sábado, 24 de novembro de 2018

553 - LIDES‎ ... by Maria Luísa Baião * ...................


Olhou-me demorada e ternamente. Eu retribui o carinho passando-lhe a mão pela cabeça, de arrepio, coisa que sei não gostar. Uma provocação portanto. Retraiu-se um pouco, fugiu ao meu gesto e ajeitou-se melhor no sofá onde desde o almoço se estendera ao comprido. Tem uma propensão nata para a mandriice, então aos fins-de-semana, dias em que estamos todos em casa, até para comer tem preguiça e vai fazê-lo já quase a dormir.

Perdoo-lhe a preguiça nesses dias. É que não gosto, quando arregaço as mangas e me atiro a algumas das actividades que cabem às “domésticas” e com as quais embirro solenemente, que se atravessem à minha frente e me quebrem o ritmo. Contudo acho que se não for eu a diligenciá-las ninguém as fará melhor. Sempre detestei essas actividades, tenho mais e melhor com que me entreter, ocupar o tempo, com muito mais proveito para mim e para os outros. Mas tem que ser.

O barulho do aspirador é incómodo, dá uma volta no sofá, esconde a cabeça e as orelhas buscando ignorar-me e ao frenesim que arrasto, cujo tumulto sabe ser somente uma questão de minutos. Por outras palavras, torce-me o nariz. Essa coisa dos olhares ternos vai bem desde que não incomodemos. A ternura, como vêem também tem limites e condições. Não me chateies que eu faço o mesmo e ainda te pago com algumas meiguices. E eu julgando essa ternura ilimitada e incondicional.

Estamos sempre aprendendo. Modelamo-nos é o que é, adaptamo-nos às situações como os náufragos se adaptam às bóias e coletes salva-vidas.

O aspirador lá se vai esforçando, como um asmático. Espreito à janela, na paragem do autocarro uma velha fala sozinha. Eu pensando sozinha. Crianças pobres brincam umas com as outras, como eu quando pequena. Saltam à corda, brigam-se, apaziguam-se. Bate-me o coração por vê-las, sinto-me cansada, deve ser deste tempo, carregado de humidade. Aproximo-me da janela, os vidros embaciados, desenho um círculo com a mão e espreito. Oiço o aspirador há que tempos sorvendo desacompanhado, distraído, distraída eu, oiço o relógio da sala, olho as horas, recomeço a azáfama. Dizem que os chineses vêem as horas nos olhos dos gatos.

Contemplo o meu reflexo na janela, o círculo como um espelho, pareço uma mulher resignada, não o sou, somente detesto estas lides perfidamente repetitivas. E a preguiça estirada no sofá, como uma ofensa, um ultraje a mim mesma dirigido e eu, parva, voltei a passar-lhe a mão pela cabeça e de novo presenteada com igual indiferença.

É dia ainda, trovoadas e sombras da noite espiam-me por essa janela. A chuva, p’la intimidade dos vidros mostra-me os brilhos da rua inundada de água. O meu olhar torna-se silêncio, relembro promessas neste tempo lento de horizontes parcos e toma-me uma saudade imensa das palavras, de sons, de vozes quebrando o quebranto e tomando-me de assalto os sentidos.

O tempo e os sentidos, os mesmos que nos escondem na alma paixões de ontem, de hoje e de agora. O corpo, esse, confessamo-lo quando a hora chega. Querendo, o desejo faz das palavras silêncio e limite do que permanece, como as águas límpidas do mar oceano. Os gestos como reflexo dos sentidos e em cada pensamento o amor que nem o corpo nem a alma querem esquecer.

Penso nalgumas árvores que o Outono pinta de vermelho quente e recomeço as lides pondo fim ao vogar do espírito. No ardor de terminar lavo-me de fantasias, meditação e imaginação, medos, fobias e taras.

Afago-lhe de novo a cabeça, arqueia o dorso, eriça o pelo, salta para o chão, roça-me as pernas e solta um miar curto e baixo. Já sei o que quer. Esta minha gata é um espectáculo, só lhe falta falar !


* Maria Luísa Baião‎ escrito segunda-feira, ‎19‎ de ‎Outubro‎ de ‎2006, ‏‎12:22h, publicado em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.


552 - INVEJINHA, INVEJINHA... by Luísa Baião ‎* ...

