sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

212 - QUARENTA E QUATRO 44 r/c ...............


Trabalhar para quê e para quem ? Nao sendo transcendente a questão que Margarido colocava era pertinente e, ora porque não tivessem argumentos para a rebater ora por não quererem alimentar polémicas com o personagem, mor das vezes deixavam Margarido com a pergunta no ar, sem resposta, e até sem conversa, simplesmente não lhe aparavam as jogadas por estar sempre do contra ou usualmente rebuscar uma qualquer perspectiva que regra geral nem lembraria ao diabo.

Razão tinha-a ele de sobra, e o que sobejava (desculpem a redundância) era mais que suficiente para se tornar incómodo para qualquer um, com elas não, porque elas pareciam ter mais paciência para o tolerar sendo até mais abertas e dispostas a contra argumentar, todavia, o facto de noventa e nove vezes em cem ele ter razão, perdia-o. Ninguém estava para o aturar. A verdade, como todos sabem, incomoda muito, a razão incomoda muito mais.

E a verdade é que durante quarenta anos este bom povo se tinha esmifrado, e suado, para construir grandes empresas, nas comunicações, nos transportes, nos seguros, nas energias, na saúde, na banca, e agora, nem em meia dúzia de anos, de uma penada e por tuta e meia passavam para mãos estranhas. Logo agora, que estavam maduras e eram rentáveis é que eram passadas por meia duzia de patacos mal contados. Outros lhes sugariam o tutano, cabendo-nos a nós continuar a dobrar a espinha, a amouchar e calar.

Margarido tinha razão, alguma coisa falhara e não fora ele, que além do amor pátrio e do prestigio nacional nada mais perdera, pois nunca trabalhara, (ver texto nº 208 – ATIREI O PAU AO GATO...) e agora muito menos contassem com ele porque nunca se sentira com vocação, costela de colaboracionista ou traidor. E, como não se cansava de dizer, ainda por cima trabalhar para pretos ou chinocas como estava a acontecer em grande escala, para nosso desprimor.

Ali onde o viam todos os dias, na linda esplanada do 44 r/c, na Pastelaria Alegria, à praça do Imaginário, ele meramente assistia e esperava o dia em que tudo desse um grande estouro e um maior espectaculo. Tal como ele, julgo ser pacífico para toda a gente que nos estampámos. Um autocarro conduz-se agarrando o volante com unhas e dentes, um avião pilota-se sobretudo acrescentando miolos, um país dirige-se a partir do gabinete do primeiro ministro e dos ministérios das finanças e economia. É obvio que nos últimos quarenta anos esses lugares estiveram desocupados, ou pelo menos não o foram por gente capaz de os exercer. Da AR já nem ele falava, duzentos e trinta inúteis abanando a cabeça em assentimento e fazendo pela vidinha em permanência.

Se ao menos a administração pública funcionasse exemplarmente, ia perorando, mas nem nisso tivémos sorte, pejada que estaria de quadros médios e superiores que nem faziam uma idéia pequena que fosse do que era chefiar, comandar ou administrar. Falta-nos, como na tradição francesa, uma escola superior de administração pública o que, aliado ao mau hábito de atribuir lugares de responsabilidade a politicos irresponsáveis, incultos, incapazes e videirinhos, tem feito de nós a nação que somos, exangue, exausta e exaurida.

A nossa longa história, de quase novecentos anos (isto aprendeu o Margarido comigo) bem nos tem demonstrado que só evoluimos quando debaixo de poderes coesos, unos e fortes, razão tinha Manuela Ferreira Leite, mas não necessitamos somente de seis meses, nem sessenta, mas de outros quarenta e oito anos. Afonso Henriques, D. Dinis, o Infante D. Henrique, D. Manuel, Fontes Pereira de Melo, Salazar, a história é testemunho de que democracia e paninhos quentes nunca nos levaram a lado nenhum. A primeira república foi um regabofe em que os dois principais partidos deixaram resvalar a situação para além dos limites do aceitável, tal qual como agora. Em 1926 os militares, descontentes com a corrupção desenfreada e tementes que lhes faltasse o pré, tomaram nas mãos o poder que os democratas tinham sugado até ao tutano e convidaram Salazar a endireitar esta merda. (sic, palavras ouvidas ao Margarido) Quem teremos que convidar desta vez ? Quem nos salvará agora desta mortífera democracia ?

Desgraçadamente o Portugal de 1910 – 1926 tal como o de 1974 – 2014, só serviu para enriquecer não se sabe bem como, meia dúzia de democratas bem instalados. Em simultãneo o país regride, o povo é explorado e vilipendiado, a suspeição envolve a maioria das gradas figuras nacionais que, quanto mais sobem mais se lembram de si mesmas e melhor se amanham, sendo que democracia acaba por ser sinónimo de oportunismo, amiguismo, compadrio, partidarismo, falta de isenção e de transparência, o oposto do que devia ter sido, e ser.

A impreparação e inconsciência de muitas chefias da nossa administração pública é gritante, e a ignorância acerca do mundo em que se inserem e movimentam confrangedoura. Não duvido que arvorem altos diplomas, em economia, gestão de empresas, arquitectura ou engenharia, mas do ponto de vista social e humano algumas são verdadeiras nódoas e do ponto de vista cívico e político um zero à esquerda, não enxergam mais que uma Capivara (estou a lembrar um dito do meu amigo Carlos C.).

Após o términus das licenciaturas, muitos deles (e delas) deveriam ser obrigados a frequentar qualquer curso de administração pública (e estes obrigados a existir) afim de tomarem conhecimento e consciência do reflexo das suas atitudes e posturas a montante e a jusante das decisões que, tantas vezes (demasiadas) cega e impensadamente tomam.

