domingo, 23 de junho de 2013

147 - O BAR DO PAULO * por Maria Luísa Baião ......



A nossa vida é feita de pequenas recordações, guardadas ou remetidas para cantos esconsos da memória, tão esconsos que só um pé-de-vento poderá, em certas ocasiões, levantá-las da poeira acumulada.

Tenho crónicas elaboradas de supetão, escritas debaixo da emotividade do momento, não é, infelizmente, o caso desta.

A crónica de hoje leva-me já dois meses talvez, e algum choradinho à mistura. Tem sido dificílimo para mim aceitar a realidade, com a qual sonho, porque pertence ao passado, e está em vias de não ter lugar no futuro, a não ser no remoto lugar para onde atiramos as lembranças.

Quando universitária frequentava muito o "bar do Paulo", nessa altura o ponto de encontro de gente mais informal, pois não quero dizer selecta. O bar tinha um ambiente acolhedor, e comedido, apesar de estar sempre a rebentar pelas costuras.

Tirando esse ambiente familiar e anti depressivo, nada tinha de especial, a não ser o Paulo, tão especial que fazia parte da mobília. Ainda hoje não sei o que tinha esse bar, sempre apinhado, sobretudo de gente carente de afectos, talvez por não ser da terra e por cá passar temporadas demasiado longas.       

Tinha ar condicionado, mas não funcionava, e, num tempo em que os telemóveis ainda estavam para nascer, tinha telefone, mas estava sempre ocupado, música ambiente também havia, pura e simplesmente a que ao Paulo agradava, cerveja muita, inda que nem sempre fresca, bebidas de um leque muito pouco ousado e umas flores constantemente renovadas e sempre murchas nas jarras, a par com cinzeiros abarrotando de beatas que largavam um fétido cheiro e completavam o cenário. Nunca se saía com vontade de voltar, nunca nos afastávamos mais que um fim de semana.

Acabado o curso cada uma desandou, deu rumo à vida se o não tinha já, como no meu caso. A festa de despedida foi no Paulo, e dele nos despedimos também.

Passaram-se anos, nem sei se o bar continuou do Paulo, tão farto estava de nos aturar. Ao certo apenas que passado pouco tempo tinha fechado, nunca soube porquê.

 Passei na ruela há uns dois meses, toda a casa estava em obras, meio demolida meio recuperada. Ninguém sabia do Paulo, que sim, que em tempos ali tinha funcionado um bar, sim, já há muitos anos, a vizinha Alzira era desse tempo, lembrar-se ia… de quando a ruela era um rodopio onde ninguém sossegava. Agora estranha, tem saudades das pequenas, da sua irreverência, e do Paulo, que se havia tornado para ela um filho, que tomara o lugar de um outro Paulo, o filho que lhe morrera em África. Para aquela Mãe, foi como se tivesse chorado duas vezes a mesma perda, sentido duas vezes a mesma dor.

Alzira perdera dois filhos, um em África e outro nos braços, o primeiro sangue do seu sangue, o segundo adoptara-o, e não lhe pusera Paulo porque ele já o era, como Mãe lhe chamou quando, com uma leucemia, de um dia para o outro lhe morreu nos braços.

Chorou enquanto mo contou, e não pude deixar de chorar com ela.

Só agora percebi o que tinha o bar de tão especial, quando tanto lhe faltava e mais ainda deixava a desejar. O Paulo era especial, irradiava dele uma humanidade que somente agora percebi, só agora entendi porque todas tão bem nos sentíamos naquele bar, no bar dele.

Sou e sempre fui fisioterapeuta, tal como o Paulo sempre preferi as pessoas, nunca fui capaz de me desligar delas. As pessoas primeiro, por isso assisto agora, extasiada, ao rasgar de avenidas e perspectivas novas na nossa cidade, que, como um ser, respirará melhor no futuro, dará às suas gentes desafogo, mas as obras naquela ruela, no bar do Paulo, estão a dilacerar-me o coração, a arrancar bocados de mim, a despojar-me do passado, a matar-me aos poucos.

