segunda-feira, 16 de setembro de 2019

612 - FIAT LUX DISSE O SENHOR, E FEZ-SE LUZ*

                     
Eu sabia haver ali qualquer coisa que me escapava, qualquer coisa que eu não via, não entendia, mas sentia, quer dizer pressentia. Para mim tudo aquilo era bom demais para ser verdade, quer dizer, ser verdade era, o que eu lhe encontrava era uma certa falta de razoabilidade, quero dizer não tinha a certeza do que via, alguma coisa haveria que eu não estaria a ver.

Finalmente fez-se luz, quero dizer a Tv parecia Deus mal a abri, “Fiat Lux” foi o que me ocorreu ao ver e ouvir o que vi e ouvi, e li, para ser mais exacto, pois se abordo uma questão irrazoável que dei por certa, há que ter cuidado com as contradições, embora todos saibamos que o que há de mais puro e verosímil nesta vida seja “o princípio da incerteza”, que tudo abarca, tudo baliza, em tudo está presente, mesmo se a gente o não pressente.

Na minha rua, e nas outras três que circundam e delimitam o quarteirão onde vivo, que não é um quadrado nem um rectângulo, onde uma das ruas, em semicírculo, curva, curvilínea, circular, lhe arredonda um dos lados, vivem igualmente três outros singulares vizinhos digamos. Singulares quer pelo alarido levantado à mesa do café onde amesendam, quer pelo ar exuberante e apostático com que cada um deles vive a life. O mais gordo, qual arcanjo da beleza alheia, mostra e passeia a madame, que faz questão de trocar todos os doze a dezoito meses, desta vez uma loura espampanante e mamalhuda com uma tatuagem na coxa que a celulite e a gordura deformaram, e de quem o meu amigo Queiroga cada vez que vê, a loira, não a coxa, larga o seguinte desabafo;

- Mas que grande pedaço de mulher !

Como se a loura, ou as louras, ou as mulheres fossem para comer às postas, mas perdoo-lhe e percebo-o melhor desde que nos temos encontrado no talho do Híper ou na peixaria do dito, onde ele, desde as postas de salmão fumado aos lombos de pescada e de bacalhau, e até o lombo de porco, tudo compra às postas, da pescada à corvina e ao robalo. Imagino o que terá penado a D. Ester, que era magrinha e de onde era impossível tirar uma lasca, quanto mais uma posta, imagino o que terá passado antes de o Senhor a ter chamado a Si depois de prolongada anemia.

Mas se um passeia a loura com a regularidade com que a vizinha da frente passeia o caniche, outro deles passeia a “bomba”, como cada um deles e todos lhes chamam sempre. Por “bomba” entenda-se desta feita um daqueles Mercedes baratuchos equipado com um motorzeco Renault. Mas atenção, tal e qual ele mesmo diz, ou grita;

- O que interessa é a estrela pá ! O que conta é a estrelinha ! O que tu tens é invejinha ! 

E realmente assim é, e é vê-lo a cada dezoito ou vinte e quatro meses com uma “bomba” diferente, mas sempre nova, com estrelinha ou sem estrelinha mas sempre de fazer invejinha. Não lhe conheço mulher mas imagino que a trataria de longe muito melhor que o outro trata a loiraça, basta ver os cuidados que tem com as “bombas” que lhe calham em sorte.

O terceiro tem mulher mas não lhe liga, na prática quase fazem vida de separados, não sei se dormem em quartos separados ou não, isso é coisa que quem queira saber o melhor é cerzir uma conversa bem levada e privada com o Menezes da retrosaria “Mina Das Especiarias” o qual sob um falso ar efeminado sabe mais das questões profundas de muitas fêmeas que os próprios maridos. Mas enfim, botões de madrepérola, elásticos para as cuecas nastros e linhas de alinhavar são com ele. Quem está na berlinda agora é este, o Major Faria, aliás esquecera-me de referir que os personagens anteriores também são graduados, um Tenente Coronel e outro Capitão Tenente, e que todos eles deixaram há muito anos a messe de sargentos tendo frequentado nas últimas décadas, com pingalim ou sem pingalim mas sempre com garbo a messe de oficiais, aqui na terra funcionando num antigo convento, o convento de Nossa Senhora da Graça, pertencente à antiga ordem de S. Agostinho e restaurado, lugar em que as madames podem mostrar os decotes e os vestidos e onde ainda, talvez em bailaricos de que nem tenho conhecimento as filhotas debutem. A nós é que tudo acaba debitado claro, como sempre e dentro da tradição.