Portugal não está assim exclusivamente devido aos péssimos politicos que elegemos, as decisões do dia a dia a nivel micro também contam. É certo ser a força da gravidade o sustentáculo do universo infinito, a nível macro, mas ao nível do ínfimo, entre electrões e protões que rodeiam o átomo encontramos a mesma e misteriosa força aglutinadora. Temos a nível macro um PR, um PM, governo, ministros e secretários de estado, mas a nível micro os concelhos, as freguesias, os seus representantes eleitos, e também os chefes de repartições, de serviços, de secções, de departamentos, enfim uma miríade de decisores, de fautores e de gente cuja opinião é ouvida, partilhada e seguida, gente que falhou rotundamente. E não me venham dizer o contrário, porque o país é efectivamente um buraco sem fundo, e isso vê-se ao longe, até um cego repara, tal a dimensão da tragédia.

Jamais haverá impostos que cheguem para sustentar esta desgraça, a única saída é o crescimento, a produção, a criação de empresas e emprego, de riqueza. Facturar, facturar, facturar vai ter que ser o nosso alfa e ómega. Sem isso todas as soluções serão estéreis e inúteis ou demagógicas e é bom que todos, repito todos, nos consciencializemos disso e comecemos desde já a colaborar uns com os outros, ao nível macro e sobretudo micro, pois que ninguém que não nós virá em nosso auxílio, quando muito emprestará dinheiro a juros de agiota para que nos endireitemos, mas seremos sempre nós quem terá que se endireitar, seremos sempre nós quem terá que fazer pela vidinha. Será assim tão dificil de perceber ?

As nossas posturas reactivas estão a empobrecer-nos, somos nós quem se empobrece uns aos outros. Não culpem a Merkel, não culpem a Troika, saberá você que me lê haver milhares de projectos parados em ministérios, comissões de coordenação, direcções gerais, câmaras municipais, há dez, quinze, vinte ou mais anos aguardando deferimento ? Inviabilizamo-nos, destruimo-nos, combatemo-nos.

A nossa postura para com quem nos procura ou ante quem atendemos terá que passar a proactiva, teremos que deixar de nos escudar em burocracias ou excessivos e artificiosos legalismos e ajudar o “outro” a encontrar a solução para o problema que o trouxe até nós, a ajudá-lo a superar as dificuldades e a concretizar os seus desígnios ou sonhos, que também terão que passar a ser nossos, que gerarão empregos, induzirão outras soluções, pagarão impostos que nos suportarão e contribuirão para pagar a saúde, o ensino, a defesa, o bem estar de todos... O montante e o jusante são uma mesma realidade, nossa, são duas caras da mesma moeda, indivisíveis, tocam-nos no âmago, teremos que ultrapassar a demagogia, preconceitos, os juizos de valor e até as melhores boas intenções...

Quando das eleições autárquicas de Setembro de 2013 todos os municípios alardearam num clamor gritante o seu interesse, defesa e protecção do investidor, do empreendedor, do inovador, do promotor. Há poucos dias, por razões que não interessam agora ao caso, dei uma volta pelos sites dos municípios do Alentejo e verifiquei com tristeza que tudo aquilo não passara de paroli paroli paroli... Contam-se pelos dedos de uma mão, e não a esgotam, os que, depois de tanta conversa fiada alojam no site uma página que seja, ou até um mero apêndice dedicado à temática, tal comportamento não nos diz tudo, mas diz-nos muito mais que mil discursos ou boas intenções...


sexta-feira, 28 de novembro de 2014

000 211 - CANTE ALENTEJANO, O QUE DE ESSENCIAL DEVEMOS SABER SOBRE ELE ... *

Pintura - trabalho do artista eborense José da Fonseca -  sprays s/k-line, 70x100cm



Alguns amigos fizeram chegar até mim o eco da sua incompreensão, o seu desagrado e até o seu protesto pela minha aparente falta de jubilo e solidariedade para com o cante alentejano, que ora foi considerado pela ONU património cultural imaterial da humanidade a nível mundial.

Pois bem, deixai que vos esclareça, porque na realidade só aparentemente tal desiderato não me sensibilizou, aliás se não tivesse sensibilizado nem me teria sequer pronunciado, o que fiz, e que justificou as vossas apreensões e repreensões.

Evidentemente, como alentejano que sou (e nem conseguiria deixar de o ser mesmo que quisesse) todo o meu orgulho vai para esse facto, sejam ou não alentejanos todos os que o festejam e comemoram. Na verdade o cante nem é a única expressão musical tradicional no Alentejo, aliás é mais genuína do Baixo Alentejo que do Central ou do Alto. Coexistiram sempre outros géneros e outras adaptações entre nós. Mas o cante tem uma característica repetitiva e um andamento lento e pejado de abundantes pausas que caracterizam e identificam a sua natureza monótona, e isso é exclusivo e peculiar ao nosso cante.

Na essência não posso deixar de me orgulhar, o cante é sobretudo tradição, e sendo tradição é memória, e sendo memória é testemunho, e sendo testemunho é história, e a história faz-se com fontes, de que o cante é ampla e vera prova. Sendo precisamente a história a minha primeira licenciatura, terão que anuir existir motivo justo e forte para que na essência eu esteja de alma e coração com o “cante”, ele é transmissão do sentir do povo alentejano desde muito antes da reconquista cristã, há quem o situe na era recuada dos mercadores gregos e fenícios, ou com a presença romana neste canto da península, ou o ligue à proverbial indolência dos árabes que daqui corremos. 