Cidades são como gentes, para que umas se renovem outras têm que morrer, para que se rasguem estradas e mentes, outras terão que ceder, mas gentes não são cidades, porque tenho então que sofrer ?
  

* In Diário do Sul, Kota De Mulher, – por Maria Luísa Baião, publicado verão de 2004

sábado, 25 de maio de 2013

146 - REQUIEM ................................

     
Parece que a coisa não foi bem como a pintaram. Para evitar o escândalo e que a viúva passasse pela vergonha abafaram a verdade. Naturalmente que em Viseu toda a gente terá sabido, mas os ecos que chegaram até mim só traziam a parte boa, se é que fechar o cu tem alguma coisa de bom, as partes gagas somente agora, mais precisamente na noite de quinta feira as vim a saber.   (Ver texto 142, Ó Abreu …)

Não gosto de ir a funerais, nem sequer a velórios, mas atendendo a que era na capela de S. Torcato, a única que tem sempre lugares de estacionamento sem problemas, lá fui. A Lídia finara-se. Estava a malta toda. O marido, as amigas da Lídia e as amigas do marido, o Teles. Má peça o Teles, choroso, depressa esqueceu as lágrimas que em vida fez verter à Lídia.

Mas estou a desviar-me do que interessa.

Entre um copo e outro, a agência Boavida, Funerais e Trasladações Ldª  montara a um canto da capela uma boa mesa, os presentes iam rodando, enchendo a boca e tragando uns goles enquanto a meia voz enalteciam as virtudes da Lídia, que fizera felizes no mínimo metade dos ali presentes, e as patifarias do marido, agora viúvo, que fazia felizes uma boa parte das amigas da Lídia.

Lá pelas três da manhã os burburinhos acalmaram-se, ficou mais fácil chegar à mesa, à volta da qual a malta se juntou, copos plásticos na mão, tchim tchim, brindes para aqui e para ali, às tantas já se brindava a tudo, até à Lídia, que havia de gostar e teria decerto emitido um dos seus sorrisos acompanhado de um gemido e um arfar de peito, coisa que ninguém fazia como ela. Era boa tipa. Deus lhe tenha a alma em descanso.

Nascera em Viseu, ela e o marido, e foi por isso que fiquei sabendo como se tinha finado o Abreu. Afinal não morrera como um passarinho, bem pelo contrário, como um passarão. Parece que no regresso a casa e entre esta e o quartel o sargento Abreu costumava parar coisa de uma hora, mais minuto menos minuto, numa daquelas torres de dez andares das “Construções Lamego“, em visita apressada a uma primeiro-cabo lá do regimento e que era algarvia.

Naquela tarde o elevador terá parado entre o oitavo e o nono andares deixando apenas uma abertura de dois palmos por onde se pensa que o Abreu terá metido a cabeça pedindo socorro, farto que estaria do encarceramento no fatídico elevador. Cansado de gritar, provavelmente enfiou a cabeça naquela nesga, possivelmente com o fito de se guindar dali para fora.

Parece que a nosso cabo não deu pela coisa senão quando lhe levaram a cabeça do Abreu indagando se se trataria do marido. Nesse momento a algarvia deu um grito lancinante e caiu para o lado, desmaiada, no chão, enquanto um estrondo ensurdecedor dava conta que o traiçoeiro elevador caíra pelo fosso do prédio arrastando o que restava do Abreu.

Há horas felizes, mas também muito más horas, terá pensado o Abreu, se é que teve tempo para pensar alguma coisa antes de ser decepado pelo movimento de arranque do elevador. Foi uma morte que caiu muito mal ao Teles, que também era amizade do Abreu e de igual forma tivera um arranjinho naquele prédio, confidenciou-me o Ramires quando o Teles saíra a sugar um cigarrito. Lá terá o Teles pensado para com os seus botões que terminara com a Hermínia na hora certa. O elevador, veio a saber-se muito depois, ia no quinto ano sem qualquer manutenção, pelo que primeiro se desfiara e posteriormente se partira um dos cabos de aço que o sustinham.

