Mau grado tanta cautela o malandro escapou-se,
escapuliu-se entre os dedos, a vida tem destas coisas, umas vezes oitenta
outras oito somente. O outro surgira-lhe pela frente e ele pisara
repentinamente o travão enquanto em simultâneo buzinava com estridência.
Eu nem pusera o cinto de segurança, pelo que dei um salto
no banco e por pouco não bati com a cabeça no tejadilho do carro, mas ouvi-lo foi
a minha salvação, parei instantaneamente e a coisa foi por um triz, não tivesse
eu parado e certamente lhe teria dado um valente porradão. O outro carro era
bem visível, pelo menos para quem o visse, grande e branco, mas surgira no meu
angulo morto e se bem que cuidadosamente em marcha atrás e olhando p’los três
espelhos à minha disposição não o lobrigara, sorte eu estar recuando a dois à
hora quando não …
A ruidosa buzinadela chamara a atenção de uma centena de
mirones saídos do Clube de Motards frente a minha casa, os quais de copo na mão
acudiram à rua p´ra gozarem o espectáculo, e o espectáculo era eu, de
chinelo/sapato, pijama arlequim azul e branco, um robe por cima de tudo e
fazendo de mim um cossaco pronto a uma daquelas danças nem em pé nem agachado. Naturalmente
não gostei, nem dos mirones nem de toda a vizinhança assomando das janelas, é
um bairro pacato e buzinar daquela maneira é o mesmo que dar um pontapé num
formigueiro. A coscuvilhice é tão velha quanto a história, faz parte do género
humano, e muitas vezes confundida com o Manel Germano.
Estragos na viatura do paspalho.
Tinha o carro estacionado ao lado do passeio e metê-lo na
garagem era uma questão de noventa graus, mas a fim de dar a volta mais larga e
o enfiar nos portões sem neles bater, faço habitualmente uma marcha atrás de
poucos metros que me permita alargar a curva e entrar de frente. Foi nesta pequena
manobra de marcha atrás que a coisa se deu.
Há quem não tenha noção da relatividade das coisas, quem
não distinga oito de oitenta, quem ande na rua de carabina caçando moscas ou
esteja pronto p’ra ir a África caçar leões com uma fisga… Nem sei quem bateu em
quem, se eu que fazia marcha atrás e parei, se ele que vinha no seu caminho e
deparou comigo não tendo contudo e devido ao sobressalto parado a tempo. De
qualquer modo saltava à vista ser um assunto de lana caprina, uma
insignificante esfoladela no meu pára-choques, um risquinho de caca no dele,
uma questão de pentelhos havia de dizer o ministro Catroga se estivesse
presente.
Saído do carro e apreciando a coisa abri os braços, pedi
desculpa e prontamente assumi a culpa* alegando não haver problema, tinha
seguro, ele certamente também, seria só tirar o carro do meio da rua, estávamos
impedindo o trânsito e sendo gáudio da turba dos mirones, ele que entrasse, na
garagem trataríamos dos pormenores.
Foi quando a coisa descambou, o homem, o moço, o jovem, o
parvalhão não deve saber o significado de declaração de acidente amigável, tem
mesmo esse nome, consta no cimo da papelada, amigável, destina-se a evitar
conflitos entre condutores. Ora se é amigável é para ser tratada entre amigos,
mais a mais eu não lhe arrancara o pára-choques, nem lhe partira a viatura ao
meio ou virado a dita do avesso.
Mas ele grita:
- Você daqui não sai, ó Marina chama lá a policia !
Confesso que me pareceu ele ter dito ó Varina chama lá a
policia mas preocupado com a atitude brusca e indelicada dele, que largara o volante e saltara do carro para me segurar a porta não se fechasse ela e este bandido fosse fugir-lhe, mesmo em pijama e chinelo/sapato, c'o carro atravessado na rua apontado à garagem, e visto por centenas de
mirones/testemunhas, dizia eu temendo ele que este bandido dado a gravidade do
acidente fugisse do local do mesmo.