Mas a pancada do Major Faria, ainda assim o mais novo e mais magro deles todos, são as motas e os passeios nas ditas, coisa que a D. Estrelinha não deve apreciar já que nunca a vi em cima de uma, mas que o Menezes certamente inveja pois por mais que uma vez no café o topei;

- Então senhor Major onde vai ser desta vez o passeiozinho ?

E seja o passeio onde seja, demore os dias que demorar, o Menezes acaba por afivelar sempre o mesmo sorrisinho maroto, como se lhe fosse na alma uma satisfação interior e uma plenitude de glória e paz capaz de fazer inveja a muitos mortais. Como a malta sabe, dos cortinados e entrefolhos da D. Estrelinha tratará ele, e das saias claro, das saias das camilhas.

Quando os três eram mais novos, Setembro era o mês das conversas estafadas e dos relatos das férias e das aventuras nas residências de praia para oficiais. Agora velhos e aposentados, um passeia a mulheraça, outro exibe as bombas e o Major Faria troca de mota todos os anos entretendo-se no intervalo a polir-lhe os cromados. Nunca ninguém os viu fazer nada na vida nem da vida, foi preciso o Correio da Manhã vir à baila esta quinta-feira com notícia esclarecedora;

 “Militares Perdem Crédito Da Defesa” que é como quem diz acabou-se o crédito para os militares com base nos dinheiros do Orçamento de Estado, para ser franco nem sabia que os militares tinham um CrédiBom !

Bendito país, nem Salazar criara tanta excepção, tanta isenção, tanto beneficio, tanto privilégio, tanta diferença, tanta divisão, tanta iniquidade... E que a malta saiba os paladinos do 25A nunca se queixaram dos favorecimentos. Este país não merecia um, merecia três novos Salazares ! Três ! Os portugueses têm o que merecem, nem todos claro, pois paga o justo pelo pecador, ainda assim é graças ao 25A, que podemos falar e escrever o que queremos e onde queremos. E serve-nos de muito... Falar e escrever sem que ninguém nos ligue, é o custo desta "liberdade" que nos impingem !

O problema está no privilégio que exemplifica, nos favores de classe concedidos, nos perdões abafados, nos favores feitos e pagos... Com dinheiro do orçamento, portanto com dinheiro nosso. Porque não vão os militares ao banco como toda a gente ? E já agora que estamos com a mão na massa e falando de cozinha porque têm messes e criados à disposição ? Porque têm residências e residenciais de férias melhores que certos hotéis ? Porque não temos nós disso, nós povo, se até pagamos a conta ? Não estou a ver o Ministério a actuar contra o senhor Major ou o senhor Tenente Coronel ou o senhor General em caso de incumprimento, só Deus sabe quantos casos desses aconteceram e quantos foram abafados... Não estou a ver o Ministério a executar-lhes hipotecas, a metê-los na rua e a ficar-lhes com as casas para vender ao desbarato, como tem sido feito à populaça e semeando milhares de dramas pelo país fora... Ser militar não pode isentar de pensar com a cabeça, nem desobrigar de estar do lado da razão. Na situação do país os militares têm privilégios de que se deveriam envergonhar, mas afinal o mau não era Salazar ?

As coisas que nós desconhecemos ! Afinal meio país tem "rabos-de-palha"… Este país é um portento para quem saiba viver sem nada fazer, finalmente fez-se luz, sou eu, quero dizer somos nós todos quem paga as mulheres do Tenente Coronel, as bombas do Capitão Tenente, e as motas do Major Faria. Tudo mui lenta e justamente conquistado à custa de paciência, tempo, diuturnidades e promoções. Nada interessa que quem os ouça falar trema com os palavrões, as asneiras, as incorrecções, as demonstrações da mais elementar ignorância, de falta de conhecimento, de cultura, de saber, de entendimento e de bom senso. Ainda bem que não estamos em guerra.