Foto de Helena Margarida de Sousa, Évora. 

Hoje senta-se à minha mesa no café, até podia dar-se o caso de ser meu pai, tem idade para tal, mas é simplesmente um amigo, e que bom amigo ele é.

Talvez por isso é fatal que, ao fim de semana, nos procuremos para esse ritual, de onde um cheiro emana e, o sabor nos chama como apelo que, repetido ao longo do dia, já sem o mito a que o primeiro dá corpo, acalma todavia a alma e lhe dá conforto.

È um atlas este homem singular, enciclopédia vasta de uma vida escondendo estórias que a sua memória arrasta. Nada nele há de que se deva envergonhar, tanto que gravatas são coisa que nem usa, até porque a longa vida vivida não é comédia, nem recusa contá-la se a conversa a jeito segue. O primeiro que se negue.

Não passava eu ainda de um sonho, uma vontade, e já este meu amigo se esforçava, naquela outra metade do mundo que o nosso império então pintava a cor-de-rosa e que mudou de supetão, porque em alguma parte da terra uma mariposa bateu asas, segundo os astro - físicos, ou porque um povo indígena se lembrou em algum momento de dizer basta, mais não.

Qual ave de arribação de novo volveu à sua origem, não sem que essa forçosa migração o tivesse levado a rumar primeiro a sul, onde a vertigem das horas e da moda o não prendeu, antes o atirou para o que agora chamo o seu convívio, mas que ele todas as auroras apoda de seu desígnio.

Conheceu povos usos e costumes e em cada um dos novos fusos e latitudes que pisou tanto aprendeu, que é hoje um homem sereno, que do pleno da vida alcançou o cume, vida que, embora madrasta por vezes, nunca permitiu a alguém ouvir-lhe um queixume ou notar-lhe sequer leve azedume.

Ganhou amor à terra em planaltos e savanas, imensidões por onde alargou olhar e espírito, apanhou sobressaltos e, talvez repastos de lembrar e chorar por mais, que o atiraram para o clube dos barriganas. Caçou provavelmente leões, hoje cria gado, revolve a terra que aprendeu a amar e entretém-se nas horas vagas caçando chavões em jornais.

Com nostalgia recorda a África, onde se fez homem e deles amigo. Dessa lonjura carregou sabedoria que, como castigo desabrido lançou nesta terra de que fez porto de abrigo. Mendigo é que não, a não ser da amizade, que cultiva com prazer e das quais por vezes tem vaidade.

Como não há-de correr-lhe a vida em beleza ?  Se o nosso homem é todo dado à natureza ! Bom garfo, melhor conversador, perto dele não há sururu, apenas o calor contagiante de conversas longas e serenas. Não parte um copo o Francisco mas no remanso esfuziante dessas horas perversas é um pândega, ninguém sossega.

Calhou-nos encontrá-lo de partida para férias, que após algumas lérias soubemos no mesmo destino. Foi um desatino. Não partilhámos a cama mas partilhámos a mesa, que do primeiro prato à sobremesa nos deu tempo para desatar a língua e, apesar do calor, nunca deixámos a conversa morrer à míngua ou criar bolor, por tão ricos os vinhos e petiscos e tão sem dor as farpas nos políticos.

Sempre foram umas férias diferentes, com um compatriota à porta com quem debater os assuntos imanentes à nossa condição. O meu marido adorou e, um dia houve, mesmo sem fatiota a rigor, que nos passeámos de jipão por toda aquela área lindíssima a que os nuestros hermanos chamam o Parque Natural de Doñana.

Não valem comparações, o que eles usam ao domingo usamos nós de semana. Nunca terão uma floresta como a nossa, quase virgem, selvagem, onde só bicho-do-mato entra. Na nossa só entra bicho e fagulha, na deles não se vê no chão nem dos muitos pinheiros uma agulha...

Como diria o Francisco, orgulhoso da sua barriguinha, invejinha, invejinha... 


* Maria Luísa Baião,‎ justissíma e merecida homenagem ao grande amigo Francisco Pândega, escrito quinta-feira, ‎7‎ de ‎agosto‎ de ‎2003, pelas ‏‎22:31h e publicado num dos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.
Foto de Helena Margarida de Sousa, Évora.


