sexta-feira, 4 de março de 2016

319 - EI-LOS QUE PARTEM, NOVOS E VELHOS… por Maria Luísa Baião * .................................................


Voltei lá porque em menina me pegavam ao colo e me mostravam os aviões, e quando mais tarde descobri que não era o meu tio José Alves da Silva quem chamava as libelinhas dos ares até se fazerem à pista cerrei os punhos e bati-lhe com eles no peito, enraivecida por me roubarem o mistério de tal magia.

Vagamente, mas lembro-me ainda de um vestidinho estampado, de chita, com bonequinhos e florzinhas apanhado em balão pela cintura, e das pessoas sorrindo, carregadas de malas, sacos, sacolas e talêgos, não consigo é recordar-me do que diziam, nem sequer do que me diziam, do que me disseram, recordo-as apenas felizes, sorridentes, beijos e abraços, por vezes lágrimas que nunca soube distinguir entre as de tristeza e as de alegria, lembro bem essas despedidas, cumprimentos, partidas, chegadas, se lembro, até da gare sempre em festa.

Eu calcorreava tudo, cantarolando e saltitando, conhecia tudo e todos me conheciam, não eram muitos, talvez vinte contando as fardas ou uniformes, uns carimbavam passaportes, trás, trás, o seguinte se faz favor, the next passenger to please, le prochain passager s'il vous plaît, qui suit, s'il vous plaît et bon voyage, bon vol, who follows, bienvenue à Faro, Algarve, Portugal, please and good flight, welcome to Faro, Algarve, Portugal, merci, thank you, 

só não me era permitido passar para a pista, pisar a tal risca amarela, e ao colo de meu tio José Alves ouvia e aprendia as primeiras palavras estrangeiras enquanto ele vigiava, os passaportes, os passageiros, os suores frios, os tremores, as hesitações, uma mala mais cheia, ou mais pesada, um gesto mais esquivo, um gaguejar, lembro uma senhora inglesa que falava sem parar e afinal só escondia na mantilha um pequenino cachorrinho e que até a deixaram levá-lo pois nem era proibido, nem vacinas tinha, já de lá para cá teria sido impossível embarcá-lo disse o meu tio entredentes e com um sorriso nos lábios para o senhor Armando que recebia os tickets, les billets, e carimbava os passaportes, 

in the Heathrow Airport nothinh happens, quipped my uncle for the English lady, who travels to London, smiling at him, que, ultrapassado o medo se calou e não mais deu um pio. Entretanto fui saltar à corda e saltitar, brincar à cabra cega com o Armandinho na areogare vazia.

Lá longe ouviam-se ronronar os motores dos Lockheed Super Constellations, eram lindos, sempre que um se aproximava para landing o meu tio pegava em mim e corria para a pista, adoráva-mos vê-los descer, por vezes havia muito vento e então borregavam, e nós encantados esperando até que eles finalmente landing, as pinturas metálicas, neste caso nem pintura, outras vezes brilhantes, as riscas longas e lindas a todo o comprimento, o moinho das hélices rodando rodando antes de pararem de vez.

No ano seguinte comecei a distingui-los, os da Ibéria, os nossos, da TAP, os da Lufthansa, da Air France, da KLM, e nesse ano a minha tia fez-me umas calças como as que usavam algumas hospedeiras da BEA quando estavam de licença, e algumas turistas trazidas pela PANAM, eu envaidecida pois fui a primeira a usar calças em todo o Algarve e arredores, senti mesmo um orgulho em mim como só voltaria a sentir em meados desse ano ao fazer o exame da quarta classe. Ainda as lembro, azulinhas escuras com um bolso no peitilho onde a minha tia Felismina bordara um aviãozinho muito lindo e sorridente, os suspensórios eram debruados ou ponteados num verde contrastante que se via ao longe fazendo com que não coubesse em mim de contente.

Quando fiz o exame para técnica, lá pelos meus dezassete anos a tia Mina e o tio José Alves ofereceram-me uma viagem à escolha, Paris or London, e o tio Zé aplicava-se nas horas extras pois já lhe faltavam poucas para acumular as frequent flyer miles que lhe dariam direito aos nossos tickets, uma qualquer regalia lá do trabalho dele. 

Foi nesse ano que a Carol Burns da BOAC me ofereceu o seu chapeuzinho vermelho e fez com que eu mesma sonhasse ser hospedeira, e na verdade sonhei mesmo com isso, depois veio o 25 de Abril, o meu tio ficou sem emprego e foi obrigado a emigrar, a minha tia retirou-se para a casa na serra e eu fui estudar para Lisboa onde se viam já os jactos Caravelle soprando e planando sobre a cidade. Formei-me em fisioterapia, dediquei-me à luta, à revolução, a apoiar o nosso povo e ainda tenho o chapeuzinho vermelho da Carol que guardo numa caixinha com muito amor e carinho e junto aos tickets que me levariam a London or Paris quando somassem as tais mil frequent flyer miles estipuladas. 

