Eu
sabia haver ali qualquer coisa que me escapava, qualquer coisa que eu não via,
não entendia, mas sentia, quer dizer pressentia. Para mim tudo aquilo era bom
demais para ser verdade, quer dizer, ser verdade era, o que eu lhe encontrava
era uma certa falta de razoabilidade, quero dizer não tinha a certeza do que
via, alguma coisa haveria que eu não estaria a ver.
Finalmente
fez-se luz, quero dizer a Tv parecia Deus mal a abri, “Fiat Lux” foi o que me
ocorreu ao ver e ouvir o que vi e ouvi, e li, para ser mais exacto, pois se
abordo uma questão irrazoável que dei por certa, há que ter cuidado com as
contradições, embora todos saibamos que o que há de mais puro e verosímil nesta
vida seja “o princípio da incerteza”, que tudo abarca, tudo baliza, em tudo
está presente, mesmo se a gente o não pressente.
Na
minha rua, e nas outras três que circundam e delimitam o quarteirão onde vivo,
que não é um quadrado nem um rectângulo, onde uma das ruas, em semicírculo,
curva, curvilínea, circular, lhe arredonda um dos lados, vivem igualmente três
outros singulares vizinhos digamos. Singulares quer pelo alarido levantado à
mesa do café onde amesendam, quer pelo ar exuberante e apostático com que cada
um deles vive a life. O mais gordo, qual arcanjo da beleza alheia, mostra e
passeia a madame, que faz questão de trocar todos os doze a dezoito meses,
desta vez uma loura espampanante e mamalhuda com uma tatuagem na coxa que a
celulite e a gordura deformaram, e de quem o meu amigo Queiroga cada vez que
vê, a loira, não a coxa, larga o seguinte desabafo;
-
Mas que grande pedaço de mulher !
Como
se a loura, ou as louras, ou as mulheres fossem para comer às postas, mas
perdoo-lhe e percebo-o melhor desde que nos temos encontrado no talho do Híper
ou na peixaria do dito, onde ele, desde as postas de salmão fumado aos lombos
de pescada e de bacalhau, e até o lombo de porco, tudo compra às postas, da
pescada à corvina e ao robalo. Imagino o que terá penado a D. Ester, que era
magrinha e de onde era impossível tirar uma lasca, quanto mais uma posta,
imagino o que terá passado antes de o Senhor a ter chamado a Si depois de
prolongada anemia.
Mas
se um passeia a loura com a regularidade com que a vizinha da frente passeia o
caniche, outro deles passeia a “bomba”, como cada um deles e todos lhes chamam
sempre. Por “bomba” entenda-se desta feita um daqueles Mercedes baratuchos
equipado com um motorzeco Renault. Mas atenção, tal e qual ele mesmo diz, ou
grita;
- O
que interessa é a estrela pá ! O que conta é a estrelinha ! O que tu tens é invejinha
!
E
realmente assim é, e é vê-lo a cada dezoito ou vinte e quatro meses com uma
“bomba” diferente, mas sempre nova, com estrelinha ou sem estrelinha mas sempre
de fazer invejinha. Não lhe conheço mulher mas imagino que a trataria de longe
muito melhor que o outro trata a loiraça, basta ver os cuidados que tem com as “bombas”
que lhe calham em sorte.
O
terceiro tem mulher mas não lhe liga, na prática quase fazem vida de separados,
não sei se dormem em quartos separados ou não, isso é coisa que quem queira
saber o melhor é cerzir uma conversa bem levada e privada com o Menezes da retrosaria
“Mina Das Especiarias” o qual sob um falso ar efeminado sabe mais das questões
profundas de muitas fêmeas que os próprios maridos. Mas enfim, botões de
madrepérola, elásticos para as cuecas nastros e linhas de alinhavar são com
ele. Quem está na berlinda agora é este, o Major Faria, aliás esquecera-me de
referir que os personagens anteriores também são graduados, um Tenente Coronel
e outro Capitão Tenente, e que todos eles deixaram há muito anos a messe de
sargentos tendo frequentado nas últimas décadas, com pingalim ou sem pingalim
mas sempre com garbo a messe de oficiais, aqui na terra funcionando num antigo
convento, o convento de Nossa Senhora da Graça, pertencente à antiga ordem de
S. Agostinho e restaurado, lugar em que as madames podem mostrar os decotes e
os vestidos e onde ainda, talvez em bailaricos de que nem tenho conhecimento as
filhotas debutem. A nós é que tudo acaba debitado claro, como sempre e dentro
da tradição.