551 - TERRAS D’EL - REI, by Maria Luísa Baião ‎*…

Foto roubada na Net, Praça principal de Reguengos e igreja neo-gótica.

Vou contar-vos uma história, de um almoço que tomei na companhia de amigos de quem até já falei. Por causa das invejinhas e porque há almas penadinhas por degustar bom petisco, creio não cair no risco e arrisco sem remorso, por isso vos afianço que, em qualquer outro lugar ou em qualquer uma outra rua, se come tão bem na terra como eu comi na “taberna” dessa vila que é tão minha, quanto crê ser ela sua.

Embora o uso não lembre, são terras que eram D’El-Rei, que assim não ficaram sempre porque a lei dos liberais cuidou de lhes dar finais.

Eram terras “realengas”, p’ra outros terras “reguengas”, que de nobres ou de reis, davam ainda para os pobres verem dali alguns réis. Também o clero tinha parte que, com arte, como a nobreza ou a coroa, acudia à pobreza que, como agora, como sempre, esperava dos mais fortes, os restos d’alguma broa.

Nascidas da esperança aceite, de o cristianismo alargar, enquanto alguns nossos reis acossavam o belicismo para ao Algarve chegar, muitas, como esta terra hoje chamada D’El-Rei, a guerreiros os reis doavam, dando de alarve riquezas que o património gizava, que quer o tempo e a história não cuidaram de emendar.

Foram dadas a templários ou a quaisquer usurários, nem o poeta Papança teve algum dia o prazer, de, a rendeiros e seareiros, ver na cara alegria franca por ter visto repartida terra de tanta abastança, cujos limites não estão hoje longe dos que há séculos já tinha a nobre casa de Bragança.

Mas, voltando à minha história e ao almoço bem regado que nos ficou na memória. Foi na Casa do Benfica que o néctar ditou as leis que, e nisso faço questão, deixar aqui afirmado que em qualquer outro casão aos manjares apropriado o prazer seria o mesmo, pois o dito que aqui louvo, teria saído gostoso de uma mesma barrica, senão duma mesma pipa.

A verdade é que esse néctar, ali mesmo apadrinhado, trazia rótulo da terra, pois ainda antes de almoço já era certo e sabido cuidar de ter a tempo e horas tal remédio encomendado.

Da história antiga só resta a sagrada toponímia que mui bem calhou à pinga ali mesmo baptizada. Ou "D’El-Rei" ou "Monsaraz", coisa que muito me apraz e tive até o condão de, passado belo momento, ter que descascar o casaco, por efeito não de tormento, mas de ventos e grinaldas que a imaginação tece, em que apesar de exaurida, a sensibilidade sofrida nos mostra poentes belos, enquanto cada medida por dentro mais nos aquece. 

"Reguengos" ou "Monsaraz", vila ou aldeia tanto faz, são pérolas rústicas, mágicas, brancas, medievais e ambas belas. Gótica manuelina uma, menina preservada a última, plantada em jazida xistosa que por ser pedra tão branda a torna mais amorosa.

Postada em alto-relevo que meus sonhos pintam de imaginárias e bruxuleantes estampas a que o néctar dos Deuses mistura as cores na paleta, devo reconhecer que, a páginas tantas, as palavras falavam connosco e o ruído ensurdecedor do silêncio intuído burilava, alternando a visão do possível actual, ou do actual possível, nessa terra que parece não mudar.

Reguengos a da igreja neo-gótica que, diria imaginada se a não visse aos céus virada, de lindos vitrais pintada, testemunhando a fé, a crença do seu povinho atarefado, contrastando felizmente com a lembrança nebulosa do pelourinho ainda erguido no adro da praça grande da Monsaraz majestosa, sentinela vigilante.

Como um mar de água crescendo, enquanto íamos almoçando e a sala transformando numa festa a pedir sesta, a barragem ia tecendo os destinos dessa terra e, espero p’ra bem de todas não ver o tempo gizar terra que, à soleira do futuro fique sentada mirando o passar deste mundo que parece prometer tudo. Que ninguém em terras D’El-Rei se remeta ao silêncio mudo.

Se os sonhos que no ar pairam, teimarem em querer falar, teimarem acreditar que tudo lhes é possível, creio que ao povo desta terra até o inimaginável será um dia acessível, inda que demore mais algum tempo…
  

* Maria Luísa Baião‎ escrito Quarta-feira, ‎3‎ de ‎Dezembro‎ de ‎2003, ‏‎pelas 04:29h e publicado nos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.‎

Foto de Helena Margarida de Sousa - Évora


NÃO ERA UM BOTÃO DE ROSA by Luísa Baião‎* ...