        Com a reconquista cristã e as vastas terras ou propriedades dadas em aforamento, foral ou enfiteuse, os coutos de homiziados, as doações a ordens religioso militares, todos estes processos jurídicos geraram grandes, extensas e vastas propriedades, ou herdades, como as que por aqui abundam e tão contestadas foram quando do 25 de Abril de 74. (poderão googlar todas estas expressões, eu estou a citar de cabeça e não dou explicações à borla)

O cante é sobretudo o sentir de um povo subjugado à terra e aos senhores dela, um povo servo da gleba, e que encontrou no lamento que o cante expia a fórmula para a sublimação da sua raiva e submissão, o cante é o deixar cair dos braços, é a recusa à luta, o cante mais não é que a expressão da frustração de um povo e da dor do seu martírio, da sua exploração, do seu jugo (ver “jugada” no Google) e dessa aceitação calada e conformada.

O cante é portanto mais que um lamento e muito mais que uma mera cantata nostálgica, o cante é sentimento, é resignação, o cante é geografia peninsular, é sociologia, psicologia, economia, história. Mas reviremos ligeiramente o prisma e vejamos a questão de outros ângulos ou perspectivas, comecemos por quem se outorga poder, autoridade para conceder tais bulas, a ONU.


     Este organismo, cuja fundação foi altamente meritória, tem vindo paulatina e essencialmente nas últimas décadas a perder tanto prestígio e autoridade quanta burocracia tem chamado a si. Abarca vários campos e toca variadíssimos instrumentos, parecendo por vezes ter esquecido o seu papel primordial, aquele que precisamente presidira à sua fundação.

Na ânsia de protagonismo nem o “imaterial” escapa à sanha açambarcadora da ONU, tal significa também mais postos de trabalho, mais emprego, em primeiríssimo lugar para burocratas carecidos de objecto justificativo dos chorudos vencimentos, despesas de representação e de custos, e outras que nunca deixam de se atribuir a si mesmos. (um pouco à imagem da UE).

Mas, e o cante ? Voltemos de novo a ele, será que antes de toda esta caricata nomeação era mal aceite ? Mal visto ? Mal divulgado ? Mal protegido ? Não me parece, e a marosca mais me soa a homenagem que os seus defensores lograram atribuir aos próprios. O cante não tinha nem tem mais nem menos valor por isso, o cante nunca esteve proibido de exibição, adoração ou exploração comercial, (agora a propósito das casas de cante à imagem das casas de fado, e cuja demora não entendo, deviam ter sido criadas há trinta anos ou mais) o cante é o mesmo e é igual, diferente somente a perspectiva sob a qual muitos de nós o olham agora, agora que galardoado e guindado a património mundial e nos parecerá edifício majestático que urge abençoar, das fundações aos píncaros.

Sucede que eu já reconhecia o valor intrínseco do cante, muito antes desta reverência inusitada (e incompreensível para mim) que nos últimos dias lhe tem sido atribuída, mas com a qual contudo me solidarizo.

As manifestações de que o cante tem sido alvo roçam o oportunismo, e temo até que o seu uso, que já era exagerado e despropositado tantas vezes, se torne agora um recurso a que deitar mão de forma insidiosa. Por dá cá aquela palha e ao mais pequeno descuido, ou motivo, tomem lá com um grupo, tomem lá mais uma sessão de cante, trate-se de visita de um embaixador, da inauguração de uma escola ou da comemoração de quaisquer efemérides. É que já há muito município que o faz, já o fazia e crescerá a tendência a fazê-lo agora reiteradamente “já que nos está proporcionar um momento de reconhecida cultura”… mais que certo irem fazer do cante pau para toda a obra.

Meus queridos amigos, talvez comecem finalmente a perceber a razão pela qual pareço não morrer de amores pelo cante, sim, estou já saturado, para além de ser um individuo extrovertido e conciliar-me mal com o carácter tímido, intimista ou fechado do cante. Na realidade o cante é tudo que eu não sou, daí que reconheça o seu valor mas não me identifique minimamente com o fenómeno.

O cante é lamúria, queixume, é submissão, é aceitação, julgo que já o dissera aqui. O cante não é um hino à luta, o cante não é protesto, o cante é testemunho de muito mais que oitocentos anos de sofrimento. Outros povos já se teriam erguido e lutado, o alentejano não, e factos como o de Catarina Eufémia são heróicos mas são pontuais, são aventuras, nem uma batalha são quanto mais uma luta, uma guerra, nem mudaram nada. Esperarem que morra de amores por este cante é manifestamente exagerado para mim, jamais seria capaz.

Este cante é sinónimo de solidariedade na resignação, não é nem nunca foi um grito de Ipiranga (vai ver ao Google). O cante tautológico que a esquerda nos oferece é o ideal de subjugação que o capitalismo idealizou, apreciou e com que sempre sonhou, talvez por isso no Alentejo não sejamos capazes de modificar a situação, talvez nunca tenhamos lutado por outros objectivos com o fervor depositado agora em conseguir este desiderato imaterial, talvez nunca tenhamos sido tão solidários uns para os outros, ou para outros fins igualmente comuns, talvez só agora que se tratou de louvar tamanha tontice, mas enfim, depois de ver isto já estou preparado para o pior… não se terá perdido tudo…

Se estou com o cante ? Oh ! Sim ! Com certeza ! Mas que fique no seu cantinho, como tem estado, e onde tem estado, prefiro outros hinos, outros cantes, de exaltação à luta e à vitória, de glória e advento da justiça sobre injustiças de séculos… Foi esta atitude conformada que o cante testemunha e transmite que a ONU distinguiu e reconheceu, e os mídia se esfalfaram a transmitir, contudo não tive o prazer de ver escrita nem uma palavra sobre o significado profundo do cante, ou seja, rejubilam-se e levam a que os outros rejubilem também, mas sem que saibam bem do quê, o rebanho seguirá a cabeça da manada…