Depois do último exame meti-me num táxi e ainda cheguei a tempo e horas ao aeroporto para me despedir do tio José Alves que migrava para os USA, a tia Mina chorava, a gare de departures era triste, ela estava triste, nunca mais presenciei arrivées or departures alegres, felizes, com gentes em festa, aos beijos e abraços, cantando e dançando, e claro que aviões não são libelinhas, perderam a graça, a magia, tornaram-se um monte de problemas, uma teimosia politica, um negócio nada rentável pago sobretudo por quem nem sequer voa, Joaninha avoa avoa…

Só já os vejo na Tv, ei-los que partem uma vez mais, desta estão tristes, muito tristes, carimbam os passaportes calados, chorosos, acabrunhados, revoltados, e tudo me parece mudo como num filme antigo, ninguém diz suivant, next passenger, prochain passager, merci, please, thank you, s'il vous plaît, 

sorriem apenas, sorrisos em silicone de cor fúxia como diz o meu marido, as máquinas piscando luzinhas, varando as malas e recolhendo imagens do seu interior, é outra magia, portais por onde a fila passa para outra dimensão, tire o cinto por favor, a carteira se tiver moedas deixe também o porta moedas, caminhe devagar, isqueiros não, líquidos não, só o indispensável, e sonhos, sonhos pode ter, mas só para levar, não para usar aqui, não para ter aqui, mas pode levar os que entender e desejar, 

espreitei, nenhum Zé Alves, tudo automático, tudo informático, nem cãezinhos, nem Armandos nem Armandinhos, nem pistas, nem riscas nem risquinhos, não consigo lobrigar nada já, nem há landings nem planes up à vista, nem borregagens, é tudo lá longe, perfeito, cronometrado, contrafeito, sem efeito em nós, e penso de mim para mim,

- Olha que, com efeito …

* Publicado por Maria Luísa Baião em 3 de Março de 2016 - in; https://www.facebook.com/notes/maria-luisa-baiao/ei-los-que-partem-novos-e-velhos-/1242760425738081




EI-LOS QUE PARTEM

Ei-los que partem
novos e velhos
buscando a sorte
noutras paragens
noutras aragens
entre outros povos
ei-los que partem
velhos e novos

Ei-los que partem
de olhos molhados
coração triste
e a saca às costas
esperança em riste
sonhos dourados
ei-los que partem
de olhos molhados

Virão um dia
ricos ou não
contando histórias
de lá de longe
onde o suor
se fez em pão
virão um dia
ou não…

Letra e música de Manuel Freire



quarta-feira, 2 de março de 2016

318 - A TINA, EU E POLANYI NO MERCADO..........



Polanyi de seu nome, penou as passinhas do Algarve e correu seca e meca durante os seus setenta e oito anos de vida. Simpatizante de ideias socialistas, revolucionárias no tempo em que viveu, esses tempos não foram rosas senhor, fora obrigado a fugir para Inglaterra por ser judeu, donde pulou para os EUA, aí professando até eu ter nascido, mais concretamente na Universidade de Columbia. De regresso à sua Hungria natal mal teve tempo de matar saudades, morreu comemorava eu os meus onze anos, sempre fiel a si mesmo e à sua visão do marxismo, que estudou a fundo, ou não se chamasse Karl, não Karl Marx, nem Karl Bond, Karl somente. Karl Polanyi.

Em, certa medida fui seu contemporâneo, pelo menos até aos meus onze anitos, com a diferença que todo um mundo nos separava, ele já então sabia tudo, e por isso se tornou perigoso. Eu, que não sabia nada e cuja ignorância e estupidez, inofensivas para todos que não eu, vivi, foi-me permitido viver, longe de, a seu exemplo, contestar as teorias económicas que faziam furor, moda, e se tornavam lei num mundo que a América tinha vencido, subjugado, um mundo em que a vitória colocou nas suas mãos todos os despojos e todos os direitos, adquiridos e por adquirir, incluindo os do passado e do porvir.

Com a sua parca participação na IGG e as vantagens daí arrebanhadas os EUA acordaram de um torpor secular e bocejavam ainda quando, contra sua aparente vontade, se viram bafejados com o envolvimento na IIGG, que haveria de provocar a explosão das suas indústrias (não das suas fábricas) e do sistema e centro financeiro de Wall Street que se tornou de dimensão mundial.

Ao contrário do “orgulhosamente sós” do nosso salazarento Salazar, a América foi compelida a abraçar o mundo, para além do dispositivo militar que entretanto entretecera em redor do globo, herdou de mão beijada as possessões do velho império vitoriano da GB e nunca mais teve mãos a medir. Talvez um dia se faça ou se publique a história do minuto em que, para pagar à América as suas dívidas de guerra, a GB lhe entregou tudo de mão beijada e numa salva de prata, de posses a possessões e entrepostos por todo o mundo, a uma dívida colossal que acabou de pagar somente há meia dúzia de anos, e de milhares ou milhões de patentes e descobertas ou avanços no campo cientifico, que chutaram a América para os píncaros e remeteram a GB para o fim da fila. Assistindo a tudo isto Wernher von Braun sorria e coçava com uma varinha, que metia entre o gesso, o braço que tinha partido.

Como se não bastasse a apropriação material do globo, a nível teórico e na esteira de David Ricardo, Adam Smith, Quesnay, Keynes, Milton Friedman e Hayek, as teorias económicas foram perfilhadas por este mundo cuja imagem os EUA delineavam em bloco, contra Karl Marx e o seu pensamento teórico dialéctico e, naturalmente contra o bloco oposto, o soviético, onde uma tentativa profunda do marxismo se tentava (tentou) pôr em prática.

Neste contraditório caldo de cultura entre dois blocos nada mais tinha permissão ou ordem para sobreviver, tendo sido devido a esse abstruso planeta que o pensamento económico teórico de Polanyi não teve lugar, de um lado apertado pela ditadura conceptual de mercado que se instalava, do outro empurrado derivado do facto de nele não existirem mercados mas apenas factores de produção de um só dono, estatizados. Num mundo criado assim não admira que, como diz e muito bem Jean-Pierre Lebrun: "O homem contemporâneo não saiba o que é desejar, saiba só o que é consumir".