Vou mas é ver se apanho uma posta, dou uma dentadinha ou uma voltinha, afinal tudo aquilo é meu. Tenho que dar uma palmada amigável nas costas do Menezes e elogiá-lo. Merece... 



                                                    
  * 

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

611 - ALGUÉM MAIS O VIU ? PASSEM PALAVRA



Eu caminhava na frente como deve caminhar todo o homem que se preza sobretudo quem deva dar o exemplo. Fui por isso o primeiro a vê-lo, vi-o mas calei-me bem caladinho esperando que a coluna o visse, ou pelo menos alguém naquela fila de pobres diabos famintos, sedentos e cansados serpenteando p’la savana desse o alarme.

Vi-o e ao vê-lo todos os meus sentidos ficaram alerta, arrebitei as orelhas e foquei os olhos ao longe em varredura. Como um radar varre os céus eu varria a picada, o horizonte, o capim baixo, as escassas árvores e alguns afloramentos rochosos dispostos à direita e à esquerda do rumo que palmilhávamos.

É difícil imaginar quanto uma coisa tão pequena mexeu connosco, nos sobressaltou e colocou em sentido, melhor, em estado de sentinela alerta. Como difícil é imaginar quão tal coisa nos pode dizer apesar de tão diminuta mas a verdade é que disse e muito, porém só fala se a interrogarmos, se nos interrogarmos. Quem porfia mata caça, e se tal é verdade o inverso também o é, quem não porfia é caçado.

Cem metros adiante estaquei, a coluna estacou atrás de mim e só então alguns acordaram do torpor que seis horas de marcha tinham incutido nos homens, neles e nelas, tendo havido quem pensasse irmos parar ali, descansar, limpar as armas, até o sol ir já bem alto e o perigo de desidratação elevar-se com ele.

Fiz um sinal e toda a coluna se agachou curiosa e repentinamente desperta, rostos tensos, olhos bem abertos, um joelho no chão, o dedo no gatilho. Não, aquele sinal não fora para descansar, bem pelo contrário e a pulsação acelerou em todos, alguns escorrendo suor pela testa, patilhas, cara, pescoço e p'la coluna vertebral causando arrepios nos homens, suor frio não incomoda, enerva, convoca o medo, deixa todos tensos, os nervos uma catapulta pronta a soltar a energia armazenada, dentes rangendo, mais que uma vez mordi a língua.

- Alguém mais o viu ? Passem palavra baixinho.

e a minha pergunta percorreu num sussurro toda a coluna como um boomerang, três minutos depois chegava a resposta, Rosa, a penúltima da fileira vira-o mas não julgara ter a importância que eu parecia atribuir-lhe,

- Vêm todos a dormir ? Querem ficar deitados aqui eternamente ?

praguejei entre os dentes enquanto a outro sinal a coluna abandonou a formação em fila e, rastejando ou agachados, silenciosamente  adoptaram uma postura em linha, uma linha curva em meia-lua que melhor nos protegesse  alargasse a amplitude do espaço por nós abarcado e sob observação pois nunca era demais prevenir uma emboscada ao invés de a remediar.

 E tu Rosa ? Viste-o e calaste-te ? Nada disseste, vinhas a dormir na forma ? Vinham todos dormindo na forma ?

e depois destas palavras agrestes formulei uma crítica geral que aliviasse a pressão sobre Rosa, afinal todos se tinham calado e nem sequer o tinham visto, num registo marcial cochichei de modo a que fosse bem ouvido:

- Será que querem ficar dormindo aqui para sempre ? Será que querem deixar este lugar marcado com uma cruz por cada um ? E quem as colocará ? Esquecem estarmos em campo aberto e que não o terem visto poderia ter feito com que estivéssemos já todos despachados ?  