Detenhamo-nos nalgumas pérolas da nossa imprensa :

Estamos em festa
Salvaguardámos a tradição
Reconhecimento importantíssimo
Garantido o nosso património imaterial
Estamos de parabéns
Grande alegria da população
Grande motivo de orgulho
Tornámo-nos dignos da maior apreciação
O mundo orgulha-se de nós
Emocionante para os alentejanos
Um dos maiores ganhos…
Visibilidade internacional
Reforço de identidade
Ligação à comunidade

Oitenta por cento dos alentejanos nem saberão alinhavar três palavras sobre a génese e história do cante, mas garantidamente foram preparados para emprenhar pelos ouvidos…. Uma tristeza…


Enorme vitória, grande vitória
Glorificação de um sonho, de uma utopia
Conseguimos

Eu diria que só não conseguimos tirar o Alentejo do mapa da região mais pobre e desertificada de Portugal. Francamente é pouco, francamente é triste.

Contudo faço minhas as palavras e os desejos do Turismo do Alentejo, assim Deus as ouça…


* NOTA IMPORTANTE: Este texto é uma súmula bem resumida e espremida, retirada de uma tese elaborada por mim em colaboração ou parceria com a minha saudosa colega e esposa, Maria Luísa Baião, no terceiro semestre da cadeira de Antropologia sob a batuta do falecido Dr. Francisco Ramos. Corria o ano de 1983 e o tema deste texto, o Cante Alentejano, veio a ser considerado pela ONU Património da Humanidade no dia 27 de Novembro de 2014, o texto tem a data de 28 do mesmo mês e ano. Teria sido impossível “despachá-lo” tão depressa não me tivesse eu (a responsabilidade do texto é portanto só minha) socorrido da extensa, profunda e trabalhosa tese a que aludi. Estou-vos falamndo de qualquer coisa como muito mais de 100 páginas dactilografadas, incluindo a transcrição de dez cassetes áudio, cada uma delas referente ao estudo de um dos principais grupos de Cante entre os muitos que povoam o(s) Alentejo(s), tese que foi merecedora da elevada classificação do dezoito valores (18).



                                                 Immanuel Kant da Silva - Beringel 1724 - 1804

sábado, 22 de novembro de 2014

210 - TERTÚLIA ALEXANDRINA ......................

                   Das mulheres não reza a história. Larissa aspergira-nos com água de rosas mal pusémos o pé em terra. A túnica diáfana exaltava-lhe a alma do seio. Como sempre dei por mim meditando em como eram belas as mulheres de Alexandria, fossem gregas, romanas ou egipcias, como a que agora nos incitava e instava a entrar na taberna, agitando folhas de palma para nos refrescar e agradar. A seu lado, tocando lira, trajes imitando as concubinas de Sodoma, outras beldades nos convidavam de modo sensual a degustar os pratos, especialidades e outros prazeres ofertados pelo “grego”. 

A íngreme ladeira desde o porto de Alexandria até ao casario extenuara-nos, o sol a pino nada ajudava quanto a aliviar o fardo. Uma nova rua partia agora da praça, e era dela que provinha um odor forte a “haniotikó bouréki”, as saborosas fatias de batata assada com aboborinhas, queijo “myzithra” e hortelã, manjar que eu tanto apreciava sempre que os negócios me levavam a Creta, espetada no meio do mar como que numa encruzilhada de todos os caminhos para ali.

Parecendo adivinhar-me o pensamento o nosso cicerone convidou-nos, muito oportunamente, a degustar os pratos da novel casa de pasto do grego Saulo de Tales. O chão mole exalava em virtude de chuvada recentemente caída um cheiro a terra, Theodoro não esperou mais, resoluta e firmemente segurou na mão o bordão em que se apoiava (ali designado vara) e com uma pancada seca e forte marcou o local onde deveríamos almoçar, a túnica começava a colar-se-lhe ao corpo e estava, como todos nós, extenuado, faminto, e a paciência começando a faltar-lhe, almoçaríamos portanto já ali, na taverna do “grego”.

Ao avançar Theodoro verificou que a vara não lhe obedecia, ficara espetada no piso mole, molhado da chuvada, e teimava não ceder. Olhou-a curiosamente e espantou-se por não ver dela quase nenhuma sombra, intuiu o fenómeno como a confirmação pelos deuses de que o lugar escolhido para almoçarem era o ideal e deixou a vara espetada ali mesmo, à entrada da taverna. Antes de entrar constatou casualmente que também os prédios quase não tinham sombra, e cogitou que, independentemente do seu apetite e a julgar pela altura do sol seriam horas de almoçar.

O prato não nos desiludiu, e os vinhos, trazidos em ânforas da Gália, eram dignos de recomendação. As conversas giraram à volta da nova biblioteca em construção, de cujo prestígio tiraria proveito a dinastia ptolemaica que governava Alexandria desde os macedónios e de Alexandre o Grande, explicou-nos Sauro de Tales, servindo os vinhos com ar matreiro. Dizia-se que os papiros e pergaminhos eram já largas centenas de milhares, em centenas de casas e armazéns espalhados pela urbe, exigindo condições dignas de arquivo e consulta. Por toda a cidade e por todo o mundo não se falava noutra coisa, pelo que até ali o assunto dessa conversa forçosamente vingou. 

Curiosidades avulso também preencheram conversas, tais como a afirmação de um tal louco e impertinente Arquimedes de Siracusa, afirmando ser capaz de mover o mundo se para tal lhe concedessem uma vara em jeito de alavanca, com o comprimento ideal, afirmações que foram motivo de risota geral e desculpa para dois ou três brindes bem regados com hidromel do verdadeiro, do oriundo de Roma através dos mercadores fenícios.

