segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

563 - ALVO, VÉRTICE, BISECTRIZ, TANGENTE ...



ALVO VÉRTICE PONTO ...


Tu em pé, altiva e hirta,
eu de joelhos, abraçado a ti,
mirando-te,
olhando-te de baixo para cima,
admirando-te as colunas de Hércules,
o olho de Ciclope,
o olhar trespassando-te,
o desejo latente,
ante ti eu, um lactente sedento,
olhando o Paraíso, a maçã,
o fruto apetecido e eu,
de novo eu, sempre eu.


Homem amadurecido,
sucumbindo à tentação,
ao fruto proibido, trepando,
 p’las marmóreas colunas acima,
agora abertas,
agora convidativas,
dando passagem a minha nau,
acolhendo o meu rumo,
e eu sedento,
e tu o sumo.

E além,
o Farol de Alexandria
assinalando a noite,
marcando o ritmo, o dia,
policiando as águas agitadas
como dois lençóis em desalinho,
e entre sedas e linho,
o cálice ! o cálice !
quero-o !
a cicuta, a cicuta,
a mim !
anseio matar esta sede,
este desejo, fantasia, ambição,
sonho, melodia, delírio.

Tremem as colunas de Hércules
ante meu gatinhar sôfrego e,
de tão fortes oscilam sob tensão,
tangem, vibram como cordas,
viola, violina, violão,
fado, destino,
vibrando hesitantes,
dissonantes,
cunha cravada entre querer e não querer,
entre o dar e o haver,
saldo, preço, conta, sacrifício,
razão e emoção, quem vence ?

O coração,
que tacteias com a mão e
abres como pétalas em flor c’os dedos teus,
e o néctar, o néctar, agora meu,
e tu, e eu, e nós,
e em minhas faces o mármore gelado
das colunas quentes,
ardentes,
a cicuta bebida num trago,
avidamente,
o Farol no máximo.

A luz omnipotente,
as estrelas, só estrelas,
tudo estrelas,
as colunas fechando-se e
o meu abraço cingindo-as,
enlaçando-te,
e tu, qual Ciclope,
tacteando-me os cabelos,
puxando-me, empurrando-me
contra ti.

O olho do Ciclope dado,
dando-se, 
abrindo-se, extasiado,
surpreendido, estupefacto, e
finalmente fechando-se,
sossegando, dormindo,
e eu
num abraço arrebanho contra mim o mar,
Mediterrâneo, Atlântico,
velando as tuas águas,
o teu descanso até
ver em meu redor mar chão,
ouvir o canto das sereias,
divisar ao longe o galeão.

Onde
dessedentados partiremos
rumando um novo rumo,
construindo um novo mundo,
redescobrindo arquipélagos,
enseadas, portos, abrigos,
e de novo o amor,
o mesmo outrora tão temido,
ora perdido, ora encontrado,
agora o passadiço,
passado é passado,
subimos ambos,
devagar,
tu à direita eu à esquerda,
a espada balançando na cintura,
o galeão ondulando na maré,
o espartilho,
corpete dando-te forma,
um camarote real,
baldaquino,
dossel,
o amor, o amor,
o galeão avançando,
navegando,
balançando como um carrossel…



Nota: O corpo humano, no todo ou em parte, pode ser visto sob vários prismas, desde os mais objectivos até àqueles altamente subjectivos. 

A verdade é que eles existem, os prismas, desde o mais baixo, o alarve, popular ou pornográfico, no geral ofensivo, existindo a contrabalançar o prisma estético, ligada ao belo, à beleza, à pintura, à escultura, ao desenho ou à fotografia.  

Já o nobre prisma ou a nobre perspectiva ética defendem que o corpo humano é para respeitar e não é para vender, violentar ou violar por exemplo. Na perspectiva artística defende-se desde há milhares de anos que (em especial o corpo feminino) o corpo seja alvo de admiração se estimado, trabalhado, mente sã em corpo são, admiração que está na origem dos cânones clássicos inda hoje mui considerados. 

Naturalmente não esqueçemos a perspectiva médica, o corpo é um sistema de órgãos muitíssimo complexo. Mais complexo que um automóvel, um avião ou um computador, e deveras muitissímo mais sensível e melindroso.  

