananciosos e esfomeados, assim ela os
mimava, e eu, mal me deram oportunidade ao meterem o nariz na caixa dos bolos,
antes que lha surripiassem desabafei para um deles, todavia de molde a que
todos me ouvissem:
- A avozinha hoje não está com
apetite, revolveu e cheirou todos os bolos, a bem dizer a todos babou sem
nenhum ter mordiscado, nem sequer chupado, deve ser do fastio, ou do Senhor ter
levado hoje o teu tio.
Quando digo o teu tio digo o tio de
todos eles e enterrado nesta mesma manhã, ou seja o Benevides, um tipo um tanto
ou quanto amaneirado e com quem em boa verdade nunca tinha tido uma amizade
muito próxima, quanto mais intima, os seus tiques de afectado nunca ligaram
muito bem com a minha intolerância quanto a determinados procedimentos seus a
cuja interacção sempre que podia me furtava, aturava-o mor da velhota, e agora
com ele enterrado e bem enterrado os dias serão para mim e para ela certamente mais
risonhos, especialmente para ela.
Pelo menos desta vez terei a certeza que
ninguém lhe roubará os bolos, aliás belíssimos e que em parte comemos ao redor de uma camilha e
acompanhados de um bule de Earl Grey a escaldar com sabor a caramelo e baunilha,
como só nós dois gostamos dele. Nem imaginam, uns bolinhos de comer e chorar
por mais, uma tarde bem passada, cheguei há minutos, de lá, digo
dela, trazendo recomendada a obra “Sementes Mágicas” de V. S. Naipul, um gentleman
inglês nascido na Trinidade e prémio nobel da literatura 2001, da D. Quixote. Tenho
que falar com a Helena Girão. Quanto ao Benevides, sete palmos abaixo de nós e no Espinheiro, o Senhor lhe torne a terra
leve.
Ámen.