Ainda a propósito de gregos loucos um outro veio à baila nas conversas, um tal nascido em Samos, já há muito falecido mas não menos louco, e cujas afirmações juravam poder triangular-se quaisquer distancias e adivinhar qualquer uma mesmo que fosse impossível medi-la na prática, desde que as outras duas partes do triangulo fossem conhecidas.

Sim, isso, sim, parece que um tal Pitágoras, sem as exigências de fulcros varas ou alavancas, como Arquimedes exigira, estabelecera já as distancias entre vários pontos do Peloponeso e do mar Egeu, sempre e somente baseado nesse dito seu que se espalhava pelo mundo com a rapidez que os deuses imprimem aos ventos e até, imaginem, constava-se ter servido aos arquitectos da biblioteca para estabelecerem os cálculos de frontões e cúpulas, uma fórmula genial, tão genial que toda a gente lhe canta a música ainda que muito poucos entendam a letra:

- “ O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos” brincou Saulo de Tales imitando a voz afectada de um cantor.

Olé, tal e qual ! Não há cão nem gato em todo o mediterrâneo que não cantarole essa cançoneta.

E ora reinando ora bebendo e comendo a divinal cozinha do “grego”decorreu o animado almoço, e agora que o nevoeiro abandonou por completo a baía, podiam ver-se do terraço da taverna as grandiosas obras da biblioteca no outro lado do porto. À saída, ao agarrar no bordão a que os deuses tinham roubado a sombra  Theodoro observou com apreensão que esta estendia-se agora de uns cinco palmos bem medidos, e automaticamente pensou no tempo decorrido a almoçar, impossibilitado de saber quanto, pois preocupações desse jaez não eram coisa que ocupasse taberneiro ou comensais, olhou em redor e registou projectar o casario igualmente a sua própria sombra, o que foi mais que suficiente para ter ficado meditando profundamente no movimento do astro no tempo e nas horas.

Levantou a túnica, cerrou os dedos em redor da presilha das sandálias a fim de conseguir uma passada mais larga, e logrou apanhar os companheiros, mais adiantados, precisava comprar uma clepsidra ou uma ampulheta nos bazares dos turcos, por isso instou todos a apressar as passadas.

No dia seguinte os deuses prometiam uma partida de viagem calma de Alexandria a Nova Cartago com paragens em Creta, Siracusa, Roma e Gália, teria tempo para meditar, a perspectiva de viajar com sol e mar calmo animaram-no.

O negócios não tinham corrido mal, subiu a bordo, deteve-se olhando o falado mecanismo de Antikythera que agora permitia viajar de noite com segurança de rumo, e indagou entre os restantes viajantes sobre a veracidade da sua atribuição a Arquimedes, elogiou o seu complexo mecanismo, muito superior às mais sofisticadas e precisas clepsidras que vira, e à excepção de meia dúzia de viajantes os restantes encolheram os ombros e manifestaram duvidas que um mecanismo daquele teor tivesse sido criado pelo mesmo grego que pretendeu deslocar o mundo com uma vara, ou uma alavanca, de modo algum para levar a sério, esse tal Arquimedes seria certamente louco.

Engoliu sem retrucar, olhou para a proa da trirreme onde o relógio de sol, padecendo de sombra, não parando de balançar, e pensou quão bom era que o sofisticado mecanismo de Antiquitera nos desse horas certas independentemente do sol ou da lua, das nuvens, da noite e do dia, e do balanço das sombras. Afinal de contas esse tal Arquimedes já inventara antes muitas outras coisas e parecia nem ser tão tolo como o pintavam. Pensar, pensar induzir e deduzir mudavam de um dia para o outro o nosso mundo, os distintos Pitágoras e Arquimedes não faziam mais que pensar e descobrir, estabelecer relações, experimentar o impossível sempre que possível, não fora assim que Arquimedes descobrira e provara a verdade sobre a coroa de ouro do rei Hieron ? E o teorema de Pitágoras, o cálculo das distâncias entre os vértices dum triângulo não se deviam igualmente a um profundo pensar ?

Theodoro pensava, e enquanto pensava nem se dava conta que falava em voz alta, sem que desse por isso amigos e conhecidos foram rodeando-o, imiscuindo-se e partilhando os seus pensamentos e ideias. O espaço exíguo da trirreme favoreceu a tertúlia, que durou muito mais que a viagem, no futuro encontrar-se-iam regularmente, trocariam impressões duvidas e certezas.

Os pergaminhos chegados até nós estão longe de nos dar a conhecer todos os pormenores, no entanto é justo admitir que essa tertúlia lhes permitiu desenvolver pensamentos e atitudes que nos orgulham e beneficiam, a cada um deles a nossa gratidão.

Aleatoriamente:

* Erastótenes – Bibliotecário - chefe da Biblioteca de Alexandria, foi lá que encontrou, num velho papiro, indicações de que ao meio-dia de cada 21 de Junho na cidade de Assuão (Syene, em grego antigo) 800 km ao sul de Alexandria, uma vara fincada verticalmente no solo não produzia sombra. Matemático, gramático, poeta, geógrafo, bibliotecário e astrónomo, conhecido por calcular a circunferência da Terra. Nasceu em Cirene, Grécia, e morreu em Alexandria. Estudou em Cirene, em Atenas e em Alexandria.