E logo de seguida para agradar a Rosa, uma negra que estimava, me estimava e nos estimávamos sempre que possível naquele ambiente de inferno e loucura em que os dias se repetiam e as noites nos assustavam. Virei-me para ela e:

- Rosa tu que o viste poderás dizer sobre ele alguma coisa ? Que nos poderá ele dizer ?

Eu não perdia uma oportunidade para treinar e consciencializar os meus homens, nem me limitava à cartilha teórica, saía com eles para o mato, encabeçava e levava a cabo as operações mais díspares, sobretudo nunca abandonava a postura exemplar nem o lugar da frente mal a coluna se punha em marcha numa longa fila indiana.

- Então Rosa ? Um leão comeu-te a língua ?

- Nã, nã nada disso. Bem, era preto, pousava descontração na beira do carreiro ali sobre a erva nem tocando o chão, nã estava todo queimado ainda, parecia se deitara havia tempo nenhum, eu dizer que um outro alguém distraidamente ali o deixara no caminhar e que não anda longe de nós esse alguém.

- Muito bem Rosa, e já que foste a única a vê-lo volta atrás e vai buscá-lo para lhe arrancarmos tudo o que pudermos, ele ainda tem muito para contar, vai sem receio, nós cobrimos-te.

No regresso Rosa encontrou-nos em círculo, uma sentinela em cada extremo do diâmetro dessa circunferência, embora atentos ao que se passasse em redor não perdiam pitada do nosso instrutivo debate e, mal Rosa mo entregou fi-lo passar de mão em mão para ser bem observado por todos e p'ra que entendessem como arrancar-lhe preciosas informações.

Sabia-se ser preto, ter sido encontrado deitado na erva sem tocar o chão, só perdera a cabeça tendo o resto incólume o que garantia a sua idade e tempo de exposição, seria novo e estaria ali há bem pouco tempo.

- Nõ ser dos nossos, nossa gente não é assim, não usa. Balbuciou Nhuma.

- Nã ser nã, e de quem será pertença, quem saber de quem ser o descuidado ?

- Não temos a carteira mas foi arrancado de uma, é preto, de papel e cera, não está deformado pelo sol nem sujo pelo chão portanto terá poucas horas de queimado. Quem o acendeu atirou-o descuidadamente fora e agora está a cantar e a contar-nos o que sabe. E que mais poderá ele contar-nos Hermenegildo ?

- Bem meu tenente, como o senhor sempre diz não passa tudo de suposições mas é o que temos e por vezes essas suposições tornam-se grandes verdades por isso afirmo que esse matéria é usado pelo sul-africanos, será pois natural não andarem longe, passaram por aqui é sabido, está aí a prova.

- Muito bem, passaram por aqui e já agora, avançavam para lá ou para cá nesta mesma picada em que nos encontramos ? Pergunta para o Xavier.

- Tenente, se ele estava à direita eles avançarem no nosso sentido, estando à esquerda eles avançarem em contrário a nós, daí estarem avançados ou esperando nós, eles se encontrarem um par de horas ou duas no nossa frente. Nós ter que nos cuidar de má surpresas.

.- Correctíssimo, tens razão mas, e se quem o atirou fora fosse canhoto ou o tivessem ali deixado propositadamente para nos ludibriar ?

- Sendo canhoto ficaria no esquerda, meu tenente tá me baralhando, haver pouco canhoto, mais certo ter sido destro, há mais destros e menos canhotos por tal é mais acertado confiar no direita e eu fico no meu dito, eles estar na nossa frente nos esperando e o mais stá para se ver creditem.

- Muito bem, bom raciocínio, resumamos, fosforo recente, preto, de papel e cera como o pessoal do exército sul-africano costuma usar, caminharão no mesmo sentido que nós, estarão ou não na nossa frente, esperando-nos ou não, as probabilidades apontam para isso, portanto é mantermos os olhos bem abertos, caminharemos em meia-lua e nem um pio quero ouvir.