Isto para não falar das perspectivas ou abordagens mais subjectivas que a literatura lhe dedica, em prosa ou poesia, geralmente duma beleza ímpar, e que infelizmente não estão ao alcance de toda a gente por razões compreensíveis. 




sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

562 - PARA VÓS, COM CARINHO, by Luísa Baião *



Sou viciada em café, do cheiro ao sabor tudo nele me agrada, pelo que raro é o dia em que não tomo três, quatro ou cinco bicas. Qualquer dia estou castanha, tão castanha como os pulmões dos viciadinhos em tabaco, de que em casa existe um belo exemplo.

Tenho uma vida algo atribulada e ando sempre correndo daqui para ali, que me cansa mas a que não dou descanso, temendo que o ócio traga ao cimo tudo em que não quero nem pensar. Acredito que venha a morrer bem tarde, tanto tenho para fazer tanto há a fazer que o vagar não chega para tal. Adiante pois que tristezas não pagam dívidas.

Um destes dias corria eu para a bomba da gasolina em cujo café já tomei mais bicas que litros meti no carro, quando se acercaram de mim alguns taxistas amigos que sem rodeios me atiraram com a seguinte questão; “ó Dona Luísa, não soubéssemos nós da sua vida e não nos viria à cabeça esta pergunta: Quando tem você tempo para escrever as suas crónicas ?”

Não foram os primeiros a quem a questão se colocou, amigas e amigos vários têm manifestado a mesma surpresa, a par da surpresa para mim que é o facto de saber que me apreciam, o que, modéstia à parte, me envaidece um pouco e me dá alento para não parar.

Pois bem meus amigos aqui vai o meu segredo, como vós gosto de ver televisão mas dado que alguma coisa de jeito só lá para as tantas, fico depois de jantar com algum tempo livre para ler, do que gosto muito, e evidentemente para alinhavar estas minhas crónicas, as quais o meu marido depois muito gentilmente bate no computador. (tirando isto pouco mais faz lá em casa).

Vários canais de TV e horários para quem tenha insónias, cousa de que felizmente não padeço, são portanto do melhor que me poderia ter acontecido, de outra forma ficaria provavelmente agarrada à TV e esquecida de mim e de vós. Uma outra coisa que solenemente aprecio é a conversa e quando posso, em especial nos fins-de-semana, é verem-me no Bigorna ou no Arcada, este coitado está mesmo a dar as últimas, ou nas respectivas esplanadas, se o tempo o permitir.

Esplanadas, sobretudo nas noites de Verão é das coisas que mais aprecio em especial se o café for do Nabeiro e as companhias puxarem bem pela conversa. Era com vocês que adoraria estar, perna trocada, bica fumegando, dois dedos de parlapiê, mas digam-me francamente, onde estão então que raramente vos encontro a todas (os) ? Vai daí, e já que não me dão hipóteses de privar de perto convosco, olha ! Escrevo-vos ! Para aliviar e sublimar esta carência de amizades que a vida, o tempo disponível e os compromissos não nos permitem partilhar.

E não pensem que esta forma de convosco estar, falar, não tem vantagens porque tem, vocês já viram que sou eu quem escolhe os assuntos ? Sou eu quem dá à conversa o rumo que pretendo ? E a vantagem de nunca entrarmos em polémica ? Ou se gosta, ou não, ou se concorda ou não, mas que tenha dado por isso nunca nos aborrecemos ! Nunca houve a mínima discussão ! Claro que estou a brincar, nada mas nada substituirá nunca o prazer da vossa presença, mas que fazer ? Se outras possibilidades não há ?

Se ainda formos vivas (os) quando Évora tiver uma Praça Grande, com jardins, cafés, esplanadas, relva e estacionamento, uma fonte bem iluminada e bicas largando fios de água, se Évora tiver um dia, ainda nas nossas vidas uma “movida” como a que invejo em tantas cidades do país e do estrangeiro, então sim, todo mundo por lá passará, todas (os) nos veremos com maior frequência, travaremos tagarelas e puxaremos pela língua a quem se cale, correremos as montras de braço dado, escutaremos os músicos de improviso e riremos dos malabaristas, dos cospe fogo e dos mágicos. Mas assim, sem praça grande nem pequena, sinceramente não vale a pena.