Chegou como quem está para partir, que é o seu modo de nos fazer pensar se não será incómodo, esquecendo ter sido eu mesma quem lhe pedira para vir. Lembrou então que era convidado e se sentou à minha mesa sem se fazer rogado. Na mão um lindo botão de rosa, escuro e encarnado que me ofertou singelamente e coloquei num jarro.

Tal qual um pisco se serviu da mesa, preparada com tempo para visita que se deseja e nos é querida. Falou mais que comeu, o que bastante me agradou e alegrou a vida. Talvez tenha gostado do jantar, é bom conversador e conversando ficou, diz que não é social mas ninguém acreditou, pois não é o bicho-do-mato que acredita ser, já que qualquer de nós ficou contente por connosco o ter.

Calado e modesto é o seu jeito, nem se apercebe que até uma criança vê a bondade que lhe enche o peito. Não o sabe mas, lobriga muito mais que qualquer de nós possa imaginar, e, como os poetas, vê mesmo os pássaros evoluindo no ar ou ideias práticas navegando no ignorar que nos afoga.

Nasceu antes de tempo, é o que é. É de outro século que ainda está por vir, daí sentir-se neste mundo como em jigajoga e se ache mesmo mais émulo de si que dos demais.

É homem que ama a vida e certamente amou, pois tem alma gigante e não é cego. Não terá quem lhe acaricie o pequenino ego, nem lembrará já quem o merecido orgulho lhe roubou. Quem será a mulher que o afaga ? O faz viver ? Porque me parece outra razão não ter para continuar a ser, e não creio que a aziaga tristeza que por vezes o carrega, seja ludibriada a partir de um estojo no bolso da carteira, por onde aquece a vida que, certeira, nele se alojou como uma ferida.

Não haverá uma de nós que o não conheça, ainda que admita ter havido muito quem por conveniência o esqueça. Mas quem é ? Perguntarão. Não mais que mais um ser sofrido pela desilusão de tudo em que nos tornámos. Bandarra do nosso destino, psicólogo dum íntimo que desconhecemos, cigarra agora de muitos trabalhos tidos, como um menino, mordaz mas não malévolo, crítico dos nossos modos, brincalhão da língua que falamos, cirurgião da fauna que somos e que semanal e exemplarmente se disseca, nos disseca, sem rebuços nem enganos.

Mas é um ser sensivel que decerto percorre os carreiros de forma irregular, para não pisar a vida que os preenche. Ortopedista da natureza traído pela espécie a que pertence, disso posso eu ter a certeza, tanta como jurar não ser a sua vida uma mimese.

Singela me pareceu aquela rosa em botão. Não tivesse sido a sua expontânea e ofuscante abertura, que ainda dura, e a lembrança da sua presença e simpatia, não teria dado aso a esta crónica, que mais não procura que fazer fluir do coração para a mão, uma empatia que não é de agora, antes se funda em velha escora, tão profunda e tão fecunda que espero fazer durar e perdurar, até ao longínquo dia que para o último de nós chegar.

Tenho a cozinha banhada por uma aurora florida que é um hino à própria vida. Por culpa de um peregrino c’a vida em busca de tino, que num instante consciente teve um gesto tão bonito, lembrar-se que eu era gente. E aquela rosa ardente, vinda ela de quem veio e que afinal também sente, me tem alegrado os dias, alvoraçado os sentidos, arrancado de apatias e tornado mais coloridos os sonhos que ainda alimento.

E àquele velho amigo que sempre achei penitente e sempre considerei gente, como eu, como você, hoje é para mim um parente e como eu combatente pela vida, essa torrente presente que, pungente, imanente, contingente, crescente, resistente, fremente, potente, absorvente, florescente, ignescente, incandescente, reluzente, imponente, consequente, impaciente, intransigente, omnipotente, irreverente e estridente nos está acometida e por atrevida é tão querida.