Não desejávamos ser apanhados em campo aberto nem pelo sol erguendo-se bem depressa e bem quente. Caminhámos para alcançar a mata dispersa assinalada no mapa, ideal para descansar, dormir e efectuar a manutenção do armamento até a noite cair pois caminhar na noite castigar-nos-ia menos, a orla do Calaári era um inferno. Faltando somente duas a três milhas para atingir a mata assinalada e mantendo a formação em linha por ser mais indicada como defensiva, percorremos contudo esse percurso descrevendo um largo arco de modo a quando entrássemos na mata tivéssemos o sol por trás dando-nos uma vantagem nada despicienda já que a haver encandeamento caíria sobre o inimigo.

Agimos bem, mal nos aproximámos da beira da mata fomos baptizados com fogo cerrado, havia quem não nos quisesse deixar sair de campo aberto mas a nossa estratégia fora bem delineada, a um sinal meu os homens abriram mais o leque em meia-lua e à vez entraram na mata. Antes disso tinham fixado os pontos de origem do fogo do inimigo e, conhecendo as posições dos seus atiradores, embrenhámo-nos na mata. O nosso leque enfrentou galhardamente a situação ripostando contra esse inimigo que nos esperava emboscado cercando-o e fustigando-o com metódica e calculada precisão, porém havia que poupar munições pois o tiroteio poderia vir a tornar-se demorado até alguém poder cantar vitória.

Eu recomendara um cerco deixando-lhes aberta uma saída na retaguarda, uma escapatória, nada pior que um animal enjaulado e essa medida pode ter ditado a nossa sorte. Menos de uma hora antes de anoitecer dois enormes helicópteros do SAA aproximaram-se, um fazendo fogo de barragem sobre nós enquanto um outro se ouvia descendo para recolher o pessoal e talvez mortos e feridos. Abrigámo-nos da metralha vinda do céu o melhor possível e, depois deles partirem vasculhámos a zona. Pelos rastos visíveis abalaram com seis ou sete feridos ou mortos pois algum armamento fora abandonado na urgência da retirada.

Nós contabilizámos quatro feridos ligeiros um de maior gravidade, o homem do rádio, rádio que contudo lhe salvou a vida. O rádio ficara desfeito mas o ombro do nosso homem mantinha-se inteiro, apenas uma boa ferida pouco maior que uma mão aberta. Houve até quem brincasse com isso, “não há dúvida que o rádio salva vidas” e àquela salvara-a, o problema doravante era se sem ele salvaríamos as nossas. Em dois dias alcançámos a nossa base, a tempo do homem do rádio evitar uma gangrena pois a ferida, nunca medicada, estava ficando uma lástima.

E ainda há quem diga que a vida não vale um fósforo. Aquele salvou-nos a todos de cair num grande buraco …

***** https://www.youtube.com/watch?v=QMMhfJOlaJs&list=RDbaxj_eVPEe8&index=22

***** https://www.youtube.com/watch?v=H1IJVOOehdk&list=RDQMMhfJOlaJs&index=39

segunda-feira, 29 de julho de 2019

610 - 2 ESMERALDAS, 2 ANÉIS DE ESMERALDAS



Quase dez meses depois segui finalmente as tuas sugestões e atrevi-me a sair. Não por me faltar vocação para eremita, ou estilita, mas para dispor de espaços largos onde diluir a mágoa que visto desde que partiste.

Verdade, confinado entre as quatro paredes de casa ou do café convivo melhor contigo e comigo mesmo, são um espaço íntimo partilhado por nós mas onde a tua ausência me sufoca e martiriza como um silício metódico, qual imaginário e persistente pêndulo sobre mim caindo fustigando-me.

Era portanto tempo de tomar à letra, aceitar, acatar as tuas sugestões, sempre fiz delas lei como bem sabes, sabias, e nem havia razão para assim não ser tão ponderadas e acertadas elas eram, sempre foram.

Aproveitei o domingo tal como o rapaz que saiu à rua num domingo para se matar* inda que não fosse esse o meu fito. Confesso que sim, também eu já quis morrer, foi duro quando te perdi, é ainda duro e raro o dia em que por ti não choro, às vezes nem é bem chorar, mas marejam-se-me os olhos de lágrimas somente por lembrar-te, por estranhar a tua ausência, por notar a tua falta, lamentar não te encontrares a meu lado partilhando quaisquer eventos ou acontecimentos, sentir ainda o incrédulo da toda esta situação para que me vi atirado, mau grado os teus conselhos, sugestões, desejos, ordens ou apesar da tua despedida, tão terna quão doce, mais de um mês antes de partires por saberes que esse dia chegaria, só não sabias quando. 

