quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

556 - A IMPORTÂNCIA DO EQUADOR NO AMOR


 Texto em construção ...........  Entretanto terminado .........

 Texto em construção dissera eu, e bem, porque as cadelas apressadas parem os cães cegos, sempre ouvi dizer, mas dissera-o também por gostar de ver a bota bater com a perdigota. Que quero eu dizer afinal com toda esta conversa da treta, todo este intróito com que já vos brindei ?

Sim brindei, porque o texto fala de brindes e de Natal, portanto vamos a isto que se faz tarde e nem o pai morre nem a gente almoça, o texto era para sair precisamente hoje e não ontem nem amanhã, porque foi precisamente hoje dia 7, fez anos hoje ou celebrou-se outra vez uma efeméride de 74 em que na ponte do NRP Pereira da Silva e olhando a Este e Oeste dessa linha que o nosso imaginário teceu, eu queria ver o equador estendendo-se p’lo horizonte como quem olha o colorido do arco-íris sonhando achar os potes d’oiro nos seus princípio e fim.

Estava um gelo danado, a coisa deu-se pelas seis horas da matina desse sábado, precisamente quando chegou até mim o estridente som da sirene do navio assinalando o ritual de travessia do equador, estando o mar balançando dolentemente àquelas horas dessa fresca manhã de Dezembro por nos termos afastado duma tempestade que barafustava a Este. Inda que não tivéssemos avançado trezentas e setenta léguas para Oeste eu, aproveitando a solenidade do momento decidira-me pelo sim amor, pedir-te-ia em casamento mal pusésse pé em terra e te abraçasse.

Havia que aproveitar os astros conjugando-se, criando a oportunidade e o momento. Negar a tempestade aconselhara desviar o rumo do navio e, sulcando o Atlântico mais a Oeste que o habitual, originou, casual casualidade, uma excêntrica, dupla e momentânea solenidade logo por mim aproveitada para deitar as sortes, tentar a sina. Por um milagre do acaso o navio cruzou o equador no preciso local em que este e a linha divisória do Tratado de Tordesilhas proposto inicialmente pelo Papa Alexandre VI a D. João II de Portugal no séc. XV, tinham marcado esse sítio no grande mar oceano com uma cruz imaginária, profética e pronunciadora de augúrios futuros e felizes que haviam de fazer e fizeram a grandeza de Portugal, acreditando eu piamente que fariam também a grandeza deste nosso amor. Foi por pouco que não tocámos a ponta nordeste do Brasil.

Simpático o imediato “tapou-me e deixou-me” telefonar para tua casa nesse dia:

- Luisinha !! Estarei aí este Natal amor !! Levo uma grande surpresa querida !!! Uma surpresa gigante meu amorzinho !!!!

Ao descer para a messe/refeitório/bar comemorei a decisão oferecendo uma garrafa de whisky a cada elemento da minha companhia e a quem estivesse presente. Sosseguem, a maior parte da companhia preferira passar a licença em Luanda e não perder tantos dias no mar, dela estavam comigo no máximo meia dúzia e outra dúzia e meia de malta da guarnição do “NRP Pereira da Silva”, além disso a bordo uma garrafa de whisky custaria o mesmo que te custa hoje uma Sagres média em qualquer esplanada.


