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domingo, 23 de dezembro de 2018

560 - EU CUIDADOR ME CONFESSO.......................


… Outros sinais me davam conta do apelo do Universo a que ela cada vez mais correspondia, é certo que vos conto tudo isto em meia dúzia de linhas mas foram semanas, meses, anos. A duração desse apelo universal durou meses, a corte sideral lançada na sua conquista foi arteira, tudo se desenrolando tão lentamente que o olho mais apurado não notaria, não daria conta do gigantesco afastamento de planetas, estrelas e galáxias devido à constante expansão desse Universo. Como dar então conta de tão subtis manifestações nela ?

Outro sinal foi-me dado pelo jornal, aos sábados eu levava para casa o Expresso, do qual éramos leitores desde a primeira hora, desde o primeiro número. De uma vista cuidada por todos os cadernos ela passou a abandonar primeiro o primeiro caderno, desculpai-me a redundância, depois o caderno de economia, e por fim até a revista e as suas tão caras “amigas e amigos” Ana Cristina Leonardo e Clara Ferreira Alves, o padre Tolentino, o Eng.º Jorge Calado e o imaculado Pedro Mexia, palavras dela.

Há muito descurara a música, afastara-se das redes sociais onde só de vez em quando ia para deixar uma poesia, um qualquer sinal de que neste canto da galáxia ainda havia vida, na galáxia e naquela casa onde a vida ainda palpitava. Há mais de quarenta anos que as horas das refeições eram acertadas pelos horários dos principais telejornais. A televisão da cozinha, a última a ser abandonada, deixou simplesmente de ser ligada numa fase adiantada da doença, nem a da salinha, onde por vezes inda ia, estirando-se no sofá, alheia a tudo menos à gatinha que nos últimos dias, digo dois a três meses nunca a abandonou tendo eu agora a certeza que lhe previu o fim muito antes de qualquer de nós, médico incluído, nos termos apercebido da gravidade e da velocidade vertiginosa que a queda no buraco negro do espaço sideral tomava.

Deambulo pela casa, pareço um sonâmbulo, até que me estiro, como a Luisinha gostava de se esteirar ao fim do dia, no sofá, entre as minhas pernas e com a cabeça no meu colo, eu falando-lhe, ela descansando e ouvindo, por vezes lia para ela, fecho o livro, não quero acordá-la, a Luisinha não se tinha deitado, tinha ficado a ver TV e depois de acabar o programa que estava vendo começara a ficar rabugenta. Mais tarde continuei a leitura da poesia de Amália Bautista;

                  NO FIM

No fim são muito poucas as palavras
que nos doem a sério e muito poucas
as que nos conseguem alegrar a alma.

São também muito poucas as pessoas
que tocam o nosso coração e menos
ainda as que o tocam muito tempo.

E no fim são pouquíssimas as coisas
que em nossas vidas a sério nos importam:

poder amar alguém, sermos amados
e não morrer depois dos nossos filhos.

   Poema de Amália Bautista, 1999 in "Cuentamelo Otra Vez"

adormecia, ia metê-la na cama, por vezes vestida, tadinha mimei-a muito, devia tê-la mimado ainda mais. Amávamo-nos a valer, fizemos muito um pelo outro, e ela agora uma estrela no firmamento, tadinha, hoje desatei a chorar frente a uma lojista, não me contive, ainda não estou bom, tinha ido devolver os medicamentos dela para que a farmácia Paços (com ç) os encaminhasse para o lixo próprio, farmácia onde éramos bem conhecidos e bons clientes, e repentinamente toda aquela gente a dar-me os pêsames, foi triste, lá consegui fugir, para ir a uma óptica ali ao lado onde tenho um amigo apertar uns óculos Ray Ban que eram da Luisinha e a Leonor achava giros, apertar as hastes e arranjar-lhe uma caixinha bonita. Mas após alguns minutos de bla bla bla, com a funcionária desatei-me, agradeci e abalei a esconder a cara não fui capaz de evitar o pranto. Já vinha "embalado" da farmácia...

Somos humanos, é normal, penso que sim, ficaram giros os óculos, limparam-nos, pareciam novos, caixa nova, a Leonor vai rejubilar. Outros maiores ficaram para a Catea, novíssimos, a Luisinha tinha-os comprado para esconder a cara e os olhos... É a vida dizem. Verdade, e como se não bastasse eu andar mole uma antiga vizinha nossa no café veio dar-me os sentimentos e agarrou-se a mim a chorar... Ia-me rebentando o choro também, fugi dali, digo abalei, desopilei, desandei, depois esbarrei com outra…