* Maria Luísa Baião‎ escrito ‎ terça-feira, ‎10‎ de ‎Janeiro‎ de ‎2006, ‏‎11:51h e publicado num dos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER‎ em homenagem a António Saias.
https://twitter.com/casasaias

                             

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

O BOLINHAS DA MARIA ISABEL by Luísa Baião *

     
Uma rua quedou triste. Uma alma alvoraçada por, no meio de vidas em riste vivendo desapaixonadas e, quais janelas fechadas, fugazes tumultos são. Não mais que instante e trovão de quem nada de absoluto diz, senão, quão distante e apressada a vida tange, acabada.

Por incrível que pareça não é a primeira vez que encontro quem por bem padeça, d’uma tristeza insanável gerada por perda sentida de quem lhe alegrou a vida. O bolinhas é um cão que, não escondendo razão forte para a alguém fazer sentir que solidão não é morte, deixou saudades fundadas, daquelas que muitas almas, que o não parecem nem são, não nos deixarão jamais, quer por razões bem fundadas, ou por serem almas penadas que, sem que o saibam, já  não são.

Dizem poetas soezes acontecer bastas vezes haver quem viva sem por tal dar e morra sem isso saber. Gente que passa que existe, distante, porém, nada mais. Compondo um mundo sombrio, um mundo de amor vazio, que não dá vida a arraiais... Uma rua ficou triste tudo gelando em redor quando o ocaso tragou quem irradiava amor. Pedras frias na calçada fizeram ressoar passos a quem calava agonias que, traduzidas em verso, são um exemplo, entre poucos, de que a esperança ainda existe num canto deste universo.

Dizem haver gente que passa, dizem haver gente que existe, há de tudo, em demasia por vezes. Em todo e qualquer dia, trapaça, a todo e qualquer momento, chiste. Não creias, Maria Isabel, acreditar em quem passa, não passes os dias triste. Acredita que os amores em que em dias de eleição cremos varrerem dos céus dias cinzentos, tristeza, e a quem por devoção abrimos sempre as nossas portas, não são na verdade amigos. Bem nos juram lealdade, sei-o bem, a quem o dizes... mas acredita em quem sabe e de sobra tem razões para não crer em amizades que, menos que um cão, nos devam fidelidades.

Sei que a saudade te mata e que a sensação é fria quando nessa rua entras. Falta a fogosidade dessa pequena silhueta plena de alacridade que, eu imagino acrobata e que à vizinha ladrava como quem, cortando a meta, de forma amena acenava e à mecenas alinhava como p’ra hino ou rainha. A rua ficou mais triste do primeiro até ao fim, cinquenta e seis incluído, porque não se enxerga em riste aquele brejeiro de cetim que, ternurenta, dizeis, em alarido atrevido exibia a liberdade que agora volveu saudade, a quem adoravas tanto quanto se adora um arlequim.

À saída da cidade, como p’la Garraia seguindo e se o Bolinhas não voltar, poderás matar a saudade. Uma fada e uma Aia te aguardarão. Adivinha, p’ra te alegrar e oferecer a liberdade perdida de que te queixas e bem, não veres a rua preenchida. Cantinho dos Animais, assim se chama o palácio onde tu e as demais poderão encher o regaço, não de rosas, mas de ais, de alivio, de aconchego, de amor e grande enlevo para quem queira dar guarida a tantos com vida perdida, que aguardam o vosso apego.

Pudessem no mundo, Antónios ou outros quaisquer durões, deixar derreter a alma e soldar alguns neurónios que os guindassem a Camões, não das letras mas das artes e, com calma, se transformassem de molde a ficar na história, não demónios mal amados, antes seres queridos, saudosos, como descreves Bolinhas ou mesmo até outros cães, mas nunca por charlatães.

Amigos do coração, fiéis, leais, brincalhões, como o são os cães para os seus donos, não são fáceis de encontrar e a chorar nos postamos se alguma vez os perdemos. Mas de muito boa gente com um lamento o afirmo, o mesmo já não dizemos se amizades encontramos que não duram mais que um espirro.

Desejo sinceramente que o contraste ora existente seja de bem pouca dura, que a névoa que a rua tolda, encontre um dia abertura por onde entre um raio de sol, um latido, um atrevido, que de dente arreganhado acabe com o banal, o boçal inevitável que nos atravanca a rua e nos afunila a vida.

Beijinhos.

* Luísa Baião,‎ escrito entre ‎2000/2005‏‎, publicado em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.‎