Eu queria amar-te sem medo Luisinha, amar-te com alarido e bem-querer, com grinaldas e fanfarra, queria amar-te de modo que o nosso amor fosse livre e festejado. Aprendera a amar em África, nas matas de Xangongo, a sul de Angola e a norte do Cunene, aprendera a amar com as doces mulheres negras nas pausas das suas missões na guerra nacional e patriótica que travavam a meu lado, aprendera a amar para sossegar o medo, aprendera a amar para me acalmar, aprendera a amar em silêncio, sempre de atalaia quanto ao ruído, amávamo-nos temendo ser ouvidos, por isso, quando muito tolerávamos o suave rumorejar das águas do Cunene mas de ouvido sempre atento, não fosse algum raminho estalar e sobressaltar-nos porque então e num repente, a mão abandonava prestes a cintura, a anca, o seio, o abraço, para lesta segurar tensa a arma sempre ao lado porque a mim o medo me levava a amar como quem procura a placenta, o ventre materno, e elas o pai ou a mãe que não tinham, buscando em mim a paternidade, a segurança, a ternura e o amor de que ambos éramos carentes e nos absolvia das imperfeições do mundo, todo ele prenhe de preconceitos e juízos de valor, por isso nos calávamos, por isso nos amávamos no segredo das nossas consciências, no segredo dos nossos corações.


Mas contigo eu queria amar sem medo Luisinha, contigo eu queria poder alardear este amor puro que me animava e te dedicava e ainda dedico, queria vivê-lo solto e em paz para que toda a gente soubesse e o festejasse como nós minha querida.

Esse Natal de 74 seria inesquecível, lembro os meus pais e eu próprio subindo a tua casa, pedindo a tua mão. A boda havia de ser marcada para a minha próxima licença, Agosto de 75, casaríamos a 9 desse mês e a 5 do mês de Julho do ano seguinte nasceria o menino, o nosso menino. É verdade minhas cuscas, somente dez meses depois do casório nasceu o petiz, portanto ela não ia grávida, não que não soubéssemos como se faziam os meninos, sabíamos e bem, mas porque quisemos manter os votos e a nossa pureza até ao casamento.

Com esta dos votos e da pureza é que vos fodi, como deverão então interpretar o parágrafo anterior ? Eu digo-vos, como quiserem, mas adianto-vos a título de curiosidade que tínhamos tido um acidente de mota na véspera do casamento, a Luisinha partira a bacia, estava engessada, sim a minha Luisinha custava a aguentar-se em pé, mas por nada quis desmarcar ou adiar a boda, havia muitos compromissos já tomados e todos os convidados de fora tinham já chegado. Eu só tinha arranhões nos pés, braços, joelhos, ancas e ombros. Portanto somente um mês depois o casamento foi consumado, somente depois do gesso tirado. Sim criaturas, os cintos de castidade não eram todos em ferro ou fechados a cadeado.

Depois ensinaste-me a amar sem medo, a amar-te descontraído e talvez por isso tenha sido ou julgo ter sido todos estes anos um bom marido.

Leio e releio o milhar de aerogramas que te escrevi, um por dia ou quase, mesmo sabendo seguirem só de quinze em quinze dias ou de mês a mês e guardados presos com um elasquinho na caixa das missangas, por motivos óbvios não pude guardar as tuas respostas meu amor, mas não espelhavam amor menos sentido que o meu minha querida.

Casámo-nos, não nos prendemos nem nos perdemos amor, libertámo-nos minha querida.

Da mata de Xangongo, Ombadja, Cunene, para meus pais, mana, irmãos, namorada e restante família. Fala-vos o segundo tenente miliciano Humberto Ventura Palma Baião para vos desejar um Natal próspero e um Ano Novo cheio de propriedades, beijinhos, adeus e até ao meu regresso.

A gravação ficara feita, não tivemos sequer tempo de a ouvir, mas confessa lá Luisinha, não esperavas, e nesse Natal tiveste duas das maiores surpresas da tua vida, foi ou não foi minha fofinha ?

