Dia sim
dia não fecha uma loja, mas a velha baiuca do Dimas das gravatas fechou há bué de anos,
quando ele próprio ficou um trapo e as gravatas passaram de moda. A última julgo
tê-la vendido ao meu amigo Esteves, então um exemplar único de fadista, marialva, machista e um racista empedernido desde que regressara de Angola. Imagino o que
diriam dele se fosse vivo, e assim se escapou ao julgamento dos tempos
modernos.
Era
verde a gravata, de um verde lindo, vivo e colorido, ainda me lembro, tal como lembro as
palavras do velho Dimas repetidas por ele, ele Esteves;
-
Esta gravata, esta seda tem tamanha qualidade que poderia servir de baraço a
qualquer um e aguentá-lo pendurado duma azinheira semanas sem fim, e olhe que lhe
fica bem este verde lindíssimo amigo Esteves, assenta-lhe mesmo a matar.
“Assentava-lhe a matar” rematara o velho Dimas, ainda assim convenhamos que para gravata tão
álacre e de tamanha qualidade o discurso elogioso foi mórbido, isto para além
de soar a graxa, quando não a servilismo, coisa caída em desuso poucos anos
atrás quando do 25 de Abril e infelizmente regressando ao cimo das ondas nestes
nossos confusos dias. Julgo ter deixado bem explicada a razão pela qual o Dimas
nunca conseguiu empatia com as novas liberais e libertinas gerações, eram outros
tempos, novos tempos aos quais o Dimas foi incapaz de se adaptar e a loja sucumbiu.
Belos tempos esses, em que a Vitorinha do Esteves como ele carinhosamente chamava à sua papoila,
sim, também lhe chamava Papoilinha, lembrando Charneca Em Flor da Florbela
Espanca, tempos em que a Vitorinha dizia eu, tinha um palminho de cara, era presença alegre,
sempre viçosa, bem quista e atraente. Em boa verdade a Papoilinha do Esteves,
uma papoila entre a gente, entre nós, seus amigos e colegas, seria decerto uma
flor no deserto que por essa época o notariado era, serviço e repartição onde
assentou que nem uma jarra florida mal acabou o liceu.
Plantada
estava, estavam, nos Registos e Notariado ela, nas finanças, hoje Autoridade
Tributária ele, repartição onde mal chegou a esboçar carreira, isto é, não
encarreirou, para falar verdade descarrilou. Inda casados de fresco e já ele a
trancava em casa vítima dos seus arrotos de machista, aquilo era casa trabalho,
trabalho casa, e a cada ano a Papoilinha murchava e perdia pétalas, estames e
corola, enfim, secava, murchava, empalidecia como se tivesse sido emparedada.
Quis
o destino conceder de novo protagonismo à linda gravata verde de seda com que o
Esteves casara, estreara no casamento entendam-me, e, no dia em que entrou
como fiscal no lagar da Sofal, credenciado e engravatado, levou-o a curiosidade
a ver in loco como era espremida a azeitona, talvez c’o fito de aprender ele, novel fiscal tributário a espremer os desgraçados dos contribuintes.
Olhou,
remirou, baixou-se e viu de novo com redobrada atenção como a prensa espremia a
azeitona esmagando-a até ela dizer tudo o que havia a dizer e largar o oiro que
adoramos num fiozinho resplandecente de belo azeite puro de oliveira. Debruçando-se
sobre ela ia perguntar qualquer coisa;
-
Para que serve esta roda tão grande sempre girando, girando sem parar ?
Quando
um dos raios da dita roda num ápice, digo repentinamente o apanhou pela bela e
linda gravata verde pendendo-lhe do pescoço e num gesto mecânico, ou maquinal
foi o Esteves puxado com brusquidão de encontro à roda nem tendo tempo de acabar
de formular a questão que acabara de colocar e que tanto parecia atormentá-lo,
por que rodava aquela roda tão grande sempre girando, girando sem parar.
A
verdade é que aquela roda enorme e girando, girando sem parar o ia puxando como
uma apaixonada puxa aperta e estreita num abraço o seu amor, e o Esteves a cada
segundo mudando de cor, rosa, pálido, vermelho, roxo, azul, e mais cores não
mostraram aquela cara e aquelas bochechas porque quando finalmente lograram
parar a máquina já o Esteves estava morto e bem morto, com o pescoço partido.
Razão
teve o Dimas, a linda e bela gravata verde em pura seda que lhe vendera mostrara-se forte
que nem corda de sisal e, se não aguentou um pendurado de uma qualquer árvore de
Natal, sim era Natal, aguentou bem todos os esforços do Esteves para se livrar
dela, do Esteves e do resto do pessoal que na vã tentativa de evitarem o pior
rasgando a gravata, só conseguiram enrolá-la ainda mais partindo-lhe o pescoço e
deixando o desditoso fiscal encravando o mecanismo, entretanto desligado e,
diria eu, desligado quando eram já sopas depois de almoço.
E
por falar em sopas, ou em sopas depois de almoço como se diz na minha terra, na
Páscoa seguinte e após o abalo sísmico sentido na sua condicionada vida marital
a Vitorinha voltou a florir e a sorrir, libertou-se das grilhetas servindo num
churrasco primorosamente construído pelo Esteves e encostado ao anexo do quintal,
um petisco de comer e chorar por mais pois de chorar se tinha ela cansado há
muito, petisco onde não faltou um fiozinho resplandecente de belo azeite puro
de oliveira nem um pratinho raso desse oiro puro afim de molharmos a sopa nele,
digo a sopa de pão com a qual acompanhámos o paio, o queijo, o presunto, a
linguiça assada, havendo até quem se deliciasse e contentasse meramente com a
sopa demolhada e uma caneca ou copo por onde escorresse a aprazível cerveja
refrescada e refrescante que nos punha a cantar o cante.
Não
sei se alguém se lembrou do Esteves, eu recordei-o mas calei-me afim ou a fim de
não estragar o convívio a ninguém. Festa é festa e à noitinha, já alegre e tocadita a Papoilinha, sentindo-se
viver, e reviver, sentindo-se de novo mulher e livre, animada pelas estrelas
perfulgentes, passando a mão por coxas e pernas, olhando-me com o olhar que os bons
amigos guardam para os melhores de entre eles, diria para mim:
- Estas
minhas pernas ainda têm pele de pêssego como dantes, não têm Baiãozinho ?