O pensamento de Polanyi, o primeiro que gritou bem alto por liberdade, é muito fácil de resumir, defende ele que milhares de anos de história humana haviam criado a necessidade de trocas, necessidade de uma economia incipiente e gerida por reis e senhores, submetida a normas e regras que essas dinastias, realezas ou senhores definiam, regras claras que até o conjunto de anciãos de um qualquer clã ou tribo estabeleceria para uma vivência harmoniosa, sendo a partir delas que a economia se processava, não ousando expandir o seu caudal para fora dessas margens ou desse leito. O “homem, ou os homens” ordenavam e comandavam, o que do ponto de vista antropológico, sociológico, psicológico, da história económica, da teoria económica e da epistemologia não pode ser contraditado, a lei dos homens comandava as trocas, o comércio, a economia, o mercado ou os mercados. Não existia para Polanyi uma esfera económica separada da sociedade, e eram ainda motivos humanos, mais que humanos, a ditar a lei à qual os mercados deviam obediência, a que tinham que sujeitar-se.

Hoje sabemos como é, ou como são as coisas, e sim, é verdade que existe interdependência e competição entre produtores, entre fornecedores, entre empresas, entre países, nos preços, nas economias, mas o seu reconhecimento não obriga ao jugo do jogo dos seus resultados, das suas interdependências, das suas competições e que passaram a dominar o “homem”, a dar-lhe ordens, a submetê-lo, é a célebre T.I.N.A. de que tanto temos ouvido falar nos últimos tempos. TINA, acrónimo do inglês para There Is No Alternative (em português, 'Não há alternativa'

Claro que há e sempre houve e haverá alternativas, enquanto país Portugal nem seria um bom exemplo para este texto ou este caso, falhámos o mais básico bom senso governativo, demos o flanco, as costas e o cu, e queixamo-nos que nos caíram em cima. Não soubemos criar nem manter nem sequer defender os centros de decisão nacionais e agora tudo desaba, tudo se transforma em centros de destruição nacional, somos tacanhos e desajeitados, incompetentes e irresponsáveis, amaldiçoamos tudo em que tocamos ou em que nos metemos, é a TAP, é o NOVO BANCO, são os milhares de lesados dos vários bancos e os dez milhões de lesados dos desgovernos que há quarenta anos nos lixam devido a uma ignorância extrema, a uma falta de cultura confrangedora e abissal e que, como uma vez mais se confirma no caso do despedimento de mais 1.000, mil de uma assentada, não sabem resolver um problema, solucionar uma equação, fazer uma projecção, alinhavar uma previsão, tentando enfiar no momento e com os pés uma linha numa agulha e, cereja no topo, vem o presidente do sindicato dos trabalhadores do fisco exigir que se acabe com o sigilo fiscal, talvez temendo pelos seus ordenados ao fim do mês, pois o levantamento desse sigilo devia ter sido exigido há mais de trinta anos, e o que o país precisa neste momento não é de mais mecanismos sanguessuga, mas sim que se trabalhe, que se invista, se produza, se mobilize tudo e todos à volta de verdades tão comezinhas quanto a necessidade de trabalhar, trabalharmos todos, mas nisso ninguém pega, ninguém apregoa ou exige, não dá votos...

Passamos o tempo a criticar os mercados que sim, que tomaram uma dimensão supra humana que já Polanyi denunciava e criticava, mas cometemos todos os erros e mais alguns dos que os mercados agradecem e passamos a vida a discutir o acessório, enquanto o essencial vai ficando para as calendas gregas. Criticamos a sociedade de mercado, a economia de mercado, esquecendo que para lhe sobreviver ou poder ditar-lhe leis não podemos sucumbir, precisamos de força, de argumentos, de trunfos na manga, de independência, de ser vencedores, alguns povos são-no, conseguem-no, por que não nós ? Irracionalmente, nós portugueses preferimos deixarmo-nos “comer” pelos famigerados mercados, pelas desumanas leis dos mercados, a pior delas o medo da fome ou a esperança do lucro, e depois queixamo-nos de ser uns deserdados da sorte…

Não defendo que nos deixemos conduzir exclusivamente por motivos materialistas, mas que não os ignoremos, eles existem, e esfolam, e matam, é essa a lógica absurda dos mercados que, por causa da dívida nos sugam até à exaustão o que conduz à incapacidade de pagarmos a dita dívida.

A racionalidade dos “mercados” está inquinada, terá que ser o “homem”, a sociedade, a mandar neles e não o contrário, é essa a posição que Polanyi defendeu cedo e a horas, e com unhas e dentes já lá vão setenta anos e pela qual o calaram... Os mercados não têm olhos nem alma, o homem sim, e a voz de Polanyi era tanto mais inconveniente quanto mais os mercados se implantavam a nível mundial. Essencialmente após a IIGG a teoria económica ou as várias teorias, instalaram-se de armas e bagagens aproveitando o vazio critico deixado pelos pensadores existentes, ou sobreviventes, e estabeleceu-se como que uma conspiração hipercrítica dos que reivindicavam a moral ou o primado da acção politica, cujas forças definharam permitindo o avanço cego do efeito cilindrante da concepção conceptual (desculpai-me a redundância) das teorias e leis económicas dos mercados, perante as quais a justiça, a liberdade e a lei claudicam cada vez mais tornando-se insipidas.

Ora das sociedades antigas faziam parte a justiça, a liberdade e a lei, que agora perdem força ante o avanço inexorável das leis dos “mercados”, inumanas, impessoais e cegas, pondo em causa desde tempos imemoráveis o fim último dos estados, o qual deve ser a defesa da rectidão e da justiça, da liberdade, e nunca a protecção dos anónimos ou identificados interesses económicos que se escondem por trás da aparência dinâmica ou moderna mas depredadora dos mercados cuja mão, visível ou invisível, vai muito além da manutenção de uma economia saudável.  