Amo-te meu amor, amo-te e amar-te-ei sempre minha querida linda.



publicado integralmente pela primeira vez no Facebook em 7 de Dezembro de 2018 pelas 08:12h

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

555 - NÃO, NÃO FAZIA IDEIA, COMO SABER …


Gente bem-intencionada dissera-me tanta coisa, dera-me tantos conselhos que acabei ouvindo somente o zunzum de todos eles, coragem, força, a vida continua, a vida não pára, e as atitudes de conforto e reconfortantes eram tantas que fugi, fugi daqui, fugi deles e delas, de tanta boa intenção e tanta ajuda desinteressada que começava a sufocar-me. Meti-me no inter-cidades e caminhei meio dia até parar e ficar três ou quatro dias, para me meter de novo no dito mas em sentido contrário e só voltar a parar novamente em Lisboa. Ver família, ver amigos de longe, matar saudades para saudades esquecer e esquecer quanto me lembras, esquecer o roçar carinhoso da tua face na minha, o teu pé sempre sobre o meu, a tua perna insinuando-se entre as minhas, o teu abraço aconchegador e quente.

Por que me mentiram todos, mentiram, porque esta saudade não passa, sem ti tudo mudou de lugar e de aparência, a casa mudou, é outra, é maior, é outra a luz que se coa pelas janelas, é outra a luz que emana destes candeeiros. Mudo a altura aos estores, baixo-os, levanto-os, mas as sombras continuam mais sombrias e mais tristes, mudei as lâmpadas de todos os candeeiros mas teimam numa luminosidade que muda as penumbras, dantes acolhedoras, diferentes, e agora frias.

Até a gatinha mudou, não me acorda já matemática e diáriamente às sete horas, simplesmente não me acorda, a mim que nem durmo, anda por aqui de rabo encolhido e olhos esbugalhados até parar olhando-me, como se eu tivesse a culpa, ou a resposta, ou fosse a resposta, não Mimi já não há dona querida, a dona não volta amor, também eu me sinto confuso querida, mas dizem que é a vida, a vida não, a morte, não o compreendes nem aceitas, nem eu, o dono vai dar-te uma postinha de pescada e espero que fiques distraída porque eu não consigo.

Já me embarrilei de bacalhau assado e não consigo, e com cherne grelhado, nem com robalos consegui, nem recorrendo ao branco do melhor por melhor que seja e bem fresquinho esteja, hei-de experimentar a pescada querida, juro-te que irei guardar para mim umas postas de pescada para fritar, tanto que eu e tu gostávamos, acompanhada com arroz de tomate e branco fresco de Redondo, azeitonas e um niquinho de pão alentejano, juro que irei experimentar a pescada querida, e talvez acerte na altura dos estores, na luz dos candeeiros, talvez consiga acertar as sombras desta casa que agora me parece embruxada, enfeitiçada, talvez depois os fantasmas me deixem em paz e então ganhe a certeza de que o fantasma desta casa não sou eu mesmo nem és tu minha Luisinha querida, meu amor mais lindo



quarta-feira, 28 de novembro de 2018

554 - UMA LÁGRIMA NOS OLHOS, by Luísa Baião‎



Tenho por hábito guardar recortes de jornais. Umas vezes para ler mais tarde, outras porque constituem um arquivo para consulta, e, ou análise posterior. Arrumando um destes dias gavetas, dei com um desses recortes, a que já faltava a data, e que tinha, então, tido vontade de comentar aqui convosco, o que só não fiz porque tal recorte acabou perdido na miríade de apontamentos que sobre tudo vou guardando.

Tinha sido “arrancado” do Diário do Sul, publicado na primeira página, com foto em destaque, e com grande desenvolvimento nas páginas centrais. Noticia e fotos que por certo encheram de orgulho qualquer de nós, eborenses, e alentejanas.

Uma fábrica de Évora, A. J. Lobo, especialista na produção de painéis solares fotovoltaicos, fechou, nessa nem por isso remota semana, um contrato de investimento com a SHELL, para ampliação da capacidade produtiva, inovação de métodos e tecnologias, em que, segundo o dito diário, é única no país e na Europa.

Senti-me orgulhosa, investimento superior a dez milhões de euros, tecnologias de ponta, lembro-me de ao ler a peça quase me ter sentido lá no meio das cerimónias, vertendo uma lágrima de comoção.