Aventurei-me no domingo passado, pela primeira vez em muitos anos saí do meu retiro voluntário e procurei na praça multidão em que banhar-me e onde, como as galinhas da capoeira da tia Hortênsia pudesse espojar-me e sacudir as minhas chagas, tal qual os galináceos mal encontram dois palmos de terra solta onde largar os piolhos num banho purificador e necessário ao equilíbrio do corpo e da alma, do biorritmo e dos electrólitos, dos sais minerais e outros que tais, do Ego, do Superego e do Id, todos eles em instável e periclitante equilíbrio há muito, pelo que, para me amparar ou acudir caso uma tontura, um desmaio ou qualquer súbito, desconhecido ou inesperado episódio, fi-lo acompanhado não fosse o Diabo tecê-las, credo, lagarto, lagarto, lagarto.

Socorri-me da Fatinha, aquela tua amiga sueca, aliás nossa amiga e que conheceras há muito, há mais de quarenta anos, quando do teu estágio de Terapeuta no Hospital de S. João, ou teria sido no Curry Cabral ? Foi há tantos anos que nem recordo já onde, só recordo vocês duas na festa de finalistas, de braço dado e sorriso rasgado, onde somente a cor dos diplomas divergia, branco amarelado para Fisioterapia, Rosa pálido para Enfermagem, ainda que os vossos anéis fossem iguaizinhos e vaidosas pegassem no diploma com o cuidado devido para que o fotógrafo apanhasse as pedras esmeralda, símbolo do vosso esforço e do vosso orgulho.



Foi pois da nossa velha amiga Fatinha que me fiz acompanhar, quem melhor que uma enfermeira não achas ? Sempre me disseras mais valer prevenir que remediar e eu não esqueci a lição, aliás uma outra amiga minha, a Zezinha, tivera já oportunidade de me dar idêntico conselho, arranjar uma enfermeira. Como podes constatar sigo os teus conselhos e busco não me desviar do bom caminho, nem a pé nem de carrinho.

Aportámos à Praça do Geraldo para um concerto dos Fanfare Ciocarla integrado no festival de verão Artes À Rua, uma coisa   assim como o Viv’à Rua dos nossos tempos e que eu apreciei pela semelhança com o chinfrim dos Kumpania Algazarra, que sabes eu adorar e que a Fátima também apreciou pelas parecenças com os grupos musicais da sua terra, uma terrinha de nome impronunciável, idem para os grupos musicais da sua preferência, todos eles compostos por elementos de Linköping** de onde ela é natural.

Valeu a pena, voltei a sentir-me vivo, não cabeceei nem desmaiei, nem sequer tonturas tive e, não fossem duas ou três lagrimazinhas soltas no escuro do espectáculo e pelas quais ninguém deu menos tu e eu, diria ter a noite valido a pena, inda que para pena minha te tivesse recordado com ternura, amor e carinho, tendo perpassado pela minha mente se não todos quási todos os espectáculos daquele género em que os dois estivemos presentes, partilhámos, e nos quais algumas vezes dançámos.

Depois, lépida, a Fatinha deixou-me em casa, eu sofrera uma pequena queda na mota e o travão entalara-me o dedo contra o punho do acelerador e por pouco não foi cortado, não ficou cortado mas a custo evitaram ter sido cosido, o pessoal do nosso hospital ainda é do melhorzinho e bastos me acudiram de pronto na urgência não te tendo esquecido a ti, recordando-te todos eles com carinho. A propósito, estou quase curado e já consigo conduzir de novo sem perigo que a ferida abra, pelo sim pelo não evito fazê-lo e voltei a trancar-me em casa, só tu e eu, como dantes, como sempre, não te esqueço nem descuido o meu desvelo por um momento que seja e podes ter a certeza de estares em boas mãos meu amor, esquecer-te é que não, nunca.