* Hiparco de Nicéia – Pai da trigonometria – astrónomo greco-otomano, construtor de máquinas, exímio cartógrafo e matemático da escola de Alexandria, nascido em Nicéia, na Turquia. Viveu em Alexandria, sendo um dos grandes representantes da Escola Alexandrina, do ponto de vista da contribuição para a mecânica. Trabalhou sobretudo em Rodes

* Aristarco de Samos – Astrónomo e matemático grego, sendo o primeiro cientista a propor que a Terra gira em torno do Sol e que possui movimento de rotação. Apenas uma obra sua é conhecida: Sobre os tamanhos e distâncias entre o Sol e a Lua, Aristarco realizou cálculos geométricos das dimensões e distâncias do Sol e da Lua.

* Euclides de Alexandria – Matemático platónico e escritor possivelmente grego, muitas vezes referido como o "Pai da Geometria". Além de sua principal obra, Os Elementos, Euclides também escreveu sobre perspectivas, secções cónicas, geometria esférica, teoria dos números e rigor. A geometria euclidiana é caracterizada pelo espaço imutável, simétrico e geométrico, metáfora do saber na antiguidade clássica e que se manteve incólume no pensamento matemático medieval e renascentista, somente nos tempos modernos puderam ser construídos modelos de geometrias não-euclidianas.

* Arquimedes de Siracusa – Matemático, físico, engenheiro, inventor, e astrónomo grego considerado um dos principais cientistas da Antiguidade Clássica. Entre suas contribuições à Física, estão as fundações da hidrostática e da estática, tendo descoberto a lei do empuxo e a lei da alavanca, além de muitas outras inventou ainda vários tipos de máquinas para usos militar e civil, incluindo armas de cerco, e a bomba de parafuso que leva seu nome. Arquimedes projectou máquinas capazes de levantar navios inimigos para fora da água e colocar navios em chamas usando um conjunto de espelhos. Arquimedes é frequentemente considerado o maior matemático da antiguidade, e um dos maiores de todos os tempos (ao lado de Newton, Euler e Gauss).
http://pt.wikipedia.org/wiki/Arquimedes

* Pitágoras de Samos – ou “Pitágoras o Samiano”, foi um filósofo e matemático grego. A sua biografia está envolta em lendas. Diz-se que o nome significa altar da Pítia ou o que foi anunciado pela Pítia, pois a mãe ao consultar a pitonisa soube que a criança seria um ser excepcional. Pitágoras foi o fundador de uma escola de pensamento grega denominada em sua homenagem de pitagórica. Alguns pitagóricos chegaram até a falar da rotação da Terra sobre o eixo, mas a maior descoberta de Pitágoras deu-se no domínio da geometria e se refere às relações entre os lados do triângulo retângulo. A descoberta foi enunciada no infalivel famoso e conhecidissimo “teorema de Pitágoras”.   

http://pt.wikipedia.org/wiki/Pit%C3%A1goras

* Mecanismo de Anticitera

                   
 E agora uma curiosidade, como surgiu a ideia para este texto ?
Foi no Facebook e foi assim:

  • Rossicléa: Geeente, amanheci com uma dúvida: como foi que acertaram a hora do primeiro RELÓGIO que inventaram, hein?


  • H B : olháí ! Foi pela sombra do relógio de sol e o relógio de sol pela sombra de um pau e o pau foi espetado depois de uma chuvada que amoleceu a terra cheirando a revolvida e .... Olha vou pensar melhor no resto dessa história tá ??

terça-feira, 18 de novembro de 2014

209 - OLHO POR OLHO DENTE POR DENTE …




Quando te olhei no fundo dos olhos não julguei ver o que vi. Fizera-o com o carinho e a saudade guardadas em mim desde a juventude, mais concretamente desde que a tua bata branca me deslumbrara, impecavelmente limpa e passada, donde saíam umas mãos esguias de dedos compridos e finos, de unhas tratadas, cuidadas, e de um púrpura que muito me embevecia.

Púrpura Rebel da MAC disseste tu depois, num dia mais calmo, em que arrumavas demorada e criteriosamente na respectiva caixa os olhos de vidro do mostruário e me explicavas a ordem do catálogo, para que posteriormente pudesse fazê-lo obedecendo à classificação que maternalmente completavas, como se naquela caixa um filho teu que doravante me confiarias.

Olhando-te, mais que ouvindo-te, eu dava as primeiras passadas como aprendiz de feiticeiro naquele laboratório de óptica cujas imagens me impressionavam e enfeitiçavam de tal modo que, enquanto te ouvia tentava adivinhar qual o exemplar do catálogo com que os teus olhos se pareciam, e por isso te mirava incansavelmente pelo canto do olho, dissecando-te a vista com o meu olhar de aprendiz, córnea, cristalino, íris, pupila, dilatando-se e contraindo-se como o diafragma da máquina do senhor José Alves, o “bolacha amaricana”, e cujas habilidades eu admirava, desde a imagem invertida à sua ressurreição final na tina do sulfito de sódio, a cuja magia eu dava mais valor agora por saber que também na retina a mesma imagem invertida, e igualmente a pupila e o cristalino, como o obturador e a lente desse maravilhoso mecanismo em cujos segredos eu me iniciava, munido da mesma curiosidade que animava os magos ante o alambique ou os alquimistas transmutando em ouro a pedra filosofal no cadinho da sabedoria.

Admirava-te pois com paixão, não apaixonado mas com paixão, procurando ver para além do teu olhar, buscando compreender para além do toque mágico das tuas mãos ternas manobrando o Oftalmoscópio e dando vida a um globo ocular inerte, preenchendo o vazio aquoso do seu humor, ou engalfinhadas num Refractor Oftalmológico ajustando dioptrias, lamentando a Coróide e doseando o Colírio, maquinalmente explicando aos pacientes e a mim, iniciado, os mistérios das cores e dos Cones, ou a sensibilidade dos Bastonetes e a transformação da luz e eu, chegado aí, imaginava o clarão que terá cegado os pastorinhos olhando a tal azinheira, os Cones inflados de cores milagrosas entre as quais, sobre uma nuvem, pairava a Senhora cuja fé os cegara, incapazes de compreender a histologia dos olhos, os mesmos olhos que nos garantem os julgamentos que, ignaros, nos iludem e nos enganam, mais que nos surpreendem, pelos quais juramos sempre mas que, para sermos coerentes, deveríamos igualmente estar dispostos a arrancar ao primeiro falso testemunho que nos obrigássemos jurar.