A cerimónia, onde não estive, não me fez chorar, o que me comoveu foi ao ver no jornal as fotos do ministro da economia, do presidente da Shell Portugal, do vice-presidente da ShellI Internacional e claro o ilustre eborense, Senhor LOBO, (com letra grande). Membro de família conhecida no burgo e sobre quem se comentam percursos de trabalho e sucesso, com mais de trinta anos.

Família oriunda da Somefe, então uma escola de trabalho, família a quem o tempo, a força e capacidade premiaram com mérito. Já há pouca gente assim que, ao invés de estratagemas e ganhos fáceis e rápidos, trilhe caminhos tão difíceis de escalar, que só não assustam a quem o trabalho não tema nem envergonhe.

Mas como ia dizendo, o que me comoveu não me fez chorar. O que me dá pena é que, hoje mesmo, quarta-feira, 28 de Janeiro, pessoa insuspeita, Presidente da Agência Portuguesa de Investimento, ex-ministro e economista de gabarito, me tenha forçado a procurar outros recortes, que não achei e nem admira, pois o que eu precisava era tempo para os classificar e ordenar.

Procurava notícias recentes sobre uma figura marcante da economia portuguesa, José Manuel de Melo, a quem no passado fim-de-semana, de 24/25, os meios de comunicação dedicaram imenso espaço, e tempo. Tudo porque quer um quer outro, finalmente se não contiveram e afirmaram também eles ter visto o óbvio. Que o rei vai nu, já toda a gente sabe, deixemos passar mais algumas semanas e a dúzia e meia de compatriotas que ainda não deram por isso acabarão igualmente dando-se por achados.

Primeiro veio um gritar, preto no branco, que deveríamos vender isto aos espanhóis, não fosse dar-se o caso deles nem precisarem nem quererem isto para nada, clamando alto e bom som, já não acreditar em ninguém nem isto ter futuro. Depois veio o outro, que se escalfa para conseguir uns investimentozitos exteriores, questionar opções, como o mirífico Euro 2004, contrapondo que se deveriam ter utilizado essas arroubas de dinheiro para criar infra-estruturas viárias e outras, que se deveria ter apostado na saúde, na ciência, na educação, no emprego, na segurança social... Como se nós não soubéssemos que o fado é que induca, e o futebol é que instrói. Deviam ter bramado há mais tempo, agora assustam-me, tão só porque de tão insuspeitos como são, se assim falam é porque a coisa está mesmo preeeta...

Quando optámos pelos futebóis em vez de um futuro, toda a gente atirou bonés ao ar, agora, bem, agora é aguentar, porque isto ainda nem começou, e vai ser duro.


  
NOTA: * By Maria Luísa Baião‎ escrito quarta-feira, ‎12‎ de ‎maio‎ de ‎2004, ‏‎18:30h e publicado num dos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, em homenagem à eborense Família Lobo. Esta crónica foi posteriormente alvo de um gentilíssimo agradecimento por parte da dita família, agradecimento que muito honrou e comoveu a minha saudosa Luisinha e deverá encontrar-se arquivado no portfólio do Diário do Sul.

sábado, 24 de novembro de 2018

553 - LIDES‎ ... by Maria Luísa Baião * ...................


Olhou-me demorada e ternamente. Eu retribui o carinho passando-lhe a mão pela cabeça, de arrepio, coisa que sei não gostar. Uma provocação portanto. Retraiu-se um pouco, fugiu ao meu gesto e ajeitou-se melhor no sofá onde desde o almoço se estendera ao comprido. Tem uma propensão nata para a mandriice, então aos fins-de-semana, dias em que estamos todos em casa, até para comer tem preguiça e vai fazê-lo já quase a dormir.