Aproximam-se as férias, esta aldeia grande vai ficar sem gente, também eu aproveitarei para fugir daqui por uns dias e descomprimir. Espero sinceramente que as vossas férias sejam proveitosas, alegres e divertidas, já que por cá a diversão a sério só começará lá para Setembro e será tanto mais animada quanto mais nos aproximarmos de Dezembro e das Autárquicas. Aí é que a coisa vai aquecer e ficar preta, preta como o café que adoro, vão ser tempos interessantes vão…

* Publicado por Maria Luísa Baião‎ em 13-7-2001 no jornal Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER



quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

561 - O PRAZER DA ESCRITA, O PODER DA PALAVRA * by Maria Luísa Baião


Sou mulher, quero fazer das palavras alegria, p’ra que a noite se converta em dia e elas transformem em mim a vida que vivia.

Ecoam no meu ser sonoridades, quentes, ciciadas, bafejadas. Toques, afagos, aconchegos, que hoje são desejos, saudades, ecos de maternidades. Flanelas, biberões, já foram sons, janelas, escancaradas como grades serradas, uma fuga para a frente jamais na memória dissolvida. Era isso a vida.

Soletrada a palavra, ainda como brincadeira e então o suave tacto do pano, livro primeiro, depois o “ a b c “ já se vê, e seguidamente, durante a vida inteira, nunca mais a palavra foi engano, nunca mais foi verdadeira, porquê?

Colegial precipitada pois claro, mas poderia ter sido de outra forma? A pressa em conhecer o mundo inteiro, os livros, o amor, a escrita, um diário, um tinteiro. A leitura à jorna, a imaginação, delirante ! E confesso que daí por diante, uma criatura foi moldada, no prodigioso mundo da palavra. Talvez tu desconheças, mas eu sei que a palavra é realismo mágico, passado e futuro podendo ser trágico, também um mundo novo que se abre. É fogo que arde, é milagre, é sentimento, é verdade, é falsidade, e maldade.

Comovem-me as palavras, consomem-me as palavras, amor e perversão andam abraçadas, em idílicas cenas tão fielmente retratadas nas palavras como dor e coração, tão deturpadas que dissecadas nos enchem as mãos de... Nada. Sou mulher, sou desejo, sedução, sou ensejo, sou maldição. Não creias nunca no anátema, palavras são palavras, são traição. Sou mulher, sou virtude, sou beleza e oração.

Uma bátega se abate sobre mim, tanto melhor não quero que me vejas assim. Disfarça lágrimas escorrendo-me pela face ácidas mas felizes, sôfrega emudeço, não há palavras que descrevam tanto amor. Pela primeira vez não encontro palavras p’ra tanto fervor. Eu, tu, porque não ser felizes ? Altero-te as hormonas se me passeio p’las ruas, perdes o norte às viagens e esqueces que são simples feromonas a origem das tuas incompreensíveis miragens. Tão fielmente retratadas nas palavras que de fórmulas mágicas a enformam, a mulher é vertigem, é alvo das mais incrédulas abordagens.

Desmistifica, exorciza o teu pensar porque, qualquer mulher vai muito além do que é vulgar. Não cuides influenciar comportamentos, as palavras, só as palavras mudarão o curso dos acontecimentos. Vida é arrebatamento e fulgor, é também deslumbramento e amor. Amor que é belo e cega, e para despertar uma só palavra tantas vezes lhe chega. Não me venhas com os eufemismos usuais, pois a ficção que é a vida, torna tantas vezes as palavras banais. Põe-me antes ternamente a mão sobre a espádua e verás que mais que palavras, será esse teu gesto lindo que, ruborizada e febril, me fará fugir para debaixo de água.

Deixa escorregar teus dedos por minha face corada, afugentarás meus medos, dir-te-ei quanto desejo ser beijada. Torna-me espiral, voluta, faz-me sentir especial, impoluta, acarinhada. Segreda-me palavras, eleva-me nos ares até que sinta derme e epiderme arrepiadas. Não cries entre nós desertos, não permitas desejos esmorecidos, palavras são segredos, que se incertos paulatinamente se verão esquecidos.

