sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

488 - A TRIBUTE TO MY DEAR AUNT JOAQUINA


Não guardo de mais ninguém recordações como as da tia Joaquina, nem mais nem iguais, inda que tenha sido com ela que menos convivi, e durante menos tempo. As últimas lembranças estarão agarradas aos meus catorze ou quinze anos, nem sei precisá-las com exactidão, depois morreu-me, assim sem mais nem menos, assim do pé pra a mão e, após isso somente uma campa no cemitério dos Remédios, por mim visitada mais vezes que quaisquer outras, logo por mim, logo eu, absolutamente nada amigo dessas coisas, de andar metido em igrejas, em conventos, em procissões ou em cemitérios e idênticos mistérios.

Morreu simplesmente, e morreu-me quando eu menos esperava e mais necessitava dela, quando a vida me ocupava de tal modo que mal dei pela sua partida, indiferente à sua morte, por na altura ter coisas mais urgentes a fazer e em que pensar. Pois tinha, nem me apercebi na ocasião como ela era diferente, porém a sua falta foi vincando essa grandeza até que, a ausência e a saudade da sua presença trilharam o seu caminho do coração à consciência, tão depressa quão eu amadurecia e sentia o prejuízo, ou para ser mais rigoroso por sentir ausentes as suas falas, as suas conversas, os conselhos, as advertências, as alusões e o modo calmo como me transmitia impressões, emoções, sentimentos e paixões.


Abrando sempre quer de carro quer na mota aos três quartos da descida na rua Serpa Pinto, abrando sempre ao aproximar-me do beco de Alconxel, ali à esquerda, ao fundo do qual residia a tia, numa pequena e catita casita portuguesa entalada entre outras iguais e fruto da judiaria, sua última e única morada conhecida e naquela mesma rua onde, pelos meus treze ou catorze anos eu labutava num importador da Hanomag e da Laverda, nessa rua dando nome ao beco, e então designada de Alconxel. *

A proximidade aproximara-nos nos últimos tempos de uma vida que ela sabia curta mas eu não, não lhe adivinhando as manchas nas mãos e na cara, prenúncio da morte prematura e não adivinhada mas enfrentada por ela em segredo e com denodo. Por vezes enquanto falávamos e muito falámos porque ninguém mais conseguia baixar-se até mim, até aos meus treze, catorze, quinze anos como ela o fazia, muito conversávamos enquanto me deixava ajudá-la espalhando um creme branco naquelas manchas agoirentas as quais me garantia serem coisa passageira. 

Era doce o seu falar, doces os seus sorrisos e modos, tudo ela tinha para dar e nada para cobrar, nunca. Amei-a tanto quanto um sobrinho pode amar uma tia, uma d’entre doze ou treze irmãs de minha mãe mas única, inigualável, nenhuma outra me amava ou amou como ela, depois, muito depois, veio-me à lembrança quanto o saber estar de abalada, de partida, teria pesado na sua atitude, contudo sabia-me único, sabia-me amado, sentia-me reconfortado.

Um senão me toldava, a paixão e namoro mantido muitos anos com um oficial militar de carreira e que eu naturalmente detestava, mal via o seu Simca 1000 estacionado no beco ou nas imediações corava enraivecido, e mil vezes desejei a morte a esse usurpador, um Simca 1000 de um branco esverdeado ou de um verde branco ao qual estive por várias vezes para despejar as quatro rodas, até a cor era horrível.


Um dia morreu-me, nova, sem avisar, e eu esqueci-a, tresloucado que andava com uma adolescência vera montanha-russa em que primeiro eu, depois eu, de novo eu, só e sempre eu pois unicamente de mim me lembrava até que, com o amadurecer acudiu-me o sentimento da sua ausência, a falta, a necessidade daquele ser único, angélico, explicando-me a vida, e porque isto assim e aquilo assado, nunca me ralhando, antes me centrando no mundo e ajudando a encontrar-me a mim mesmo.

Hoje sinto e sei quanto lhe devo, muito, foi o meu suporte na adolescência, no crescer, foi alicerce, alimento da alma, sangue e paixão, sou como ela, também eu sou ela e, mais tarde, quando já homem fiz a minha escolha, forçosamente recaiu inadvertida ou inconsciente mas infalivelmente sobre alguém como ela, de modos calmos, transmitindo paz, pois foi assim que sentimento e paixão me enlearam até hoje, o mesmo sorriso doce, doces o falar e os modos, tudo tendo para dar sem nada cobrar.

Nenhuma outra me ama ou amou como esta, também esta é única, única e filha única, não se chama Joaquina, Joaquina Rosa Ventura Palma, uma pena não será ? 

              
             Uma pena que valeu a pena. 

   

* Rua de Alconxel, actualmente com a grafia Alconchel