Perdoo-lhe a preguiça nesses dias. É que não gosto, quando arregaço as mangas e me atiro a algumas das actividades que cabem às “domésticas” e com as quais embirro solenemente, que se atravessem à minha frente e me quebrem o ritmo. Contudo acho que se não for eu a diligenciá-las ninguém as fará melhor. Sempre detestei essas actividades, tenho mais e melhor com que me entreter, ocupar o tempo, com muito mais proveito para mim e para os outros. Mas tem que ser.

O barulho do aspirador é incómodo, dá uma volta no sofá, esconde a cabeça e as orelhas buscando ignorar-me e ao frenesim que arrasto, cujo tumulto sabe ser somente uma questão de minutos. Por outras palavras, torce-me o nariz. Essa coisa dos olhares ternos vai bem desde que não incomodemos. A ternura, como vêem também tem limites e condições. Não me chateies que eu faço o mesmo e ainda te pago com algumas meiguices. E eu julgando essa ternura ilimitada e incondicional.

Estamos sempre aprendendo. Modelamo-nos é o que é, adaptamo-nos às situações como os náufragos se adaptam às bóias e coletes salva-vidas.

O aspirador lá se vai esforçando, como um asmático. Espreito à janela, na paragem do autocarro uma velha fala sozinha. Eu pensando sozinha. Crianças pobres brincam umas com as outras, como eu quando pequena. Saltam à corda, brigam-se, apaziguam-se. Bate-me o coração por vê-las, sinto-me cansada, deve ser deste tempo, carregado de humidade. Aproximo-me da janela, os vidros embaciados, desenho um círculo com a mão e espreito. Oiço o aspirador há que tempos sorvendo desacompanhado, distraído, distraída eu, oiço o relógio da sala, olho as horas, recomeço a azáfama. Dizem que os chineses vêem as horas nos olhos dos gatos.

Contemplo o meu reflexo na janela, o círculo como um espelho, pareço uma mulher resignada, não o sou, somente detesto estas lides perfidamente repetitivas. E a preguiça estirada no sofá, como uma ofensa, um ultraje a mim mesma dirigido e eu, parva, voltei a passar-lhe a mão pela cabeça e de novo presenteada com igual indiferença.

É dia ainda, trovoadas e sombras da noite espiam-me por essa janela. A chuva, p’la intimidade dos vidros mostra-me os brilhos da rua inundada de água. O meu olhar torna-se silêncio, relembro promessas neste tempo lento de horizontes parcos e toma-me uma saudade imensa das palavras, de sons, de vozes quebrando o quebranto e tomando-me de assalto os sentidos.

O tempo e os sentidos, os mesmos que nos escondem na alma paixões de ontem, de hoje e de agora. O corpo, esse, confessamo-lo quando a hora chega. Querendo, o desejo faz das palavras silêncio e limite do que permanece, como as águas límpidas do mar oceano. Os gestos como reflexo dos sentidos e em cada pensamento o amor que nem o corpo nem a alma querem esquecer.

Penso nalgumas árvores que o Outono pinta de vermelho quente e recomeço as lides pondo fim ao vogar do espírito. No ardor de terminar lavo-me de fantasias, meditação e imaginação, medos, fobias e taras.

Afago-lhe de novo a cabeça, arqueia o dorso, eriça o pelo, salta para o chão, roça-me as pernas e solta um miar curto e baixo. Já sei o que quer. Esta minha gata é um espectáculo, só lhe falta falar !


* Maria Luísa Baião‎ escrito segunda-feira, ‎19‎ de ‎Outubro‎ de ‎2006, ‏‎12:22h, publicado em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.


552 - INVEJINHA, INVEJINHA... by Luísa Baião ‎* ...

Foto de Helena Margarida de Sousa, Évora. 

Hoje senta-se à minha mesa no café, até podia dar-se o caso de ser meu pai, tem idade para tal, mas é simplesmente um amigo, e que bom amigo ele é.