Não ! Porque o amor não esquece, e se a saudade no meu peito cresce é a tua imagem que, onírica me surge, e sentir-me querida me envaidece. Vem, o tempo urge. Sim é verdade, não suporto a inocência da maldade, nem a indolência e a passividade da paixão desavinda, da saudade. O corpo arde-me de desejo, num cerco de seduções e palavras me atormentas, dói-me não ver da tua parte ensejo de pôr cobro a tão ardentes paixões, tão violentas.

As palavras, sempre as palavras, a ficção que é a vida, a tua imagem, o silêncio, requerem mais coragem que, o que penso ser-me homenagem devida, Inocêncio. Inocêncio ou Alberto, João, António, Carlos, Augusto, que interessa? Importante é que venhas depressa. Traço teu retrato com as mãos, com barro moldo um artefacto, um busto, um rosto, oh ! E com que gosto.

O intimismo da memória mente, tanto mais quanto mais tempo estás ausente. Canto vitória e ordeno-te: corre para mim, simplesmente ! Deixo as palavras penetrar fundo em minha mente, uma decisão que nada muda, continuo carente, de paixão, de amor ardente a que o espírito o corpo desnuda. Por palavras a mim mesma descrevo um gesto teu, de verdade despido, porque na razão inversa do que penso, estás longe, e estás vestido.

E meu corpo é mar revolto, turbilhão ansiando doce bonança, ver-te devoto, junto a mim devolvendo-me a esperança. Faminta te deixo a boca, sedenta, álacre e louca, pinta numa cena barroca, acre, doce e ternurenta o reencontro desejado, tantas vezes sonhado, tão na verdade vivido quão na memória sofrido.

Sou mulher, sou mãe, sou devoção, mas nunca serei cega para tanta emoção. Sou mulher, sou assim e sou feliz, tu para mim amor és uma benção, amo-te, adoro-te, orgulho-me de ti. Sou cega quanto pode ser por simpatia mulher que acima de tudo coloca a idolatria. Eis-me algoz de amor feroz, muitas vezes as palavras são tudo, por vezes as palavras não são nada. Na sua voragem me embeveço, a viagem começa na primeira página, termina onde adormeço e só quando o livro tomba aprecio a miragem que não esqueço.

Tive tempo, tive amigos, mas saberão vocês porque escrevo? Porque o mundo me cerca e não me atrevo a crer que alguma vez os perca. Palavras são elo de corrente, são forma de me amarrar a vós para sempre. Modo diferente só de compensar a falta de espaço e de lugar, sentir-me entre vocês, ficar contente.

A escrita, pois, a escrita, o seu poder, umas vezes evasão, se ando a correr, outras, formas de acertar horários para vos não perder. Dúbia, dúplice, enganadora, lastimável, horrível ou confrangedora, é e será sempre sedutora, inenarrável, sofrível, enternecedora.

Troco impressões com Saramago, Lobo Antunes, Kundera e tantos outros, que há muito coabitam meu ser, meu mundo, meus diálogos. Todos loucos ou não, não sei dizer, quantos conciliábulos não se fizeram já, sempre, sempre no sentido de vos levar a ler. Consegui-lo, quem me dera ! A palavra é uma arma cantou o poeta e se em tal não acreditas não deites foguetes, não faças a festa. Palavras são punhais e só por isso tanto preocupam certa gente os livros que lês ou o caminho por onde vais. Estuga o passo, lê, troca impressões, esgrime o florete da retórica, não deixes que te cortem cerce as ambições. Palavras, acredita, são uma das formas de não morrer jamais.

Assim foi que, estando a cidade sitiada e o valoroso Constantino defendendo-a, nos baluartes, dentro dela os monges continuavam em discussão acesa sobre qual seria o sexo dos anjos” **
   
* Texto submetido a concurso literário promovido pela Câmara Municipal de Redondo no ano 2000 e publicado em 4-8-2000 no Semanário IMENSO SUL, coluna Kota de Mulher.

**  in Notícia do cerco de Bizâncio. 


domingo, 23 de dezembro de 2018

560 - EU CUIDADOR ME CONFESSO.......................


… Outros sinais me davam conta do apelo do Universo a que ela cada vez mais correspondia, é certo que vos conto tudo isto em meia dúzia de linhas mas foram semanas, meses, anos. A duração desse apelo universal durou meses, a corte sideral lançada na sua conquista foi arteira, tudo se desenrolando tão lentamente que o olho mais apurado não notaria, não daria conta do gigantesco afastamento de planetas, estrelas e galáxias devido à constante expansão desse Universo. Como dar então conta de tão subtis manifestações nela ?