Tenho para mim que o homem é um animal racional do mais irracional que há, e nesse particular estou mais próximo de Thomas Hobbes que de Carl Menger, Portugal tem que encontrar alternativa à T.I.N.A. e tem que se tornar um estado tal qual Hobbes o preconizava em 1651 no seu célebre “Leviatã”; “os estados precisam de um poder absoluto que evite que os humanos se destrocem uns aos outros como uma alcateia de lobos famintos”. Salazar, e talvez Marcelo, o Caetano, sabiam isto, os de agora não sabem nada de nada… Temos que gritar liberdade como Polanyi, mas para isso temos também que nos desfazer do peso do passado, das dívidas, dos preconceitos, da ignorância e da estupidez… 

(e tu que achas Pacheco ??? :D :D :D kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk)

Pintura de Alon Gabbay




domingo, 21 de fevereiro de 2016

317 - O MAOISTA IGNORANTE…….....….…………


Devo confessar-vos ter sido maoista durante os meus anos de PREC, mas o grave é que fui maoista muito antes de saber o que era o maoismo. Quer dizer, fui enquanto a Magda por lá andou, depois dela fugir para a Albânia com o Lucas, que pintava os cartazes e as faixas para as manifs da UDP, com o desgosto deixei de aparecer por lá. Quando terminei a licenciatura em História não estava nem mais nem melhor informado a respeito do maoismo, e durante muitos anos procurei colmatar essa falha, esse óbice, mas a literatura disponível ou era inexistente ou deixava muitíssimo a desejar. O fervor ou ardor ideológico foi-me arrefecendo com o tempo, e durante muito dele, tempo, votei indiferentemente ou usei o designado voto útil, o país ia andando, não dava cuidados de maior a ninguém, e “tudo parecia ir bem no reino da Dinamarca”.

Contudo, todavia mas porém eu sabia haver um livrinho muito bom, um Best Seller mundial saído em França e traduzido em Portugal em 1975, “Quando a China Despertar” mas cuja edição eu deixara esgotar, pelo que o máximo que ia conseguindo saber sobre o camarada Mao e a “Grande Marcha”, ou o “Grande Salto em Frente” e até em relação ao movimento do “Desabrochar de Cem Flores” ou à “Revolução Cultural” provinha de panfletos e brochuras laudatórias sem o mínimo de credibilidade. Não havia internet e as publicações estrangeiras raramente se viam à venda em Évora, além disso já andava enrolado com outra esquerdista, por sinal engraçadinha, a Luisinha (com quem casei porque quis seus malandrecos), e naturalmente todo o tempo era para namorar, e era pouco. Finalmente em 1991 uma obra espectacular correu mundo e foi igualmente editada entre nós, tratava-se de uma autobiografia de Jung Chang, intitulada “Cisnes Selvagens” e que devorei como um sedento, ou antes bebi como um faminto.

A obra da chinesinha Jung Chang, que vendeu em todo o mundo mais de dez milhões de cópias só no primeiro ano, e cujos olhos de amêndoa eram iguais aos da Luisinha, conta a história de três gerações duma família chinesa, a sua, e retrata a vida da China do século 20 através da vivência de três gerações de mulheres que passaram por situações de luxo e de extrema pobreza, de alegrias e tristezas profundas, de dor e de luta, abarcando precisamente os períodos cuja carência vos confessara, em especial o último, o da “Revolução Cultural”, e foi para mim uma alegria e um sobressalto, tendo sido devorada num ápice.


Mas porque a sede ou era velha ou era muita não me satisfiz. A obra, que abarca os tais períodos importantíssimos da história da China e da vida de Mao Tsé Tung, ambas se confundem, a história da China e a vida de Mao, estava extraordinariamente bem escrita, bem fundamentada e melhor documentada mas não respondia ao essencial. Tal obra, Os Cisnes Selvagens, relatam, descrevem minuciosa e exemplarmente a história da China do séc. XX, e com especial cuidado a historiografia do período da “Revolução Cultural”, agora designado na história da China como o período ou “Tempo da Libertação”, mas fica-se práticamente pela descrição clarissíma da sua galeria de horrores.

A descrição desse período é absurdamente impressionante, e não fora eu entretanto já estar familiarizado com o “preço” da Grande Marcha, em que só chegaram ao fim um em cada sete dos homens que a tinham iniciado, embora ao longo dos doze mil quilómetros percorridos, a pé, a ela tenham afluído muitas mais gentes. Para termo de comparação dir-vos-ei que a Muralha da China tem pouco mais de 20 mil quilómetros, e a distância de Lisboa a Paris ronda os 2 mil. Foi considerada uma derrota, que saiu cara a Mao a Grande Marcha, mas contribuiu substancialmente para a vitória do Exército Vermelho que, como sabemos ganhou a guerra que permitiu fundar a República Popular da China. Dizia eu que se não estivesse familiarizado com os custos sofridos pelos chineses teria ficado em dúvida. O chamado Grande Salto em Frente saldara-se por milhões de mortos, à fome (30 milhões, os chineses eram por essa época 750 milhões e actualmente quase o dobro), o Desabrochar de Cem Flores tivera o resultado contrário ao pretendido, e a Revolução Cultural um sucesso que se saldara aos nossos olhos de ocidentais por um saldo medonho, em dimensão e profundidade cuja violência e absurdo dificilmente compreenderemos. Contudo na sua obra, Jung Chang limita-se à descrição / contestação / condenação.