Não juro, mas admito ter levado algum tempo a perceber o teu humor, sempre alternando se pacientes presentes ou não, e que demorei a entender porque me confundias com  as tuas alusões ao Humor Vítreo, deixando-me constantemente pendurado das minhas interrogações e do teu olhar, o mesmo olhar que ainda vejo nos teus olhos castanho esverdeados de esperança, cujo fundo intento penetrar agora como há quarenta anos, enquanto debruçado para ti te beijo a testa com a mesma ternura que sempre te dediquei, hoje já não admirado com a tua magia mas antes com a ignorância que então me animava, a mim, aprendiz de laboratório e de feiticeiro, pasmado ante ti, Merlin de mim, cuja ciência objecto e métodos me encantavam de tal modo que ignorava o passar das horas e almoçava correndo p’ra voltar para ti, cujo olhar me encantava e cujas mãos induziam milagres, qual “toque de Deus”, transmutando-te a meus olhos e pensamento na Senhora da azinheira, deslumbrando e enganando com a tua verdade os males terrenos, devolvendo a vista aos cegos como quem devolve a esperança a dignidade e a vida, quase que debaixo das colunas de um templo ordenando:

- Levanta-te, deixa o teu leito, e vai para a tua casa. (S. Mateus.)

Uma única vez duvidei do que disseras por não ter acreditado teres visto no fundo dos olhos de alguém uma mácula, como se te fosse possível ver a alma, e por momentos perdi a fé em ti, julgando-te excedendo as competências conhecidas, duvidas que alinharam rugas na minha testa e te apressaste a desvanecer deixando-me ver, no Oftalmoscópio, o fundo do olho de um paciente, e lá estava, a oval amarelada da Mácula, dissipando a minha dúvida e garantindo a tua redenção, enquanto eu, maravilhado, ajuizava do tanto que não sabia e te guindava a um altar mais alto, perdão, digo patamar, confundes-me com a tua sabedoria de santa milagreira num altar que construi para ti, que me espantas desde a visão num jardim, rodeada de crianças de bibe, pasmando todos com a tua roda, o teu Disco de Newton, girando estonteante, e ficando tanto mais branco quanto mais depressa o giravas, ainda lembro tudo isso, o sol e o teu olhar meigo, a voz calma e timbrada avisando para os perigos que os nossos olhos corriam, e os cuidados a ter com eles, em especial evitar que nos enganem, sim eles, os nossos olhos, e que reparássemos no milagre do disco de Newton, parado, mostrando as lindas cores do arco íris, as mesmas que num outro milagre fazias sair fulgurantes de um prisma na tua mão, pelo que jamais te esqueci ou deixei de considerar e se agora teu aprendiz de feiticeiro devo-o a não mais ter abandonado a procura da verdade que me garantiste existir e desafiaste a descobrir.

Nunca foste para mim uma pedra no sapato, nem um espinho na carne, antes um argueiro no olho, forçando-me a ver e a ver claro até onde a mínima luz jamais estimularia um Bastonete, impeliste-me não só até ver a luz mas sobretudo que a procurasse com todos os Cones que a minha alma encerra e a paixão acicata.

Foste sempre um farol, um rumo, um caminho e um exemplo, e inda hoje procuro ver nos teus olhos, no fundo deles, com saudade e com carinho, a mesma meiguice e ternura que me marcaram o ritmo, a mesma acalmia que acomodou em mim a turbulência da juventude, a mesma confiança que me alimentou a esperança pelo tempo fora.

Sei que se te acabaram os milagres, e o teu olhar não alcançar mais que aquilo que o teu pensamento e as tuas lembranças autorizam, ainda uso a mesma água-de-colónia que me ofereceste naquele Natal em que comecei a barbear-me. Não será um beijinho na testa a fazer que me recordes, nem a mão no teu ombro agora tão frágil reconfortando-te, diz-me se precisares de alguma coisa, fraldas, um andarilho, sei que estás confusa mas acredito que ao ouvires-me me recordarás e àquele Lusitano X Juventude em que juntos gritámos e alimentámos uma tarde de discussão, por isso me despeço hoje como então:

- Amiga, isto de jogar é como viver, olho por olho…

- Dente por dente ! Respondeste tu minha cacaruça. *

 Saúde minha cacaruça, aguenta-te, e longa vida, adoro-te. 

* Cacaruço, ou cacaruça, calão atribuído aos adeptos do Juventude Sport Clube, Évora










quinta-feira, 13 de novembro de 2014

208 - ATIROU UM PAU AO GATO ...


Embrulhados no meu melhor sorriso dei-lhe uns bons dias calorosos, rematados por picardia :

- Olha o Margarido ! Vai trabalhar malandro, passas os dias no café.

e, claro, levei logo com uma resposta pronta que me coíbo de mencionar aqui. Todavia tomei lugar na mesa dele, este não é como o Martinho que à mínima piadola perde a compostura e ofende tudo e todos, a esse não lhe podem tocar no grelinho que não se atire logo ao ar, diz a malta dele, e é verdade.

Mal me sentei retrucou:

- Trabalhar para quê e para quem, dizes-me ?