Da nossa primeiro-cabo nunca mais ninguém soube dar noticias. Dizem as más-línguas que passou à disponibilidade, ou à reserva. De quem ninguém me disse. Bebi mais um trago, enchi a boca de torresmos e fui ruminar meditações sobre as imprevisibilidades desta vida para a cabeceira da Lídia. 

            Afivelara um fácies sereno, a sua placidez acalmou-me e, ou por isso ou devido ao tinto da Bairrada, adormeci.



sexta-feira, 17 de maio de 2013

145 - WATER POWER PLANT ..........


  
Haniko viera do Japão. Roliça, cerca de trinta e tal anos, dela não podia dizer ser propriamente bonita, em compensação era simpática. Distinguia-a o facto de, ao contrário do restante grupo japonês, não surgir nunca carregada do diversificado e sofisticado equipamento made in Japan, o que a tornava única. Nesse aspecto, os seus, mais que as suas compatriotas, pareciam autênticas montras ambulantes, sobretudo no que tocava a material áudio e vídeo.

Gostava dela, e nesse grupo nacionalista étnico e cultural era quase a única com que mantinha esporádicas conversas. (por vezes vestiam de forma tão extravagante como no carnaval do Rio).

Nunca percebi qual a razão pela qual apresentava uma cara de permanente assombro ou deslumbramento, lembrei-me mesmo de mim quando, em petiz, visitei Lisboa pela primeira vez. Tudo me punha de boca aberta, os eléctricos de dois andares, os boletineiros da Marconi ziguezagueando a cem à hora por entre o denso e intenso tráfego da capital na urgência dos telegramas que o barulho das motos anunciava à distância, a calma dos mastodontes pastando plácidamente ancorados no Tejo ou a maravilha dos esquentadores se, em casa do meu mano me deliciava com um duche quente.

Para Haniko tudo parecia surpresa mas, naquele dia ela não era caso raro de estupefacção. Na verdade eu estava há dois dias preocupado, não havia notícias do grupo de Water Power Plant, (Estação de Tratamento e Distribuição de Água) onde os japoneses se incluíam, sabia-se que tinha havido bombardeamentos fortíssimos na sua zona de acantonamento, e preocupava-me o facto do seu sítio ficar a alguma proximidade de uma refinaria.

Os métodos cirúrgicos de bombardeamento a que todos os dias assistia levavam-me a acreditar na eventualidade de não terem sido atingidos mesmo que a refinaria o fosse, contudo uma refinaria atingida é por si só uma bomba autêntica, explode, arde, jorra e expande os efeitos do desastre numa zona considerável, daí o meu temor por ela e por eles. Sabía a cidade cortada por combates, talvez a sua ausência se devesse ao facto de se encontrarem bloqueados, talvez.

Quando apareceram foi uma festa, todos se apresentaram ilesos, mas foi festa a que depressa dei cobro ao saber das razões que alimentaram as minhas aflições.

Não me dou com confusões, sobretudo se alimentadas por dois ou três idiomas diferentes e por vezes simultâneos, ou se, mesmo em inglês, o palavreado corre com alguma celeridade. Por isso logo que tive oportunidade, indaguei junto de Haniko o que se passara, a sua cara de ponto de interrogação estava mais acentuada que nunca, a tensão arterial pulsava-lhe ainda nas veias como nunca vira em ninguém, e tive que a acalmar antes que começasse a falar, até porque à velocidade com que se exprimia não conseguia entendê-la.

Por fim lá consegui percebê-la e perceber o que se havia passado. The Water Power Plant tinha sido alvo de violento ataque e tomada dois dias atrás pelos americanos. Não sendo uma instalação militar, tinha, como muitas outras instalações do género, incluindo o sítio onde eu estava acantonado, uma guarnição militar que a defendesse, instalações para esses militares, uma ambulância, um carro de bombeiros e, como por toda a cidade, abrigos cavados no chão ou levantados com sacos de areia para protecção de soldados ou  civis e milicianos.