Essa obra, que não deixo de recomendar-vos, por muito completa que seja não explica o móbil, a origem, o porquê, a necessidade dessa revolução cultural (cultural em termos antropológicos e sociológicos e não literatos ou académicos) violentamente despropositada, disparatada e ignominiosa, pelo que ainda que muito melhor informado a minha curiosidade, já não a adesão ou o abraço ideológico, continuaram por muito tempo, assim como durante bastante tempo eu mantive a confusão, nem tanto em relação ao Marxismo, pois o que eu não compreendia eram as diferenças que opunham o Maoismo ao Leninismo, e em especial ao Estalinismo, pois elas nunca me surgiam claras.

Alain Peyrefitte, o autor de “Quando a China Despertar” atribui a explicação clarificadora a uma confidência que lhe fora feita por Chou En-lai em conversa informal durante um jantar diplomático e segundo o qual o marxismo / comunismo soviético teria um caracter estático, enquanto Mao Tsé Tung procurava imprimir ao comunismo chinês uma dialéctica dinâmica imparável e renovadora. Isto terá sido em 1972 num jantar oferecido pela embaixada francesa em Pequim a 14 de Julho, sabemos hoje de que lado estava a razão, pois a queda do muro de Berlin e o inquestionável êxito do comunismo chinês, um pais dois sistemas, não deixam lugar a dúvidas (Página 95 da obra citada no início do §), sobretudo agora que estamos melhor informados graças à Prémio Nobel bielorrussa Svetlana Alexievich, com “O Fim do Homem Soviético - Um Tempo de Desencanto”, cuja edição portuguesa saiu na Porto Editora, tendo sido considerado o melhor livro do ano pela revista literária francesa Lire.


Naturalmente as minhas leituras acerca das ideologias que animaram e animam a nossa história continuaram ao longo de anos, com falhas que sempre procurei colmatar pois não queria continuar o maoista ignorante que fora em jovem, ou melhor o ignorante que fora, mas evitando atingir o ponto crítico em que, não lembro já a quem a citação pertence, “ comunista é aquele que lê Marx, anticomunista aquele que o compreende”, entendo que se não nos podemos deixar levar por paixões, então ainda menos pela ignorância. Ao longo destes quarenta anos procurei livros que me formassem e informassem, a minha saga, a minha demanda nunca parou, sempre com a ajuda da Luisinha, de quem os meus saudosos pais disseram um dia:

- A Luisinha fez do meu Berto um Homem…

sempre em busca das respostas cuja ignorância me incomodava, em busca da verdade que se me tornou um vício mas que também é um direito que nos assiste, este sim justamente adquirido, o direito à verdade e que há quarenta anos todos pisam ou todos escondem, com as nefastas consequências que daí advieram e todos conhecemos e estamos pagando com um palmo de língua fora.

Mas voltando ao tal livrinho muito bom, o tal Best Seller mundial saído em França e traduzido em Portugal em 1975, “Quando a China Despertar” que eu perseguira durante quarenta anos, devo admitir tê-lo deixado fugir nos anos do PREC por inexperiência minha, excesso de confiança pois pensei que não se acabariam, desleixo, por ter muita literatura para ler e por ter pensado que o teria quando eu quisesse e me apetecesse, e luxúria, mas isso é outra história, e com final feliz. Claro que me enganei redondamente e nunca mais consegui encontrá-lo, nunca foi reeditado. Finalmente há umas seis ou sete semanas encontrei-o num alfarrabista de Torres Novas ! Sorri de orelha a orelha e já não o larguei ! Foi meu logo ali por 36 euros, uma pechincha ! O tipo nem sabia a raridade nem o valor da obra ! Foi e é um best seller ! Já me deitei a ele ! Mas, perguntar-se-ão vocês, porque raio vem este caramelo com esta conversa chata e de merda para aqui ? Uma das respostas que obtive levaram-me a uma comparação da situação chinesa com a portuguesa, e vai daí quero deixar aqui o alerta para o perigo que corremos ao não dar saída ou solução a problemas que arrastamos há quarenta anos sem coragem para os resolver.


 Mao Tsé Tung fê-lo de uma forma peculiar, e sob a capa de uma revolução cultural revolucionou hábitos ancestrais e burocracias imperiais que a revolução comunista não lograra vencer ou mudar, tudo quanto eram interesses instalados, lóbis de pressão, mentalidades arcaicas, burocratas, reaccionários, revisionistas, comodistas, oposicionistas, inclusive dentro do próprio partido, tudo o que fosse estático e ameaçasse o avanço da revolução comunista chinesa, e havia bastantes entraves colocados até por gente do aparelho e dentro do próprio partido, tudo que constituísse obstáculo ou resistência à mudança, tudo isso foi varrido pelo tsunami da “Grande Revolução Cultural Proletária” cujos guardas,de braçadeira vermelha, os guardas vermelhos, contaram sempre com o apoio explícito do camarada Mao, que anteriormente tudo tentara para mudar a China mas que esbarrara sempre com a imobilidade interesseira existente em quaisquer sociedades, em especial numa milenar, como a chinesa… Não por acaso esse conturbado período é agora designado na história da China como o período ou “Tempo da Libertação”.

Pois ao meditar sobre as forças de bloqueio que travam este país já me tenho lembrado se estaremos à espera que uma guerra civil, de uma fome generalizada ou duma revolução cultural à moda chinesa, pois qualquer delas, não deixando de ser uma calamidade, seria certamente libertadora. Já tenho imaginado o que seria se pusessem uma braçadeira vermelha a cada jovem que emigrou e a cada desempregado e os mandassem pedir contas a quem nos colocou nesta situação de merda em que nos atolaram, e já me ri ao imaginar os nossos responsáveis negando ante esses jovens “guardas da revolução” a sua responsabilidade na coisa, ou jurando-lhes não se lembrarem de nada tal qual fazem nas Comissões Parlamentares de Inquérito. Já estou a ver os jovens guardas da revolução a encaminhá-los para campos de reeducação forçando-os a severas autocríticas ou obrigando-os a viver com 500 euros por mês. É que neste país onde todos penam ninguém tem culpa de nada e se algo acontece certamente já estará há muito referenciado, porém nunca acautelado nem prevenido. Talvez então as coisas mudassem de vez e radicalmente e não como habitualmente, em que tudo muda para ficar tudo na mesma.

