sexta-feira, 17 de maio de 2013

145 - WATER POWER PLANT ..........


  
Haniko viera do Japão. Roliça, cerca de trinta e tal anos, dela não podia dizer ser propriamente bonita, em compensação era simpática. Distinguia-a o facto de, ao contrário do restante grupo japonês, não surgir nunca carregada do diversificado e sofisticado equipamento made in Japan, o que a tornava única. Nesse aspecto, os seus, mais que as suas compatriotas, pareciam autênticas montras ambulantes, sobretudo no que tocava a material áudio e vídeo.

Gostava dela, e nesse grupo nacionalista étnico e cultural era quase a única com que mantinha esporádicas conversas. (por vezes vestiam de forma tão extravagante como no carnaval do Rio).

Nunca percebi qual a razão pela qual apresentava uma cara de permanente assombro ou deslumbramento, lembrei-me mesmo de mim quando, em petiz, visitei Lisboa pela primeira vez. Tudo me punha de boca aberta, os eléctricos de dois andares, os boletineiros da Marconi ziguezagueando a cem à hora por entre o denso e intenso tráfego da capital na urgência dos telegramas que o barulho das motos anunciava à distância, a calma dos mastodontes pastando plácidamente ancorados no Tejo ou a maravilha dos esquentadores se, em casa do meu mano me deliciava com um duche quente.

Para Haniko tudo parecia surpresa mas, naquele dia ela não era caso raro de estupefacção. Na verdade eu estava há dois dias preocupado, não havia notícias do grupo de Water Power Plant, (Estação de Tratamento e Distribuição de Água) onde os japoneses se incluíam, sabia-se que tinha havido bombardeamentos fortíssimos na sua zona de acantonamento, e preocupava-me o facto do seu sítio ficar a alguma proximidade de uma refinaria.

Os métodos cirúrgicos de bombardeamento a que todos os dias assistia levavam-me a acreditar na eventualidade de não terem sido atingidos mesmo que a refinaria o fosse, contudo uma refinaria atingida é por si só uma bomba autêntica, explode, arde, jorra e expande os efeitos do desastre numa zona considerável, daí o meu temor por ela e por eles. Sabía a cidade cortada por combates, talvez a sua ausência se devesse ao facto de se encontrarem bloqueados, talvez.

Quando apareceram foi uma festa, todos se apresentaram ilesos, mas foi festa a que depressa dei cobro ao saber das razões que alimentaram as minhas aflições.

Não me dou com confusões, sobretudo se alimentadas por dois ou três idiomas diferentes e por vezes simultâneos, ou se, mesmo em inglês, o palavreado corre com alguma celeridade. Por isso logo que tive oportunidade, indaguei junto de Haniko o que se passara, a sua cara de ponto de interrogação estava mais acentuada que nunca, a tensão arterial pulsava-lhe ainda nas veias como nunca vira em ninguém, e tive que a acalmar antes que começasse a falar, até porque à velocidade com que se exprimia não conseguia entendê-la.

Por fim lá consegui percebê-la e perceber o que se havia passado. The Water Power Plant tinha sido alvo de violento ataque e tomada dois dias atrás pelos americanos. Não sendo uma instalação militar, tinha, como muitas outras instalações do género, incluindo o sítio onde eu estava acantonado, uma guarnição militar que a defendesse, instalações para esses militares, uma ambulância, um carro de bombeiros e, como por toda a cidade, abrigos cavados no chão ou levantados com sacos de areia para protecção de soldados ou  civis e milicianos.

Haniko não conseguiu lembrar-se do que fazia o resto do grupo, ela encontrava-se meio deitada na relva, apreciando o cair da noite e da humidade, o lusco-fusco molhando as águas do Tigre que passava relativamente perto. Repentinamente sentira um barulho surdo nas suas costas, virou-se e deu de frente com helicópteros surgidos não sabe de onde, rasando os edifícios e metralhando tudo indiscriminadamente. Foram apenas escassos segundos ou minutos, o ruído ensurdeceu-a, o espanto petrificou-a, à sua volta tudo era feito em bocados, tudo explodia, tudo se desmoronava, tudo gritava, tudo fugia desordenadamente, era, segundo ela mesma, o caos tomando forma.

Não saiu do lugar, nem se salvou por milagre. O que lhe pareceu um ataque indiscriminado não o foi, os alvos atingidos, exclusivamente militares e instalações afectas aos mesmos deixaram perceber por parte do atacante um conhecimento pormenorizado do local.

De qualquer modo foi uma chacina, de terra ninguém teve tempo para dar um tiro sequer, enquanto os helicópteros, pairando no ar e apesar da escuridão que, alheia ao negro desígnio dessa noite se ia instalando, pareciam ter olho de lince para tudo que se mexesse e estivesse no alcance da sua mira.

O grupo passou o resto da noite recolhendo cadáveres, acudindo a feridos e soterrados em comunhão com a população local e auxilio entretanto chegado. Sem que se tivessem apercebido tropas terrestres americanas surgiram do escuro, tomaram conta da área sem impedirem a remoção de mortos ou o transporte de feridos, como se nada fosse com eles, como se estivessem ali há muito.

Os meus amigos do voluntariado da Paz cumpriram a missão humanitária a que se entregavam sem interferências, apenas foram impedidos de abandonar o sítio senão ao fim de dois dias e de algum controle, tendo sido remetidos para o Hotel Palestina com ordens para não regressarem ao local, agora nas mãos de novos “proprietários” e pertinentes defensores.

Não testemunharei os depoimentos de cada um, que foram do inacreditável ao pasmo completo. Houve quem se tivesse vomitado, quem tivesse desmaiado mal viu sangue derramado, quem tivesse ficado paralisado com a violência do ataque, e até quem tivesse conseguido manter o sangue frio e prestar de imediato uma ajuda que outros foram por reacções diversas incapazes de prestar.

Haniko não ficou mais aliviada depois de mo contar, desatou num pranto insolúvel arrastando-me consigo. Nenhum de nós estava preparado para o que se nos deparava. A guerra dói mesmo quando não é nossa. Cabisbaixos nos calámos, esquecer aquele e tantos outros momentos que sangravam como o escoar de areia em ampulheta era impossível. Tentou dormir, mas tal não era permitido, a mente recusava apagar imagens de terror gravadas a sangue, e a quente, acabei por lhe dar três ou quatro dos “Pepsamar” que ainda me restavam para se acalmar mas não chegaram a fazer efeito.

Somente voltei a vê-la em Amã passados alguns dias, ainda com a mesma cara de interrogação, com um olhar vazio que penso não lhe irá passar tão depressa.

Desta vez não chorou no meu ombro, as convulsões não a deixaram, fechámos a porta do quarto envergonhados por tudo aquilo que passáramos, e de novo nos encontrámos, sós. 


Humberto Baião in "A Guerra No Iraque" A Experiencia Inesquecível de um Voluntário de Paz Na Tomada De Bagdad " - Ed NossoFuturo - 2005 - ISBN 972-9060-31-2