Haniko não conseguiu lembrar-se do que fazia o resto do grupo, ela encontrava-se meio deitada na relva, apreciando o cair da noite e da humidade, o lusco-fusco molhando as águas do Tigre que passava relativamente perto. Repentinamente sentira um barulho surdo nas suas costas, virou-se e deu de frente com helicópteros surgidos não sabe de onde, rasando os edifícios e metralhando tudo indiscriminadamente. Foram apenas escassos segundos ou minutos, o ruído ensurdeceu-a, o espanto petrificou-a, à sua volta tudo era feito em bocados, tudo explodia, tudo se desmoronava, tudo gritava, tudo fugia desordenadamente, era, segundo ela mesma, o caos tomando forma.

Não saiu do lugar, nem se salvou por milagre. O que lhe pareceu um ataque indiscriminado não o foi, os alvos atingidos, exclusivamente militares e instalações afectas aos mesmos deixaram perceber por parte do atacante um conhecimento pormenorizado do local.

De qualquer modo foi uma chacina, de terra ninguém teve tempo para dar um tiro sequer, enquanto os helicópteros, pairando no ar e apesar da escuridão que, alheia ao negro desígnio dessa noite se ia instalando, pareciam ter olho de lince para tudo que se mexesse e estivesse no alcance da sua mira.

O grupo passou o resto da noite recolhendo cadáveres, acudindo a feridos e soterrados em comunhão com a população local e auxilio entretanto chegado. Sem que se tivessem apercebido tropas terrestres americanas surgiram do escuro, tomaram conta da área sem impedirem a remoção de mortos ou o transporte de feridos, como se nada fosse com eles, como se estivessem ali há muito.

Os meus amigos do voluntariado da Paz cumpriram a missão humanitária a que se entregavam sem interferências, apenas foram impedidos de abandonar o sítio senão ao fim de dois dias e de algum controle, tendo sido remetidos para o Hotel Palestina com ordens para não regressarem ao local, agora nas mãos de novos “proprietários” e pertinentes defensores.

Não testemunharei os depoimentos de cada um, que foram do inacreditável ao pasmo completo. Houve quem se tivesse vomitado, quem tivesse desmaiado mal viu sangue derramado, quem tivesse ficado paralisado com a violência do ataque, e até quem tivesse conseguido manter o sangue frio e prestar de imediato uma ajuda que outros foram por reacções diversas incapazes de prestar.

Haniko não ficou mais aliviada depois de mo contar, desatou num pranto insolúvel arrastando-me consigo. Nenhum de nós estava preparado para o que se nos deparava. A guerra dói mesmo quando não é nossa. Cabisbaixos nos calámos, esquecer aquele e tantos outros momentos que sangravam como o escoar de areia em ampulheta era impossível. Tentou dormir, mas tal não era permitido, a mente recusava apagar imagens de terror gravadas a sangue, e a quente, acabei por lhe dar três ou quatro dos “Pepsamar” que ainda me restavam para se acalmar mas não chegaram a fazer efeito.

Somente voltei a vê-la em Amã passados alguns dias, ainda com a mesma cara de interrogação, com um olhar vazio que penso não lhe irá passar tão depressa.

Desta vez não chorou no meu ombro, as convulsões não a deixaram, fechámos a porta do quarto envergonhados por tudo aquilo que passáramos, e de novo nos encontrámos, sós. 


Humberto Baião in "A Guerra No Iraque" A Experiencia Inesquecível de um Voluntário de Paz Na Tomada De Bagdad " - Ed NossoFuturo - 2005 - ISBN 972-9060-31-2





sábado, 11 de maio de 2013

144 - ESCARAVELHOS E BATATAS…


                 Uma das minhas amizades destas lides julga-se um anjo. Não que isso me incomode, nada mesmo, pelo contrário, até gostava que fosse, e certamente não eu exclusivamente, mas todos que beneficiássemos da protecção das suas asas miraculosas.