Pensai nisso..........................


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

316 - DESPOVOAMENTO E REGIONALIZAÇÃO …



Estas duas últimas semanas foram em cheio. Para qualquer lado que me virasse a retórica era sempre a mesma, até a Micas que, dando-me com um qualquer jornal na cara, modo de expressão claro, me atirou:

- Ponha aí os olhos senhor professor (eu fora professor de um enteado seu, seu dela, não dela) oito por dia ! oitenta em dez dias, oitocentos em 3 meses, três mil e duzentos por ano, 32.000 em dez anos ! Mas os meus impostos sobem mais que os da gasolina apesar de me afugentarem os clientes isso ninguém vê !

Evidentemente a revoltada referia-se ao seminário da Associação Alentejo de Excelência,* que decorrerá a 25 de Fevereiro sobre a temática do abandono e desertificação do Alentejo e de que um jornal Elvense faz alarde.**

E ainda eu não me recompusera desta surpresa encontro a Floripes na padaria, que não me esfregou outro jornal na cara por não o ter ali à mão mas que estava zangada estava, e que usava e abusava dos resultados das reflexões da Cáritas Diocesana e dos Salesianos, coincidentes no diagnóstico da situação do país, “continua a haver miséria e não cessam os pedidos de apoio” gritava a Cáritas, enquanto a outra se mostra agradecida a todos quantos ao longo dos anos permitiram, com as suas dádivas e o seu mecenato manter de pé a obra Salesiana, pelo menos foi o que li posteriormente no cabeçalho dum jornal local.

- Aqui temos, um país inteiro rendido, dedicado e virado para a miséria ! Está encontrado o grande desígnio nacional ! 

Realmente fica-se sem resposta, pois nunca será por muito lhe acudir que a miséria desaparecerá. Ao longo dos últimos quarenta anos os portugueses foram bem enganados por demagogos e deixaram-se conduzir para o cadafalso sem um pio, tal qual os cristãos para a arena há quase dois mil anos.

Talvez conscientes disso não existam hoje municípios que não dediquem especial atenção à sua área social, atacando os sintomas mas esquecendo as causas, outros lembram as causas embora as escondam, e vêm agora criar parques tecnológicos, parques e centros de inovação, ninhos de incubação de empresas, agremiações de ciência e tecnologia, todos virando-se para as empresas, para as pequenas e medias empresas, para a juventude, camuflando ou disfarçando uma vez mais a verdade, e a verdade é que esse esforço devia ter sido iniciado há trinta ou quarenta anos atrás, pois demorará outros trinta ou quarenta anos a surtir efeito e a reflectir-se no tecido social e económico o que, portanto, deve atirar as esperanças neles depositadas lá para o ano de 2050, se ainda houver alentejanos e portugueses por essa época, isto é se não tiverem já emigrado todos.

Aos jornais que há décadas têm aplaudido o poder local enquanto grande empregador deveríamos deitar fogo, o poder local que se encheu de funcionários e que agora todos nós temos que alimentar é o mesmo que abafou e atrofiou a economia local, essa sim a que poderia produzir e criar riqueza, empregos duráveis, sustentáveis, mas a quem a burocracia a politiquice e a cegueira travaram, combateram e mataram.

Os alentejanos e os portugueses não abalam, não emigram por gosto ou por prazer, fazem-no porque as nossas esclarecidas elites, as que nos governam, a nível local regional e central o fizeram com a barriga, com os pés, mas nunca com a cabeça, se é que a têm. O despovoamento do Alentejo e do país, a miséria em que Portugal caiu não é um azar, não é uma inevitabilidade, é sim uma causa da acção desses senhores, desses democratas tão demagogos quão ignorantes, porém cheios de certezas e ainda mais de arrogância.

Palavra de honra que, se vir um dia à minha frente um kosovar o mato, ou não serão eles os culpados do nosso miserabilismo ? Toda esta miséria que sobreleva em Portugal mais não é que a ascensão da ignorância de um povo e dos seus líderes, a mesma ignorância que sataniza Salazar e diviniza Humberto Delgado, nem um era o diabo nem o outro o herói que nos querem fazer crer. Uma vez mais manipulam-nos, mentem-nos, enganam-nos, não fosse a ignorância deste povo tão grande e jamais se atreveriam, fruto de uma péssima educação, outra coisa que não aconteceu por acaso…

As fatalidades que nos atingem não são obra do acaso, têm nome, ou melhor, têm nomes, e têm uma extensa lista deles de há quarenta anos para cá, fossem colocados ou inscritos num monumento e lá estariam os nomes de todos os nossos presidentes da república, de todos os ministros, de todos os secretários e subsecretários de estado, deputados, reguladores e gestores públicos, presidentes, vice-presidentes e vereadores dos trezentos e tal municípios que pululam que nem cogumelos inúteis por todo o país apesar de tão pequeno. Uma lista a que há que acrescentar todos quantos se calaram, de directores gerais e outros boçais a militares e economistas, de papistas a seminaristas…

Desde ignorantes a presidentes de república é um nunca mais acabar de nomes em lindas letras de reluzente bronze, destacando-se no negro do granito monumental onde julgam viver. Cada região, ou mesmo todo o país, que é tão pequeno como muitas das regiões da Europa, nunca teve nem nunca terá um Plano A, quanto mais um Plano B, como a UE exige, e bem. Somos artistas do improviso, mas o improviso teve a sua época alta lá pelos séculos XV e XVI, pelo que andamos ligeiramente atrasados. Mas no entretanto o que fizémos com a mais bem preparada geração da nossa história  ? Atirámo-la borda fora, como no tempo dos descobrimentos se fazia com os revoltosos e os párias...

