Foto de Helena Margarida de Sousa, Évora. |
Hoje senta-se à minha
mesa no café, até podia dar-se o caso de ser meu pai, tem idade para tal, mas é
simplesmente um amigo, e que bom amigo ele é.
Talvez por isso é
fatal que, ao fim de semana, nos procuremos para esse ritual, de onde um cheiro
emana e, o sabor nos chama como apelo que, repetido ao longo do dia, já sem o
mito a que o primeiro dá corpo, acalma todavia a alma e lhe dá conforto.
È um atlas este homem
singular, enciclopédia vasta de uma vida escondendo estórias que a sua memória
arrasta. Nada nele há de que se deva envergonhar, tanto que gravatas são coisa
que nem usa, até porque a longa vida vivida não é comédia, nem recusa contá-la se
a conversa a jeito segue. O primeiro que se negue.
Não passava eu ainda
de um sonho, uma vontade, e já este meu amigo se esforçava, naquela outra
metade do mundo que o nosso império então pintava a cor-de-rosa e que mudou de
supetão, porque em alguma parte da terra uma mariposa bateu asas, segundo os
astro - físicos, ou porque um povo indígena se lembrou em algum momento de
dizer basta, mais não.
Qual ave de arribação
de novo volveu à sua origem, não sem que essa forçosa migração o tivesse levado
a rumar primeiro a sul, onde a vertigem das horas e da moda o não prendeu,
antes o atirou para o que agora chamo o seu convívio, mas que ele todas as
auroras apoda de seu desígnio.
Conheceu povos usos e
costumes e em cada um dos novos fusos e latitudes que pisou tanto aprendeu, que
é hoje um homem sereno, que do pleno da vida alcançou o cume, vida que, embora
madrasta por vezes, nunca permitiu a alguém ouvir-lhe um queixume ou notar-lhe
sequer leve azedume.
Ganhou amor à terra
em planaltos e savanas, imensidões por onde alargou olhar e espírito, apanhou
sobressaltos e, talvez repastos de lembrar e chorar por mais, que o atiraram
para o clube dos barriganas. Caçou provavelmente leões, hoje cria gado, revolve
a terra que aprendeu a amar e entretém-se nas horas vagas caçando chavões em
jornais.
Com nostalgia recorda
a África, onde se fez homem e deles amigo. Dessa lonjura carregou sabedoria
que, como castigo desabrido lançou nesta terra de que fez porto de abrigo.
Mendigo é que não, a não ser da amizade, que cultiva com prazer e das quais por
vezes tem vaidade.
Como não há-de
correr-lhe a vida em beleza ? Se o nosso
homem é todo dado à natureza ! Bom garfo, melhor conversador, perto dele não há
sururu, apenas o calor contagiante de conversas longas e serenas. Não parte um
copo o Francisco mas no remanso esfuziante dessas horas perversas é um pândega, ninguém sossega.
Calhou-nos encontrá-lo
de partida para férias, que após algumas lérias soubemos no mesmo destino. Foi
um desatino. Não partilhámos a cama mas partilhámos a mesa, que do primeiro
prato à sobremesa nos deu tempo para desatar a língua e, apesar do calor, nunca
deixámos a conversa morrer à míngua ou criar bolor, por tão ricos os vinhos e
petiscos e tão sem dor as farpas nos políticos.
Sempre foram umas
férias diferentes, com um compatriota à porta com quem debater os assuntos
imanentes à nossa condição. O meu marido adorou e, um dia houve, mesmo sem fatiota a rigor, que nos
passeámos de jipão por toda aquela área lindíssima a que os nuestros hermanos
chamam o Parque Natural de Doñana.
Não valem comparações,
o que eles usam ao domingo usamos nós de semana. Nunca terão uma floresta como
a nossa, quase virgem, selvagem, onde só bicho-do-mato entra. Na nossa só entra
bicho e fagulha, na deles não se vê no chão nem dos muitos pinheiros uma
agulha...
Como diria o
Francisco, orgulhoso da sua barriguinha, invejinha, invejinha...
*
Maria Luísa Baião, justissíma e merecida homenagem ao grande amigo Francisco Pândega, escrito quinta-feira, 7 de agosto de 2003, pelas 22:31h e
publicado num dos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE
MULHER.
Foto de Helena Margarida de Sousa, Évora. |