Talvez por isso é fatal que, ao fim de semana, nos procuremos para esse ritual, de onde um cheiro emana e, o sabor nos chama como apelo que, repetido ao longo do dia, já sem o mito a que o primeiro dá corpo, acalma todavia a alma e lhe dá conforto.

È um atlas este homem singular, enciclopédia vasta de uma vida escondendo estórias que a sua memória arrasta. Nada nele há de que se deva envergonhar, tanto que gravatas são coisa que nem usa, até porque a longa vida vivida não é comédia, nem recusa contá-la se a conversa a jeito segue. O primeiro que se negue.

Não passava eu ainda de um sonho, uma vontade, e já este meu amigo se esforçava, naquela outra metade do mundo que o nosso império então pintava a cor-de-rosa e que mudou de supetão, porque em alguma parte da terra uma mariposa bateu asas, segundo os astro - físicos, ou porque um povo indígena se lembrou em algum momento de dizer basta, mais não.

Qual ave de arribação de novo volveu à sua origem, não sem que essa forçosa migração o tivesse levado a rumar primeiro a sul, onde a vertigem das horas e da moda o não prendeu, antes o atirou para o que agora chamo o seu convívio, mas que ele todas as auroras apoda de seu desígnio.

Conheceu povos usos e costumes e em cada um dos novos fusos e latitudes que pisou tanto aprendeu, que é hoje um homem sereno, que do pleno da vida alcançou o cume, vida que, embora madrasta por vezes, nunca permitiu a alguém ouvir-lhe um queixume ou notar-lhe sequer leve azedume.

Ganhou amor à terra em planaltos e savanas, imensidões por onde alargou olhar e espírito, apanhou sobressaltos e, talvez repastos de lembrar e chorar por mais, que o atiraram para o clube dos barriganas. Caçou provavelmente leões, hoje cria gado, revolve a terra que aprendeu a amar e entretém-se nas horas vagas caçando chavões em jornais.

Com nostalgia recorda a África, onde se fez homem e deles amigo. Dessa lonjura carregou sabedoria que, como castigo desabrido lançou nesta terra de que fez porto de abrigo. Mendigo é que não, a não ser da amizade, que cultiva com prazer e das quais por vezes tem vaidade.

Como não há-de correr-lhe a vida em beleza ?  Se o nosso homem é todo dado à natureza ! Bom garfo, melhor conversador, perto dele não há sururu, apenas o calor contagiante de conversas longas e serenas. Não parte um copo o Francisco mas no remanso esfuziante dessas horas perversas é um pândega, ninguém sossega.

Calhou-nos encontrá-lo de partida para férias, que após algumas lérias soubemos no mesmo destino. Foi um desatino. Não partilhámos a cama mas partilhámos a mesa, que do primeiro prato à sobremesa nos deu tempo para desatar a língua e, apesar do calor, nunca deixámos a conversa morrer à míngua ou criar bolor, por tão ricos os vinhos e petiscos e tão sem dor as farpas nos políticos.

Sempre foram umas férias diferentes, com um compatriota à porta com quem debater os assuntos imanentes à nossa condição. O meu marido adorou e, um dia houve, mesmo sem fatiota a rigor, que nos passeámos de jipão por toda aquela área lindíssima a que os nuestros hermanos chamam o Parque Natural de Doñana.

Não valem comparações, o que eles usam ao domingo usamos nós de semana. Nunca terão uma floresta como a nossa, quase virgem, selvagem, onde só bicho-do-mato entra. Na nossa só entra bicho e fagulha, na deles não se vê no chão nem dos muitos pinheiros uma agulha...

Como diria o Francisco, orgulhoso da sua barriguinha, invejinha, invejinha... 


* Maria Luísa Baião,‎ justissíma e merecida homenagem ao grande amigo Francisco Pândega, escrito quinta-feira, ‎7‎ de ‎agosto‎ de ‎2003, pelas ‏‎22:31h e publicado num dos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.
Foto de Helena Margarida de Sousa, Évora.