Como costumo dizer não passamos de dez milhões de atrasados mentais, pense cada um o que quiser. A obra de todos, de todos aqueles que têm o nome gravado no triste e negro monumento está à vista, um Portugal de treta, ou de pechisbeque, que nos envergonha e condiciona, que nos torna escravos e condenados. Querem melhor exemplo da gigantesca fraude que essa lista nos legou ?  Portugal é bem o espelho e a prova da iluminada ignorância de uns tantos. O próximo lance ? A regionalização.

A regionalização será a última desculpa / justificação que nos apresentarão como milagreira para colmatar a penúria de resultados dos últimos quarenta anos. Ainda haverá quem acredite nisso ? Haverá quem acredite que um pequeno país, que de uma pequena região não passa, vá encontrar nessa micro-divisão a bola de cristal que busca sem proveito há tantos anos ? Não, serão só os demagogos incompetentes e irresponsáveis que se agarrarão a esta última tábua de salvação para tentar explicar o inexplicável, nessa altura não serão somente aldrabões, serão também mentirosos, trapaceiros, flibusteiros e marinheiros que tudo farão para alcançarem a sua própria salvação…

Creiam-me, para satisfazer clientelas, muitos defenderão a regionalização deste pequeno país, ele mesmo e já por si uma pequena, depauperada, explorada e triste região…


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Vá lá, ao menos riam e alegrem-se :D 

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

315 - RÁDIO, OS DIAS DA RÁDIO .............................


         Não sem alguma razão a minha amiga Floripes deu-me hoje um sermão. Não foi o sermão da montanha não, foi antes um responso perante a minha cruel insensibilidade, e o pior de tudo foi ter vindo acompanhado de uma piada maliciosa, susceptível de ferir terceiros e contra a qual me insurgi de imediato, infelizmente com pior resultado que o pretendido e de que logo me arrependi pois ela atirou-me:

- Pois pois, mas se fosse para comprares o livro do Banana no Quiosque Primavera até te babarias como um cão, nem que tivesses que esperar seis meses em pé numa fila…

um mordaz desabafo dito por ela numa injusta e soez alusão ao facto de eu pagar a simpatia da Micas com mais simpatia ainda, e para além disso por lhe comprar no quiosque, para a minha netinha, os volumes do “Diário de Um Banana”, que já vão na 10ª ou 15ª série… quiosque ao lado do qual ela passava sempre ao largo ou se obrigava a mudar de passeio...

Uma piadola descabelada daquelas não me atinge só a mim, mas também a Micas do Quiosque Primavera, a alegria da avenida, uma simpatiquíssima matrona cuja graça há-de superar sempre a da Floripes, demasiado séria para o meu gosto e que passa a vida colocando na rádio discos como Um Amor Impossível, O Meu Amor é Um Sonho, Um Dia Quero Ser Tua, e outros do mesmo jaez, para depois me vir perguntar se ouvi o programa dela naquela manhã, ao que eu invariavelmente faço orelhas moucas, ou ouvidos de mercador e respondo ter perdido a manhã na bicha das finanças para pagar o imposto de selo do carro ou o IMI.

Esclareça-se que a Floripes é radialista, tem um programa musical matinal, e aposto que adoraria que eu lhe ligasse um dia para o programa pedindo-lhe um disquinho, do género Acordar Ao Teu Lado É o Meu Sonho… claro que não o farei, sou homem de princípios, fiel a mim mesmo e à companheira que escolhi e não vai ser uma Floripes qualquer a dar-me a volta por muito que ela gostasse de o fazer.

Há uns três quinze dias a Floripes pedira-me que escrevesse algo sobre a rádio cujo dia mundial se comemoraria a 13 de Fevereiro, mas eu, que tudo que a Floripes diga arquivo na pasta “Aguas de Bacalhau”, esquecera-me completamente. Vem daí o seu recente azedume e ressentimento para comigo, porém não o fiz propositadamente, esqueci-me mesmo, e vou tentar emendar a mão dando-lhe esse prazer ainda que fora do prazo, até por eu mesmo ter algumas ligações fortes à rádio, coisa de que nem só a infeliz Marie Curie (1) se pode gabar, ou antes lamentar, o que terá sido o caso…

São mui antigas as minhas ligações à rádio, lembro-me da minha avó Bernarda (2) ter o que na época se chamava “Galena” (3), com a qual me seduzia e entretinha girando um botão, enquanto me pedia que colasse a ela o ouvido, isto é, que ficasse atento.

- Escuta esta, Sidney, deve ser a Rádio Antípodas, falam muito mas passam pouca música.

e eu ia “vendo” o mundo rodar à medida que ela girava o botão, como quem rodopia nas mãos um globo terrestre, pelo que cedo me familiarizei com os tangos argentinos e os pasodobles espanhóis, as rumbas cubanas e o samba brasileiro, e, numa noite estrelada, milagre dos milagres, deitados os dois numa esteira estendida no quintal olhando as estrelas, repentinamente ela:

- Olha ali Bertito ! Ali vai ele ! Vês aquele pontinho brilhante entre aquelas estrelas e voando de este para oeste ? 

entre nós um rádio numa cadência matemática, bip bip bip (4) anunciando novos mundos ao mundo e calando em Nova Iorque os Blues, o Jazz e o Charleston, que nessa noite a avó Bernarda não conseguia sintonizar ou ouvir de modo nenhum. Minha avó Bernarda era telegrafista mas amava a rádio, coisa que por magia dispensava os fios, chegava mais longe, mais depressa e até os americanos do Check Point Charlie (9) a usaram para namoriscar e seduzir, aliciando através dela os comunas do outro lado da cortina de ferro a que viessem viver para o paraíso. Hoje, ultrapassada que está a guerra fria, sabemos que o paraíso, ou o inferno, moram de ambos os lados e vivem em conúbio.

