A nossa vida é feita de pequenas
recordações, guardadas ou remetidas para cantos esconsos da memória, tão
esconsos que só um pé-de-vento poderá, em certas ocasiões, levantá-las da
poeira acumulada.
Tenho crónicas elaboradas de supetão, escritas
debaixo da emotividade do momento, não é, infelizmente, o caso desta.
A crónica de hoje leva-me já dois meses talvez, e algum choradinho à mistura. Tem sido dificílimo para mim aceitar a
realidade, com a qual sonho, porque pertence ao passado, e está em vias de não
ter lugar no futuro, a não ser no remoto lugar para onde atiramos as lembranças.
Quando universitária frequentava muito
o "bar do Paulo", nessa altura o ponto de encontro de gente mais
informal, pois não quero dizer selecta. O bar tinha um ambiente acolhedor, e
comedido, apesar de estar sempre a rebentar pelas costuras.
Tirando esse ambiente familiar e anti
depressivo, nada tinha de especial, a não ser o Paulo, tão especial que fazia
parte da mobília. Ainda hoje não sei o que tinha esse bar, sempre apinhado,
sobretudo de gente carente de afectos, talvez por não ser da terra e por cá
passar temporadas demasiado longas.
Tinha ar condicionado, mas não
funcionava, e, num tempo em que os telemóveis ainda estavam para nascer, tinha
telefone, mas estava sempre ocupado, música ambiente também havia, pura e
simplesmente a que ao Paulo agradava, cerveja muita, inda que nem
sempre fresca, bebidas de um leque muito pouco ousado e umas flores constantemente
renovadas e sempre murchas nas jarras, a par com cinzeiros abarrotando de
beatas que largavam um fétido cheiro e completavam o cenário. Nunca se saía com
vontade de voltar, nunca nos afastávamos mais que um fim de semana.
Acabado o curso cada uma desandou, deu
rumo à vida se o não tinha já, como no meu caso. A festa de despedida foi no
Paulo, e dele nos despedimos também.
Passaram-se anos, nem sei se o bar
continuou do Paulo, tão farto estava de nos aturar. Ao certo apenas que passado
pouco tempo tinha fechado, nunca soube porquê.
Passei na ruela há uns dois meses, toda a casa
estava em obras, meio demolida meio recuperada. Ninguém sabia do Paulo, que
sim, que em tempos ali tinha funcionado um bar, sim, já há muitos anos, a
vizinha Alzira era desse tempo, lembrar-se ia… de quando a ruela era um rodopio
onde ninguém sossegava. Agora estranha, tem saudades das pequenas, da sua
irreverência, e do Paulo, que se havia tornado para ela um filho, que tomara o
lugar de um outro Paulo, o filho que lhe morrera em África. Para aquela Mãe,
foi como se tivesse chorado duas vezes a mesma perda, sentido duas vezes a
mesma dor.
Alzira perdera dois filhos, um em África
e outro nos braços, o primeiro sangue do seu sangue, o segundo adoptara-o, e
não lhe pusera Paulo porque ele já o era, como Mãe lhe chamou quando, com uma
leucemia, de um dia para o outro lhe morreu nos braços.
Chorou enquanto mo contou, e não pude
deixar de chorar com ela.
Só agora percebi o que tinha o bar de
tão especial, quando tanto lhe faltava e mais ainda deixava a desejar. O Paulo
era especial, irradiava dele uma humanidade que somente agora percebi, só agora
entendi porque todas tão bem nos sentíamos naquele bar, no bar dele.
Sou e sempre fui fisioterapeuta, tal
como o Paulo sempre preferi as pessoas, nunca fui capaz de me desligar delas.
As pessoas primeiro, por isso assisto agora, extasiada, ao rasgar de avenidas e
perspectivas novas na nossa cidade, que, como um ser, respirará melhor no
futuro, dará às suas gentes desafogo, mas as obras naquela ruela, no bar do
Paulo, estão a dilacerar-me o coração, a arrancar bocados de mim, a
despojar-me do passado, a matar-me aos poucos.
Cidades são como gentes, para que umas
se renovem outras têm que morrer, para que se rasguem estradas e mentes, outras
terão que ceder, mas gentes não são cidades, porque tenho então que sofrer ?
* In Diário do Sul, Kota De Mulher,
– por Maria Luísa Baião, publicado verão de 2004