Confesso, de há muito tempo a esta parte se há coisas que
me dão vómitos uma delas é a parvoíce das pessoas, a sua cegueira, a estupidez,
pelo que à primeira distracção do bicho bati com a porta, tranquei-a, meti a
primeira e avancei garagem dentro. Nem sei como o parvalhão num pulo se meteu à
frente do carro, mas sei que teve no mínimo muita sorte ou esperteza para com
novo pulo sair da frente dele, se quereria dessa forma impedir-me de entrar ou
guindar-se ao estatuto de mártir nunca saberei.
Estragos na minha viatura.
O que sei é que o parvalhão podia ter arranjado a merda
dum trinta e um, ter ficado com as pernas entaladas, a bacia partida, ou a
coluna, ou paraplégico, ou tetra. Eu fiquei branco, siderado, quando me
apercebi da sua idiotice, o cabrão podia ter-me arranjado uma carrada de
problemas, até de consciência. Há gente mais parva do que possamos imaginar, e
por causa de um pentelho diga-se. Fechei o portão do quintal, avisei o patareco
que não se atrevesse a transpô-lo e antes de bater o basculante da garagem
disse-lhe que sim, que fazia bem, que se entendesse com a polícia e passasse
bem.
Claro que daí a quinze minutos tinha a PSP a bater-me ao
portão da garagem, abri-o, convidei-os a entrar pois queriam ver o veiculo e os
estragos, voltei a avisar o parvalhoco para que nem pensasse em transpor o
portão, cedi à PSP a carta de condução e o cartão de cidadão, únicos documentos
que me solicitaram, educadamente diga-se, foram sempre impecáveis, tendo eu solicitado
que me submetessem ao teste do balão a fim de ficar registado não me encontrar
sob efeito de álcool ou de alcalóides, ao que me responderam ser de lei, sempre
que são chamados a intervir num acidente os envolvidos serem automaticamente
submetidos a esse procedimento, por isso Baião sopra e cala-te, e não, nunca
fiz o teste do balão, é esta a primeira vez, respondi ao agente que me
interrogava e me pediu posteriormente que preenchesse um questionário onde descrevi,
a seu conselho e sumariamente a minha versão do acidente ocorrido. Quanto ao
balão naturalmente marcou zero, que esperavam ?
Preenchi-o assumindo a culpa, o que não devia ter feito
por duas razões, a primeira porque a culpa será avaliada pelas seguradoras e
pelos seus peritos de acordo com a lei e baseadas nas nossas declarações amigáveis,
a segunda por ter constatado à força de ver o parvalhão “dançando” em redor das
autoridades enquanto eu era inquirido e me ter apercebido exalar ele um forte
hálito a álcool a par de algum desacerto nos passos e das pernas mas, como
competia à autoridade avaliar e analisar esses factos, mais a mais fazem parte
do seu protocolo de actuação, assim me tinham dito elas mesmas, calei-me.
Calei-me mais por estar farto de dar espectáculo para a
turba e para a vizinhança pendurada das janelas, pois se haviam juntado já umas
três viaturas policiais e, que me tivesse apercebido no mínimo cinco agentes,
quatro eles e uma ela, todos eles volto a frisar simpatiquíssimos e a quem
decerto aquela merda de ocorrência, insignificante, estragara possivelmente a
tarde desse sábado 24 de Fevereiro do ano da graça de 2018. (18:15h).
Eu acabei por me retirar para os meus aposentos pensando
de mim para mim haver gente que só sabe complicar o que é simples. Eu que até
estava disposto a pagar a insignificância do meu bolso só para não perder o
prémio de seguro e ver a próxima cobrança aumentada. Agora vai ser um calvário
até que tudo se resolva, tudo por culpa dum parvalhão incapaz de discernir o
significado de amigável inscrito no cimo da participação de acidentes às
seguradoras.
Provavelmente será um daqueles taradinhos que ante o frio
ou a chuva não hesitarão em meter a mulher na rua e enfiar o carrinho na cama.
Interrogo-me, que terá o parvalhão ganho com tanta parvoíce a que deu azo ?
Rapidez ? Justiça ? Paz de alma ? Castigo aos bandidos provocadores que
infestam ruas e estradas ?
Um lugar no Paraíso ?
Haja Deus …
* Apesar de
as seguradoras recomendarem que nunca o façamos, a culpa será avaliada por
elas e pelos seus peritos de acordo com a lei e as declarações amigáveis que entregamos.