Depois destas experiências, que jamais esquecerei, a minha ligação à rádio estreitou-se ainda mais quando o meu mano comprou e levou lá para casa um pequeno transístor, daqueles com que os japoneses inundaram o planeta e que todo o dia cantarolava não havendo pilhas que chegassem, sobretudo depois dele, mano, me ter ensinado a captar a “Radio Caroline” (4), uma emissora de radio europeia que iniciou as transmissões em 28 de Março de 1964, a partir de um barco ancorado em águas internacionais ao largo da costa de Felixstowe, Suffolk, Inglaterra, e que sem licença durante a maior parte da sua existência, foi etiquetado como emissora pirata. Contudo transmitia músicas proibidas, actuais, actualíssimas, e de top. Fez história essa rádio porque sobre ela a Grã Bretanha não conseguia actuar por falta de jurisdição. Foi a partir da Rádio Caroline que conheci os Beatles (10) antes de todos e antes de eu mesmo saber quão famosos eles seriam, tal como foi a partir dessa rádio que me apaixonei pela música e intérprete Sandie Shaw, cuja canção me ficou no goto, “Puppet On A String, traduzido em Portugal como O Amor é Como Um Carrocel” (5), intérprete que partilhava uma peculiar característica, cantava descalça e tinha uns pés lindos, vi-os eu na televisão, e quem sabe se talvez daí a minha perdição por pezinhos, (6) a psicologia dá voltas inimagináveis e Freud já baqueou há bué da time…

Eu era demasiado novo para me aperceber da força da rádio e de como e a quem ela, rádio, atirava para o estrelato, a minha sensibilidade para tal começou ao ouvir falar da Guerra Dos Mundos (7) e de Orson Welles, ou de como nalguns países tiveram oportunidade de se tornarem fulcrais e terem até feito parte da resistência aos nazis durante a II Grande Guerra. O fenómeno Tv sim, acompanhei-o e apercebi-me claramente de que os Beatles (10), por muito bons que fossem, e eram, jamais teriam alcançado o sucesso que conseguiram sem os prodígios que a Tv permite e da sua divulgação a nível mundial, outros deverão os seus sucessos à rádio, mas como disse eu era novo demais e foi coisa que me escapou, peço-vos perdão.

Embora com falhas a minha ligação à rádio recrudescia, a partir de certa data passei a ser vizinho de uma, salvo erro a “Meridional”, onde ainda participei com uns programas de história a convite do amigo Liberato, rádio que nem sei para que meridiano emigrou. Todavia passei também a falar com outros amigos que tinha e tenho na rádio, ainda não fazia rádio, mas falava com eles, que faziam, até que o Espírito Santo me convidou e o Barrigoto me cedeu um espaço no programa dele, na “Rádio Jovem” e onde eu durante dois ou três anos todas as segundas feiras reproduzia oralmente uma crónica que pela minha mão saíra nesse mesmo dia num jornal da urbe. Mas confesso-vos, não gostava de me ouvir apesar da Floripes e tantas outras, começando pela Luisinha, ficarem presas pelo beicinho mal eu começava a falar. Tenho uma pronúncia acentuada e ainda por cima alentejana, e detesto ouvir-me a mim mesmo. Custa-me acreditar como há quem me ache graça ou tenha gosto em ouvir-me. 

Isto já depois do 25A de 74, porque antes disso a minha ligação à rádio se reforçaria às escondidas do poder, que desafiávamos em fins de 73 ouvindo a voz do poeta oriunda de Argel, pela “Rádio Voz da Liberdade” e encafuados num automóvel velho abandonado no Largo dos Penedos ao lado do portão da Carpintaria Braguês. Eu, o meu saudoso amigo Rosa, infelizmente já não entre nós, eu, ele, dois ou três outros compinchas e a Pimpinela Escarlate, que nunca cheguei a perceber se era ou não namorada dele e que eu assim baptizara por ela usar uma capa que a fazia parecer um espadachim. Namorada ou não marmelada haveria, pois sempre que nós entrávamos no bólide havia nítidos resquícios de cheiros pairando no ar, o mais forte deles nem era de ganzas, ao que se somariam os nítidos vestígios de roupas em desalinho e que eles tentavam atrapalhadamente disfarçar. Com o 25 de Abril a Pimpinela desapareceu, desapareceu o bólide do chaço velho onde nos acoitávamos, e desapareceu o poeta que contudo voltámos a ouvir já transformado em burguês e gozando os favores do poder, que eu saiba, esse poeta além de ter passado a viver a nossas expensas, nada mais vi fazer na vida que se aproveitasse, deixou até cair o nosso mundo no mesmo ou num pior buraco do que aquele que, quando de Argel nos ladrava, nos exortava a que não caíssemos. Um cão esse poeta, um cão como nós (8) que fomos na conversa dele…

Tal como o poeta, que nos abandonou, o paizinho a partir de certa altura também nos deixou à nossa sorte, quer dizer à sorte da rádio, e não mais nos levou ao coreto do jardim ouvir a banda da GNR aos Domingos, passámos a ouvir na rádio a Valsa do Danúbio Azul e outros concertos directamente, como se estivéssemos nos camarotes da ópera de Viena. Nem sei porque não gosta a Floripes de música sinfónica…