Pela tua mão começo a soltar-me, recomeço a voar, torna-se menor e mais leve a mágoa carregada mas não a tua lembrança, nem a paixão que sempre te dediquei e continuarei a dedicar, até por ter voltado a sentir o amor, a sentir que me proteges, que me acompanhas, por te continuar ouvindo e seguindo as tuas sugestões, os teus conselhos, lembrando a tua doçura e carinho, a sentir quanto eles são agora mais necessários que nunca ao meu viver ao meu reviver, ao arriscar trilhar de novo espaços abertos sem receio.

Confio velares por mim meu amor, de peito ufanado e novamente ousado enfrento decidido as multidões e banhando-me nelas sem qualquer medo cicatrizo as chagas, afasto o silício, reequilibro os chacras, o karma e o mantra buscando evitar as cabeçadas mal dadas, as tonturas, os desmaios ou quaisquer súbitos e desconhecidos ou inesperados episódios …







segunda-feira, 22 de julho de 2019

609 - AMOR E UMA FERRAMENTA ......................



AMOR E UMA FERRAMENTA

Ânimo sonhos, intenções,
tudo me dá vida e inspira,
tudo levo p’la frente em arrastões,
ou tudo passo p’la espada, e tudo expira.

Se calha travarem-me o pio,
me censuram, ou me ameaçam,
eu abro o peito com brio,
e luto até que emudeçam.

Não viro costas a justas,
confio na luz que me anima,
e junto uma a uma as letras,
do teu nome minha menina.

Porque teu nome é poesia,
é doçura e carinho, coração,
porém o que tu mesma querias,
era uma chave de estrias,
dar largas a esta emoção…

Desapertar um bocadinho,
a pressão na válvula aórtica,
ajustar ternura e mimo,
regularizar a sistólica…

                    By Humberto Ventura Palma Baião 21-07-2018 – domingo – 16:15h


sábado, 20 de julho de 2019

608 - PERNAS, PARA QUE VOS QUERO EU ? .........



Dia sim dia não fecha uma loja, mas a velha baiuca do Dimas das gravatas fechou há bué de anos, quando ele próprio ficou um trapo e as gravatas passaram de moda. A última julgo tê-la vendido ao meu amigo Esteves, então um exemplar único de fadista, marialva, machista e um racista empedernido desde que regressara de Angola. Imagino o que diriam dele se fosse vivo, e assim se escapou ao julgamento dos tempos modernos.

Era verde a gravata, de um verde lindo, vivo e colorido, ainda me lembro, tal como lembro as palavras do velho Dimas repetidas por ele, ele Esteves;

- Esta gravata, esta seda tem tamanha qualidade que poderia servir de baraço a qualquer um e aguentá-lo pendurado duma azinheira semanas sem fim, e olhe que lhe fica bem este verde lindíssimo amigo Esteves, assenta-lhe mesmo a matar.

“Assentava-lhe a matar” rematara o velho Dimas, ainda assim convenhamos que para gravata tão álacre e de tamanha qualidade o discurso elogioso foi mórbido, isto para além de soar a graxa, quando não a servilismo, coisa caída em desuso poucos anos atrás quando do 25 de Abril e infelizmente regressando ao cimo das ondas nestes nossos confusos dias. Julgo ter deixado bem explicada a razão pela qual o Dimas nunca conseguiu empatia com as novas liberais e libertinas gerações, eram outros tempos, novos tempos aos quais o Dimas foi incapaz de se adaptar e a loja sucumbiu.

Belos tempos esses, em que a Vitorinha do Esteves como ele carinhosamente chamava à sua papoila, sim, também lhe chamava Papoilinha, lembrando Charneca Em Flor da Florbela Espanca, tempos em que a Vitorinha dizia eu, tinha um palminho de cara, era presença alegre, sempre viçosa, bem quista e atraente. Em boa verdade a Papoilinha do Esteves, uma papoila entre a gente, entre nós, seus amigos e colegas, seria decerto uma flor no deserto que por essa época o notariado era, serviço e repartição onde assentou que nem uma jarra florida mal acabou o liceu.