Cada um tem a pancada que quer, ou pode, ou lhe calhou em sina. A nós nos cabe aturá-la, aguentá-la ou sacudi-la ...

Sucedeu que um texto meu lhe não agradou e largou-me um desafio, como as vacas largam bostas, de um tema à sua escolha.

Não quero imaginar tudo que pensou enquanto lia esse texto que achou abominável, aquele que tanto a impressionou e lhe desagradou. Aliás, desagradou a mais gente e acabei por retirá-lo.

É preciso ser mazinha pensei eu perante o seu desafio, coisa que sobre ela jamais me ocorrera, mas como não gostou aceitei-lhe a prerrogativa de escolher um a seu jeito, de sua livre vontade, e a seu gosto, ao que ela inteligentemente (?), a vingança é sempre terrível, respondeu com o repto para que eu escrevinhasse sobre “a importância do escaravelho no cultivo da batata”.

Sorri, eu sei, mas ela não parece ter-se apercebido, que a qualquer texto se dá a volta como entendermos. A aposta não estava ganha á partida mas não era difícil. A batata será importante pelo menos para ela, para os entendidos nem tanto, ou nem por isso, não passa de um tubérculo perene, sendo um dos vegetais mais usados em todo o mundo, e também um daqueles com que se enganam os parvos e fazem fortunas, pois dá dinheiro fácil, imaginem o valor de um quilo de batatas fritas em pacote, um dinheirão !

E nem o muito gasto em ginásios encolherá às consumidoras o tal pneu uma vez adquirido. De tão grande riqueza, a batata, é alimento humano há mais de 7000 anos por ser rica em amido e é nas suas plantações que surgem os besouros ou escaravelhos mais conhecidos por coleópteros, que se caracterizam por poderem voar e possuir um par de asas, os élitros.

Existem mais de 350.000 espécies no mundo, sendo estes insectos o grupo animal mais diverso que existe de entre os que melhor conhecemos. A Joaninha, os besouros, ou escaravelhos, os vaga-lume ou pirilampos, o gorgulho e o rola-bosta, sim, esse mesmo, o rola-bosta, ou escaravelho da merda, fazem dele parte.

Mas estou a desviar-me do meu fito, já que esses insectos, nas suas variadas fases de vida, se transformam ou comutam, de larvas a mariposas, não olvidando o intermédio de crisálidas.

A minha desafiadora amiga não será uma mariposa, mas julga-se um anjo e os anjos têm asas, durante muito tempo a sua presença fez-me sentir como quem sente a Primavera e quase diariamente “poisava” no meu perfil, e em tantos outros decerto, o que era uma alegria, ver a marca da sua pose.

Não a conheço, aliás nunca a vi ou conheci, mas imagino-a crisálida presa na sua espécie e ávida desses voos que desferia como se a vida lhe desse um dia apenas de alegria. Foi-se, nem sei se por, como as borboletas de verdade, a vida lhe ser curta e a condição tão breve quanto a tolerância.

Deixou-me saudades e, hoje, que a Primavera já vai entrada, com saudade a lembro em cada borboleta que vejo, e em cada volteio com que me rodeiam a relembro e imagino, será ela ?

Não sei, nunca saberei, ficou-me contudo a doce lembrança dos seus voos e a doce sensação deixada cada vez que, como um anjo, no meu perfil poisava.
...


quinta-feira, 2 de maio de 2013

143 - O DÉFICE NÃO É NOSSO... by Luísa Baião* ...



Há amizades que há anos partilho com gosto, algumas das quais com quem passo mesmo fins-de-semana ou noitadas. Muitas delas nem darão por irem comigo para a cama, a última foi o meu amigo Filipe Luís.

