Não
guardo de mais ninguém recordações como as da tia Joaquina, nem mais nem
iguais, inda que tenha sido com ela que menos convivi, e durante menos tempo. As
últimas lembranças estarão agarradas aos meus catorze ou quinze anos, nem sei
precisá-las com exactidão, depois morreu-me, assim sem mais nem menos, assim do
pé pra a mão e, após isso somente uma campa no cemitério dos Remédios, por mim
visitada mais vezes que quaisquer outras, logo por mim, logo eu, absolutamente
nada amigo dessas coisas, de andar metido em igrejas, em conventos, em procissões
ou em cemitérios e idênticos mistérios.
Morreu
simplesmente, e morreu-me quando eu menos esperava e mais necessitava dela,
quando a vida me ocupava de tal modo que mal dei pela sua partida, indiferente à
sua morte, por na altura ter coisas mais urgentes a fazer e em que pensar. Pois
tinha, nem me apercebi na ocasião como ela era diferente, porém a sua falta foi
vincando essa grandeza até que, a
ausência e a saudade da sua presença trilharam o seu caminho do coração à consciência, tão depressa quão eu amadurecia e sentia o prejuízo, ou para ser mais rigoroso
por sentir ausentes as suas falas, as suas conversas, os conselhos, as advertências,
as alusões e o modo calmo como me transmitia impressões, emoções, sentimentos e
paixões.
Abrando
sempre quer de carro quer na mota aos três quartos da descida na rua Serpa
Pinto, abrando sempre ao aproximar-me do beco de Alconxel, ali à esquerda, ao
fundo do qual residia a tia, numa pequena e catita casita portuguesa entalada
entre outras iguais e fruto da judiaria, sua última e única morada conhecida e
naquela mesma rua onde, pelos meus treze ou catorze anos eu labutava num
importador da Hanomag e da Laverda, nessa rua dando nome ao beco, e então designada de Alconxel. *
A
proximidade aproximara-nos nos últimos tempos de uma vida que ela sabia curta
mas eu não, não lhe adivinhando as manchas nas mãos e na cara, prenúncio da
morte prematura e não adivinhada mas enfrentada por ela em segredo e com
denodo. Por vezes enquanto falávamos e muito falámos porque ninguém mais conseguia
baixar-se até mim, até aos meus treze, catorze, quinze anos como ela o fazia,
muito conversávamos enquanto me deixava ajudá-la espalhando um creme branco
naquelas manchas agoirentas as quais me garantia serem coisa passageira.
Era
doce o seu falar, doces os seus sorrisos e modos, tudo ela tinha para dar e nada
para cobrar, nunca. Amei-a tanto quanto um sobrinho pode amar uma tia, uma d’entre
doze ou treze irmãs de minha mãe mas única, inigualável, nenhuma outra me amava
ou amou como ela, depois, muito depois, veio-me à lembrança quanto o saber
estar de abalada, de partida, teria pesado na sua atitude, contudo sabia-me
único, sabia-me amado, sentia-me reconfortado.
Um
senão me toldava, a paixão e namoro mantido muitos anos com um oficial militar
de carreira e que eu naturalmente detestava, mal via o seu Simca 1000
estacionado no beco ou nas imediações corava enraivecido, e mil vezes desejei a
morte a esse usurpador, um Simca 1000 de um branco esverdeado ou de um verde
branco ao qual estive por várias vezes para despejar as quatro rodas, até a cor
era horrível.
Um
dia morreu-me, nova, sem avisar, e eu esqueci-a, tresloucado que andava com uma
adolescência vera montanha-russa em que primeiro eu, depois eu, de novo eu, só
e sempre eu pois unicamente de mim me lembrava até que, com o amadurecer
acudiu-me o sentimento da sua ausência, a falta, a necessidade daquele ser
único, angélico, explicando-me a vida, e porque isto assim e aquilo assado,
nunca me ralhando, antes me centrando no mundo e ajudando a encontrar-me a mim
mesmo.
Hoje
sinto e sei quanto lhe devo, muito, foi o meu suporte na adolescência, no crescer, foi
alicerce, alimento da alma, sangue e paixão, sou como ela, também eu sou ela e,
mais tarde, quando já homem fiz a minha escolha, forçosamente recaiu
inadvertida ou inconsciente mas infalivelmente sobre alguém como ela, de modos
calmos, transmitindo paz, pois foi assim que sentimento e paixão me enlearam
até hoje, o mesmo sorriso doce, doces o falar e os modos, tudo tendo para dar
sem nada cobrar.
Nenhuma
outra me ama ou amou como esta, também esta é única, única e filha única, não se chama Joaquina, Joaquina Rosa Ventura Palma, uma
pena não será ?
Uma pena que valeu a pena.
Uma pena que valeu a pena.
* Rua de Alconxel,
actualmente com a grafia Alconchel