Conhecemo-nos há anos, talvez desde gaiatos, na verdade nunca o vi trabalhar, ou era da oposição ou estava contra, e assim vivia, ou mesmo assim vivia, ou sobrevivia, e nisto, enfastiado, atirou um pau a um gato.

Aos poucos a mesa foi-se compondo e os últimos a chegar arrebanharam as cadeiras disponíveis afim de enfeitar a roda, a assembleia como diz o Amadeu. Mas o mote das conversas do dia estava dado, e o Margarido, que devia ter ficado remoendo na coisa, de vez em quando trazia-a à baila, ou seja de novo à tona da agenda. 

O tema tempo foi abordado por alto dado que o sol se confirmava, o que seria bom para o consumo e para a retoma, depois debruçámo-nos sobre a visita do PR a Borba e Vila Viçosa e reinámos com os políticos a quem recomendou fizessem os trabalhos de casa, coisa que ele mesmo aliás nunca estudara nem fizera, quando, exaltado, o Branco saltou em sua defesa alegando que ao PR, quando fora PM, lhe tinham feito a vida negra portanto teria agora direito a uma vingançazita, à boa moda portuguesa, e azucrinando a moleirinha às “forças de bloqueio”.

O Branco representa na roda o Portugal profundo, imbuído de uma filosofia empírica de arrepiar os cabelos, e a conversa só tomaria outro rumo quando o Teles chegou, coberto do pó das obras em casa e resmungando contra as mudanças nas chefias, e que se mal estávamos pior ficámos, que os diplomas nem sempre contavam, que o factor humano era muito importante, que nesse item, cruzes canhoto que a tipa que lá meteram agora é trinta vezes pior que a retirada, que mais parecia um zombie, que não via mais que um palmo à frente do nariz, mas que esta agora nem isso.

Metade do pessoal não descortinaria o desabafo do Teles não fora a alusão à zombie remeter-nos para a viúva do Euletério, foi então que a mesa se animou em excesso e as conversas se atropelaram em cambalhotas umas por sobre as outras.

Parece que o Euletério se fora desta para melhor sem pagar as dividas que por cá deixara, e muitas, sendo que, do apurado entre meias conversas e meias frases muita gente ali não se importaria caso fosse a viúva a pagá-las, preferencialmente em géneros, suposição que a maioria da roda partilhava e até aplaudia, pelo que o tema só terminaria, e bruscamente, quando chegou, toda sorridente, a mulher do Caetano, a quem ninguém ousava fazer frente, nem ele, tendo sido quanto bastou para que os cães parassem antes de por completo terem esfrangalhado a coitada da viúva.

Sim concordo, a precisar de apoio, sim concordo, a precisar de um ombro amigo, sim concordo era um desperdício deixada viúva tão cedo, sim concordo não mais que cinquenta quilos, sim concordo também gosto de violões, sim concordo não mais de cinquenta anos, sim concordo os amigos são para as ocasiões e não, não concordo ! Nem posso concordar ! Como é que raio tu, Margarido, que nunca fizeste nada na vida tens um crédito desse tamanho sobre o falecido Euletério ? Esperas que concorde contigo ? Acreditas que caia nessa ?

Nisto a Tv chamou a atenção para uma Gabriela ou Floribela ou Legionella, e todas as cabeças se viraram deixando em paz a viúva e a digníssima do Caetano, de quem se dizia todo aquele ar feliz não lho dever a ele, mas agora calo-me eu porque as conversas são como as cerejas e atrás de uma vai outra e nem toda a gente tem telhados de vidro ou esqueletos no armário.

E bem fiz eu em calar-me, porque acabou de entrar o tenente Emanuel, bota de cano alto, cabelo rapado à escovinha, boné da fardamenta entalado debaixo do braço o pingalim permanentemente açoitando a barriga da perna e olhando todos de cima, como habitualmente. 

                     Nem um só se desviou para lhe dar lugar, nunca ninguém o fez, ninguém o topa, contudo arrastou para o círculo uma qualquer cadeira e, antes que se sentasse todos se calaram, na presença dele sempre nos calámos. As conversas mudaram de temática automaticamente e assuntos de mulheres nem pensar, tudo porque a dita cuja do Emanuel é a única pessoa que ele não olha de cima, dizem as más-línguas ser ela sim quem por cima gosta de ficar e olhar-nos nos olhos. Serão afirmações de gente sem escrúpulos, sem vergonha, gente de má-língua e capaz de tudo.

E estávamos nisto quando todas as cabeças em redor da mesa se viraram como um cata vento ante a aproximação da viúva, cuja presença não deixava ninguém indiferente, o nosso tenente cofiou o bigode, alisou com a palma da mão os cabelos que não tinha, ajeitou o nó da gravata, desfez uma ruga de enxovalho nas calças e pressuroso ergueu-se airosamente oferecendo-lhe a cadeira e o lugar, ela declinou, não sem dar mostras de se sentir embevecida, a sabida…

- D. Guida queira perdoar-me a ausência no féretro mas sabe, o verão, operações stop dia sim dia sim, foi-me completamente impossível.

- Oh ! Não tem importância senhor tenente, de qualquer modo ele teria detestado ver qualquer um no seu funeral.

Com um sorriso matreiro deixou-o de monco caído, cadeira pendurada da mão, hesitante entre colocar uma cara séria ou rir-se da espirituosa resposta dela, e quando voltou a si toda a gente na mesa se tinha levantado debandando na mira do almoço, pelo que o nosso engatatão, que em casa diziam as más línguas, tinha falta de apetite ou passava fome, nem teve habilidade para responder ao Margarido que de boca aberta:

- Mas afinal trabalhar para quê e para quem, dizem-me ? Alguém me diz ?