Outro sinal foi-me dado pelo jornal, aos sábados eu levava para casa o Expresso, do qual éramos leitores desde a primeira hora, desde o primeiro número. De uma vista cuidada por todos os cadernos ela passou a abandonar primeiro o primeiro caderno, desculpai-me a redundância, depois o caderno de economia, e por fim até a revista e as suas tão caras “amigas e amigos” Ana Cristina Leonardo e Clara Ferreira Alves, o padre Tolentino, o Eng.º Jorge Calado e o imaculado Pedro Mexia, palavras dela.

Há muito descurara a música, afastara-se das redes sociais onde só de vez em quando ia para deixar uma poesia, um qualquer sinal de que neste canto da galáxia ainda havia vida, na galáxia e naquela casa onde a vida ainda palpitava. Há mais de quarenta anos que as horas das refeições eram acertadas pelos horários dos principais telejornais. A televisão da cozinha, a última a ser abandonada, deixou simplesmente de ser ligada numa fase adiantada da doença, nem a da salinha, onde por vezes inda ia, estirando-se no sofá, alheia a tudo menos à gatinha que nos últimos dias, digo dois a três meses nunca a abandonou tendo eu agora a certeza que lhe previu o fim muito antes de qualquer de nós, médico incluído, nos termos apercebido da gravidade e da velocidade vertiginosa que a queda no buraco negro do espaço sideral tomava.

Deambulo pela casa, pareço um sonâmbulo, até que me estiro, como a Luisinha gostava de se esteirar ao fim do dia, no sofá, entre as minhas pernas e com a cabeça no meu colo, eu falando-lhe, ela descansando e ouvindo, por vezes lia para ela, fecho o livro, não quero acordá-la, a Luisinha não se tinha deitado, tinha ficado a ver TV e depois de acabar o programa que estava vendo começara a ficar rabugenta. Mais tarde continuei a leitura da poesia de Amália Bautista;

                  NO FIM

No fim são muito poucas as palavras
que nos doem a sério e muito poucas
as que nos conseguem alegrar a alma.

São também muito poucas as pessoas
que tocam o nosso coração e menos
ainda as que o tocam muito tempo.

E no fim são pouquíssimas as coisas
que em nossas vidas a sério nos importam:

poder amar alguém, sermos amados
e não morrer depois dos nossos filhos.

   Poema de Amália Bautista, 1999 in "Cuentamelo Otra Vez"

adormecia, ia metê-la na cama, por vezes vestida, tadinha mimei-a muito, devia tê-la mimado ainda mais. Amávamo-nos a valer, fizemos muito um pelo outro, e ela agora uma estrela no firmamento, tadinha, hoje desatei a chorar frente a uma lojista, não me contive, ainda não estou bom, tinha ido devolver os medicamentos dela para que a farmácia Paços (com ç) os encaminhasse para o lixo próprio, farmácia onde éramos bem conhecidos e bons clientes, e repentinamente toda aquela gente a dar-me os pêsames, foi triste, lá consegui fugir, para ir a uma óptica ali ao lado onde tenho um amigo apertar uns óculos Ray Ban que eram da Luisinha e a Leonor achava giros, apertar as hastes e arranjar-lhe uma caixinha bonita. Mas após alguns minutos de bla bla bla, com a funcionária desatei-me, agradeci e abalei a esconder a cara não fui capaz de evitar o pranto. Já vinha "embalado" da farmácia...

Somos humanos, é normal, penso que sim, ficaram giros os óculos, limparam-nos, pareciam novos, caixa nova, a Leonor vai rejubilar. Outros maiores ficaram para a Catea, novíssimos, a Luisinha tinha-os comprado para esconder a cara e os olhos... É a vida dizem. Verdade, e como se não bastasse eu andar mole uma antiga vizinha nossa no café veio dar-me os sentimentos e agarrou-se a mim a chorar... Ia-me rebentando o choro também, fugi dali, digo abalei, desopilei, desandei, depois esbarrei com outra…

sábado, 22 de dezembro de 2018

559 - TIRO O CHAPÉU AO SAÚL by Luísa Baião *

Podia ser o carpinteiro Saúl...
Podia ser o carpinteiro Saúl...
                                                                                                                        Podia ser o carpinteiro Saúl...     