Mas nem só com ele tenho desfrutado os meus pensamentos, Nicolau Santos, Victor Ramalho, Fernando Madrinha, Pedro Norton, Daniel Amaral, Daniel Oliveira, J. P. Coutinho, Jorge Fiel, António Barreto, Vasco Pulido Valente, Boaventura Sousa Santos, José Gil, Adriano Moreira, Mário Soares, Freitas do Amaral, Helena Roseta, Clara Pinto Correia e outras e outros tantos, (o Barroso abdicou, não o nosso mas o cunhado do Marofas) que à vez ou ao molho fazem parte de verdadeiras orgias mentais a que por vezes me dedico.
  
Claro que nem sabem que com eles durmo, mas que se saiba ao menos que não me tiram o sono, se não durmo é porque não quero, nunca porque me não deixem, pois é nessas horas de sossego para o corpo que entra em ebulição a mente, resolvendo os problemas que o simples facto de vivermos nos coloca.
  
Normalmente, porque a vida já me deu o que tinha a dar, e porque o filho está criado, não havendo ainda netos, são preocupações de índole social que me acodem não tendo a ver unicamente com a minha costela de autarca mas com todo o esqueleto da cidadã que sou, esqueleto ao qual, a julgar pelo caminho pisado, dentro em breve me verei reduzida.
  
Pois o meu amigo Filipe Luís teve o descaramento de afirmar, preto no branco, que o défice não é um problema do governo mas um problema nosso. Acredito que o défice seja de carne e osso como ele diz, mais de osso que de carne enfim, mas de carne e osso, tá bem, agora que seja um problema nosso, aí pára o baile.
  
Nosso na medida em que seremos nós a sofrê-lo, a pagá-lo, o que até nem deverá custar muito pois, que me lembre, há pelo menos trinta anos que ouço a mesma música, que pago défices, que pago o desgoverno dos outros.
  
Que ao menos fique bem claro, o défice é um problema nosso que os nossos queridos capatazes nos têm gentilmente vindo a atirar para o regaço ao longo de todos estes anos, que deveriam ter sido de esperança mas que afinal têm, isso sim, sido um encargo cada vez mais pesado. A nós não nos restará outra coisa que fazer o mesmo que sempre fizemos, pagar.
  
Mas o meu amigo Filipe Luís que me deixe chamar-lhes maus gestores, aldrabões, incompetentes, desonestos, fingidos, oportunistas, fascistas, floristas, istas istos e istas aquilo, pois coisa que nunca estiveram interessados em fazer, coisa tão simples como administrar o próprio quintal, já eu sei há muito tempo, nunca foram capazes.

 O que sempre foi feito, foi-o uma vez mais, agora de forma mais acutilante, todavia exemplificativa de quanto nos sobra em imaginação. Se já ninguém, ou poucos, pareciam ter gosto em trabalhar, empreender ou investir em Portugal, penso que de forma determinante, acredito que desta é que arrumámos esses líricos idealistas de vez.
  
Parece, e todos os analistas são unânimes, que desta é que se fez ou fará o que havia a fazer, porque a coisa nos vai pesar nos ombros durante muito tempo, como se tal não tivesse pesado sempre, ou sido feito sempre.

Cinicamente ainda há quem tema que este povo caia no desânimo ou na depressão, como se (eu incluída) não vivêssemos num psicodrama de longa duração e numa recessão mais velha ainda. Que o estado gasta, há muito, mais que o que devia, todas sabemos, que sempre gastou o que era nosso e não devia, sempre o soubemos, que vai gastar o pouco ou muito que tivermos, não o sabíamos, ficámos a sabê-lo agora.

Mas como confio no governo e em quem nos governa, passada a tempestade virá a bonança, pelo que ficarei à espera das medidas que finalmente permitam aos portugueses trabalhar, fazer coisas, singrar, medrar, inovar, evoluir, desenvolverem-se, enriquecerem, cultivarem-se, modernizarem-se, coisas que matem esta burocracia asfixiante, esta administração pública inoperante, já que as medidas por enquanto tomadas, atendendo ao cenário vivido, só poderão fazer com que parem por completo, de vez.





* publicado por Maria Luísa Figueiredo Nunes Palma Baião em 30-5-2005, In Diário do Sul, Kota De Mulher, Évora.