sábado, 24 de novembro de 2018

NÃO ERA UM BOTÃO DE ROSA by Luísa Baião‎* ...


Chegou como quem está para partir, que é o seu modo de nos fazer pensar se não será incómodo, esquecendo ter sido eu mesma quem lhe pedira para vir. Lembrou então que era convidado e se sentou à minha mesa sem se fazer rogado. Na mão um lindo botão de rosa, escuro e encarnado que me ofertou singelamente e coloquei num jarro.

Tal qual um pisco se serviu da mesa, preparada com tempo para visita que se deseja e nos é querida. Falou mais que comeu, o que bastante me agradou e alegrou a vida. Talvez tenha gostado do jantar, é bom conversador e conversando ficou, diz que não é social mas ninguém acreditou, pois não é o bicho-do-mato que acredita ser, já que qualquer de nós ficou contente por connosco o ter.

Calado e modesto é o seu jeito, nem se apercebe que até uma criança vê a bondade que lhe enche o peito. Não o sabe mas, lobriga muito mais que qualquer de nós possa imaginar, e, como os poetas, vê mesmo os pássaros evoluindo no ar ou ideias práticas navegando no ignorar que nos afoga.

Nasceu antes de tempo, é o que é. É de outro século que ainda está por vir, daí sentir-se neste mundo como em jigajoga e se ache mesmo mais émulo de si que dos demais.

É homem que ama a vida e certamente amou, pois tem alma gigante e não é cego. Não terá quem lhe acaricie o pequenino ego, nem lembrará já quem o merecido orgulho lhe roubou. Quem será a mulher que o afaga ? O faz viver ? Porque me parece outra razão não ter para continuar a ser, e não creio que a aziaga tristeza que por vezes o carrega, seja ludibriada a partir de um estojo no bolso da carteira, por onde aquece a vida que, certeira, nele se alojou como uma ferida.

Não haverá uma de nós que o não conheça, ainda que admita ter havido muito quem por conveniência o esqueça. Mas quem é ? Perguntarão. Não mais que mais um ser sofrido pela desilusão de tudo em que nos tornámos. Bandarra do nosso destino, psicólogo dum íntimo que desconhecemos, cigarra agora de muitos trabalhos tidos, como um menino, mordaz mas não malévolo, crítico dos nossos modos, brincalhão da língua que falamos, cirurgião da fauna que somos e que semanal e exemplarmente se disseca, nos disseca, sem rebuços nem enganos.

Mas é um ser sensivel que decerto percorre os carreiros de forma irregular, para não pisar a vida que os preenche. Ortopedista da natureza traído pela espécie a que pertence, disso posso eu ter a certeza, tanta como jurar não ser a sua vida uma mimese.

Singela me pareceu aquela rosa em botão. Não tivesse sido a sua expontânea e ofuscante abertura, que ainda dura, e a lembrança da sua presença e simpatia, não teria dado aso a esta crónica, que mais não procura que fazer fluir do coração para a mão, uma empatia que não é de agora, antes se funda em velha escora, tão profunda e tão fecunda que espero fazer durar e perdurar, até ao longínquo dia que para o último de nós chegar.

Tenho a cozinha banhada por uma aurora florida que é um hino à própria vida. Por culpa de um peregrino c’a vida em busca de tino, que num instante consciente teve um gesto tão bonito, lembrar-se que eu era gente. E aquela rosa ardente, vinda ela de quem veio e que afinal também sente, me tem alegrado os dias, alvoraçado os sentidos, arrancado de apatias e tornado mais coloridos os sonhos que ainda alimento.

E àquele velho amigo que sempre achei penitente e sempre considerei gente, como eu, como você, hoje é para mim um parente e como eu combatente pela vida, essa torrente presente que, pungente, imanente, contingente, crescente, resistente, fremente, potente, absorvente, florescente, ignescente, incandescente, reluzente, imponente, consequente, impaciente, intransigente, omnipotente, irreverente e estridente nos está acometida e por atrevida é tão querida.

* Maria Luísa Baião‎ escrito ‎ terça-feira, ‎10‎ de ‎Janeiro‎ de ‎2006, ‏‎11:51h e publicado num dos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER‎ em homenagem a António Saias.
https://twitter.com/casasaias