Mas
a pancada do Major Faria, ainda assim o mais novo e mais magro deles todos, são
as motas e os passeios nas ditas, coisa que a D. Estrelinha não deve apreciar
já que nunca a vi em cima de uma, mas que o Menezes certamente inveja pois por
mais que uma vez no café o topei;
-
Então senhor Major onde vai ser desta vez o passeiozinho ?
E
seja o passeio onde seja, demore os dias que demorar, o Menezes acaba por
afivelar sempre o mesmo sorrisinho maroto, como se lhe fosse na alma uma
satisfação interior e uma plenitude de glória e paz capaz de fazer inveja a
muitos mortais. Como a malta sabe, dos cortinados e entrefolhos da D.
Estrelinha tratará ele, e das saias claro, das saias das camilhas.
Quando
os três eram mais novos, Setembro era o mês das conversas estafadas e dos
relatos das férias e das aventuras nas residências de praia para oficiais.
Agora velhos e aposentados, um passeia a mulheraça, outro exibe as bombas e o
Major Faria troca de mota todos os anos entretendo-se no intervalo a polir-lhe
os cromados. Nunca ninguém os viu fazer nada na vida nem da vida, foi preciso o
Correio da Manhã vir à baila esta quinta-feira com notícia esclarecedora;
“Militares Perdem Crédito Da Defesa” que é
como quem diz acabou-se o crédito para os militares com base nos dinheiros do
Orçamento de Estado, para ser franco nem sabia que os militares tinham um
CrédiBom !
Bendito
país, nem Salazar criara tanta excepção, tanta isenção, tanto beneficio, tanto
privilégio, tanta diferença, tanta divisão, tanta iniquidade... E que a malta
saiba os paladinos do 25A nunca se queixaram dos favorecimentos. Este país não
merecia um, merecia três novos Salazares ! Três ! Os portugueses têm o que
merecem, nem todos claro, pois paga o justo pelo pecador, ainda assim é graças
ao 25A, que podemos falar e escrever o que queremos e onde queremos. E
serve-nos de muito... Falar e escrever sem que ninguém nos ligue, é o custo desta
"liberdade" que nos impingem !
O
problema está no privilégio que exemplifica, nos favores de classe concedidos,
nos perdões abafados, nos favores feitos e pagos... Com dinheiro do orçamento,
portanto com dinheiro nosso. Porque não vão os militares ao banco como toda a
gente ? E já agora que estamos com a mão na massa e falando de cozinha porque
têm messes e criados à disposição ? Porque têm residências e residenciais de
férias melhores que certos hotéis ? Porque não temos nós disso, nós povo, se
até pagamos a conta ? Não estou a ver o Ministério a actuar contra o senhor
Major ou o senhor Tenente Coronel ou o senhor General em caso de incumprimento,
só Deus sabe quantos casos desses aconteceram e quantos foram abafados... Não
estou a ver o Ministério a executar-lhes hipotecas, a metê-los na rua e a
ficar-lhes com as casas para vender ao desbarato, como tem sido feito à
populaça e semeando milhares de dramas pelo país fora... Ser militar não pode
isentar de pensar com a cabeça, nem desobrigar de estar do lado da razão. Na
situação do país os militares têm privilégios de que se deveriam envergonhar,
mas afinal o mau não era Salazar ?
As
coisas que nós desconhecemos ! Afinal meio país tem "rabos-de-palha"…
Este país é um portento para quem saiba viver sem nada fazer, finalmente fez-se
luz, sou eu, quero dizer somos nós todos quem paga as mulheres do Tenente
Coronel, as bombas do Capitão Tenente, e as motas do Major Faria. Tudo mui
lenta e justamente conquistado à custa de paciência, tempo, diuturnidades e
promoções. Nada interessa que quem os ouça falar trema com os palavrões, as
asneiras, as incorrecções, as demonstrações da mais elementar ignorância, de
falta de conhecimento, de cultura, de saber, de entendimento e de bom senso.
Ainda bem que não estamos em guerra.
Vou
mas é ver se apanho uma posta, dou uma dentadinha ou uma voltinha, afinal tudo
aquilo é meu. Tenho que dar uma palmada amigável nas costas do Menezes e
elogiá-lo. Merece...
*