Plantada estava, estavam, nos Registos e Notariado ela, nas finanças, hoje Autoridade Tributária ele, repartição onde mal chegou a esboçar carreira, isto é, não encarreirou, para falar verdade descarrilou. Inda casados de fresco e já ele a trancava em casa vítima dos seus arrotos de machista, aquilo era casa trabalho, trabalho casa, e a cada ano a Papoilinha murchava e perdia pétalas, estames e corola, enfim, secava, murchava, empalidecia como se tivesse sido emparedada.

Quis o destino conceder de novo protagonismo à linda gravata verde de seda com que o Esteves casara, estreara no casamento entendam-me, e, no dia em que entrou como fiscal no lagar da Sofal, credenciado e engravatado, levou-o a curiosidade a ver in loco como era espremida a azeitona, talvez c’o fito de aprender ele, novel fiscal tributário a espremer os desgraçados dos contribuintes.

Olhou, remirou, baixou-se e viu de novo com redobrada atenção como a prensa espremia a azeitona esmagando-a até ela dizer tudo o que havia a dizer e largar o oiro que adoramos num fiozinho resplandecente de belo azeite puro de oliveira. Debruçando-se sobre ela ia perguntar qualquer coisa;

- Para que serve esta roda tão grande sempre girando, girando sem parar ?

Quando um dos raios da dita roda num ápice, digo repentinamente o apanhou pela bela e linda gravata verde pendendo-lhe do pescoço e num gesto mecânico, ou maquinal foi o Esteves puxado com brusquidão de encontro à roda nem tendo tempo de acabar de formular a questão que acabara de colocar e que tanto parecia atormentá-lo, por que rodava aquela roda tão grande sempre girando, girando sem parar.

A verdade é que aquela roda enorme e girando, girando sem parar o ia puxando como uma apaixonada puxa aperta e estreita num abraço o seu amor, e o Esteves a cada segundo mudando de cor, rosa, pálido, vermelho, roxo, azul, e mais cores não mostraram aquela cara e aquelas bochechas porque quando finalmente lograram parar a máquina já o Esteves estava morto e bem morto, com o pescoço partido.

Razão teve o Dimas, a linda e bela gravata verde em pura seda que lhe vendera mostrara-se forte que nem corda de sisal e, se não aguentou um pendurado de uma qualquer árvore de Natal, sim era Natal, aguentou bem todos os esforços do Esteves para se livrar dela, do Esteves e do resto do pessoal que na vã tentativa de evitarem o pior rasgando a gravata, só conseguiram enrolá-la ainda mais partindo-lhe o pescoço e deixando o desditoso fiscal encravando o mecanismo, entretanto desligado e, diria eu, desligado quando eram já sopas depois de almoço.

E por falar em sopas, ou em sopas depois de almoço como se diz na minha terra, na Páscoa seguinte e após o abalo sísmico sentido na sua condicionada vida marital a Vitorinha voltou a florir e a sorrir, libertou-se das grilhetas servindo num churrasco primorosamente construído pelo Esteves e encostado ao anexo do quintal, um petisco de comer e chorar por mais pois de chorar se tinha ela cansado há muito, petisco onde não faltou um fiozinho resplandecente de belo azeite puro de oliveira nem um pratinho raso desse oiro puro afim de molharmos a sopa nele, digo a sopa de pão com a qual acompanhámos o paio, o queijo, o presunto, a linguiça assada, havendo até quem se deliciasse e contentasse meramente com a sopa demolhada e uma caneca ou copo por onde escorresse a aprazível cerveja refrescada e refrescante que nos punha a cantar o cante.


Não sei se alguém se lembrou do Esteves, eu recordei-o mas calei-me afim ou a fim de não estragar o convívio a ninguém. Festa é festa e à noitinha, já alegre e tocadita a Papoilinha, sentindo-se viver, e reviver, sentindo-se de novo mulher e livre, animada pelas estrelas perfulgentes, passando a mão por coxas e pernas, olhando-me com o olhar que os bons amigos guardam para os melhores de entre eles, diria para mim:

- Estas minhas pernas ainda têm pele de pêssego como dantes, não têm Baiãozinho ?