Chegou como quem está
para partir, que é o seu modo de nos fazer pensar se não será incómodo,
esquecendo ter sido eu mesma quem lhe pedira para vir. Lembrou então que era
convidado e se sentou à minha mesa sem se fazer rogado. Na mão um lindo botão
de rosa, escuro e encarnado que me ofertou singelamente e coloquei num jarro.
Tal qual um pisco se
serviu da mesa, preparada com tempo para visita que se deseja e nos é querida.
Falou mais que comeu, o que bastante me agradou e alegrou a vida. Talvez tenha
gostado do jantar, é bom conversador e conversando ficou, diz que não é social
mas ninguém acreditou, pois não é o bicho-do-mato que acredita ser, já que
qualquer de nós ficou contente por connosco o ter.
Calado e modesto é o
seu jeito, nem se apercebe que até uma criança vê a bondade que lhe enche o
peito. Não o sabe mas, lobriga muito mais que qualquer de nós possa imaginar,
e, como os poetas, vê mesmo os pássaros evoluindo no ar ou ideias práticas
navegando no ignorar que nos afoga.
Nasceu antes de
tempo, é o que é. É de outro século que ainda está por vir, daí sentir-se neste
mundo como em jigajoga e se ache mesmo mais émulo de si que dos demais.
É homem que ama a
vida e certamente amou, pois tem alma gigante e não é cego. Não terá quem lhe
acaricie o pequenino ego, nem lembrará já quem o merecido orgulho lhe roubou. Quem
será a mulher que o afaga ? O faz viver ? Porque me parece outra razão não ter
para continuar a ser, e não creio que a aziaga tristeza que por vezes o carrega, seja ludibriada a partir de um estojo no bolso da carteira, por onde aquece a
vida que, certeira, nele se alojou como uma ferida.
Não haverá uma de nós
que o não conheça, ainda que admita ter havido muito quem por conveniência o
esqueça. Mas quem é ? Perguntarão. Não mais que mais um ser sofrido pela
desilusão de tudo em que nos tornámos. Bandarra do nosso destino, psicólogo dum
íntimo que desconhecemos, cigarra agora de muitos trabalhos tidos, como um
menino, mordaz mas não malévolo, crítico dos nossos modos, brincalhão da língua
que falamos, cirurgião da fauna que somos e que semanal e exemplarmente se
disseca, nos disseca, sem rebuços nem enganos.
Mas é um ser sensivel
que decerto percorre os carreiros de forma irregular, para não pisar a vida que
os preenche. Ortopedista da natureza traído pela espécie a que pertence, disso
posso eu ter a certeza, tanta como jurar não ser a sua vida uma mimese.
Singela me pareceu
aquela rosa em botão. Não
tivesse sido a sua expontânea e ofuscante abertura, que ainda dura, e a
lembrança da sua presença e simpatia, não teria dado aso a esta crónica, que
mais não procura que fazer fluir do coração para a mão, uma empatia que não é
de agora, antes se funda em velha escora, tão profunda e tão fecunda que espero
fazer durar e perdurar, até ao longínquo dia que para o último de nós chegar.
Tenho a cozinha
banhada por uma aurora florida que é um hino à própria vida. Por culpa de um
peregrino c’a vida em busca de tino, que num instante consciente teve um gesto
tão bonito, lembrar-se que eu era gente. E aquela rosa ardente, vinda ela de
quem veio e que afinal também sente, me tem alegrado os dias, alvoraçado os
sentidos, arrancado de apatias e tornado mais coloridos os sonhos que ainda
alimento.
E àquele velho amigo
que sempre achei penitente e sempre considerei gente, como eu, como você, hoje
é para mim um parente e como eu combatente pela vida, essa torrente presente
que, pungente, imanente, contingente, crescente, resistente, fremente, potente,
absorvente, florescente, ignescente, incandescente, reluzente, imponente,
consequente, impaciente, intransigente, omnipotente, irreverente e estridente
nos está acometida e por atrevida é tão querida.
* Maria Luísa Baião escrito terça-feira,
10 de Janeiro de 2006, 11:51h e publicado num dos dias ou na semana
seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER em homenagem a António Saias.
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