                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

        Usa uma boina coçada um novo amigo que fiz. Encostado a uma bancada o encontrei numa festa onde, feliz saltitava, de uns p‘ra outros até que, num golpe de sinestésia (vai buscar o dicionário amigo Saúl), ultrapassou o rogado e me dirigiu palavra.

        Cavalgando um alazão um tudo-nada etilizado, nem perdeu por isso o condão de, em modos de João-ninguém, solícito se apresentar, numa postura em que, implícito, eu deduzia, um carácter em que luzia, trémula, uma alma íntegra, talvez até à medula.

       Exteriorizando alegria, não estudada mas sincera, qualquer uma enxergaria que, apesar das negras nuvens que lhe toldavam o andar, ser vera essa alegria espraiada no seu olhar.

        Percebi ter mãos de mago e obra feita na terra, não ser o drago que o pintam nem fazer guerra aos que o tentam, pois apesar de fruir uma vida mal-amada, este homem é um portento. Mal-amada vos disse eu, talvez errada no lance por obra de outro plebeu que mo confessou de relance. Uma impressão me pareceu naquele lídimo dono de um nariz de judeu, um arrimo de profeta, que mau grado a bruma dos dias o é de coisa nenhuma mas que da vida é um esteta.

        E quando com minudência lhe divisei bem o rosto, de aparência sempre calma, reparei em cicatriz que, não se ostentando por gosto, me levou a perguntar-me quantas mais não guardará na matriz da sua alma. Como pode não ser bom, não ser bondoso e vaidoso quem de coração aberto nos apresenta, baboso, desperto da névoa etílica, um filho de feição idílica, moço bonito, espadaúdo, e como o avô, espigado, que por certo de donzelas se verá sempre cercado.

          Dizendo-se velho o Saúl, mais não faz que se enrolar nas voltas que a vida dá, a sua história é a estória duma vida a que não terá querido dar qualquer vitória, por mais que ela seja fútil. Por mais que o negue, o Saúl, nem é velho nem inútil, e não me sai da cabeça que só é tão áspero consigo por pensar que perdendo-se sacudirá de cima o destino.

          Maldiz o mundo porque o sente, não o ama porque o não pensa. Será que ele desconhece que em tudo pomos um tino ? Não que não o aparente, parece ser um ser feliz a quem o passado persegue e eu espero, sinceramente que um dia em algum pagode, olhando dentro de si, exulte como quem descobre a ponta dum qualquer novelo, ser a vida um atropelo a que nos cabe pôr cobro, descobrindo se o malogro é sonho ou pesadelo.

         Não foi um velho que eu vi, foi um ser inteligente que teima, não sei porquê mirar-se em espelho passado, quando o que deve fazer é, à força de um carretel, subtrair-se a essa toleima que afunda tanto indigente. Não há nenhuma entre nós que não seja em algum momento, escrava das circunstâncias, viver tem altos e baixos, é carrossel de alternâncias, como uma noz num tormento, o fiel numa balança, o sorriso num pensamento.

         E é na perseverança, não no gesto simples e fácil de elevar uma garrafa que acharemos a adiafa que por direito nos pertence, ela é uma ténue esperança, qual porta só acessível a quem em vida se esforça, que quer, que luta e que vence.

         Hoje afoga-se n’outras águas, mas tempos houve, decerto, em que depois de afundado nos olhos de uma mulher, se viu perdido no deserto.

        Com um velado respeito p’la progenitora, presente, por quem levou a mão ao peito, o Saúl é muito afável, simpático, nunca ausente, cultivando um velho saber, mais próprio de um povo asiático. Bom fadista e dançarino, evocou-me três mulheres; uma muito mal casada, uma simplesmente casada e outra que não chegou a casar.

         Aqui vos deixo uma pista do que é um estere, um decastere ou decistere de um nada vulgar destino.

   Podia ser o carpinteiro Saúl de S. Miguel de Machede...
                                 
* Escrito em  25 Agosto de 2003 por Maria Luísa Baião‎ e publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER

Podia ser o carpinteiro Saúl de S. Miguel de Machede...