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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

316 - DESPOVOAMENTO E REGIONALIZAÇÃO …



Estas duas últimas semanas foram em cheio. Para qualquer lado que me virasse a retórica era sempre a mesma, até a Micas que, dando-me com um qualquer jornal na cara, modo de expressão claro, me atirou:

- Ponha aí os olhos senhor professor (eu fora professor de um enteado seu, seu dela, não dela) oito por dia ! oitenta em dez dias, oitocentos em 3 meses, três mil e duzentos por ano, 32.000 em dez anos ! Mas os meus impostos sobem mais que os da gasolina apesar de me afugentarem os clientes isso ninguém vê !

Evidentemente a revoltada referia-se ao seminário da Associação Alentejo de Excelência,* que decorrerá a 25 de Fevereiro sobre a temática do abandono e desertificação do Alentejo e de que um jornal Elvense faz alarde.**

E ainda eu não me recompusera desta surpresa encontro a Floripes na padaria, que não me esfregou outro jornal na cara por não o ter ali à mão mas que estava zangada estava, e que usava e abusava dos resultados das reflexões da Cáritas Diocesana e dos Salesianos, coincidentes no diagnóstico da situação do país, “continua a haver miséria e não cessam os pedidos de apoio” gritava a Cáritas, enquanto a outra se mostra agradecida a todos quantos ao longo dos anos permitiram, com as suas dádivas e o seu mecenato manter de pé a obra Salesiana, pelo menos foi o que li posteriormente no cabeçalho dum jornal local.

- Aqui temos, um país inteiro rendido, dedicado e virado para a miséria ! Está encontrado o grande desígnio nacional ! 

Realmente fica-se sem resposta, pois nunca será por muito lhe acudir que a miséria desaparecerá. Ao longo dos últimos quarenta anos os portugueses foram bem enganados por demagogos e deixaram-se conduzir para o cadafalso sem um pio, tal qual os cristãos para a arena há quase dois mil anos.

Talvez conscientes disso não existam hoje municípios que não dediquem especial atenção à sua área social, atacando os sintomas mas esquecendo as causas, outros lembram as causas embora as escondam, e vêm agora criar parques tecnológicos, parques e centros de inovação, ninhos de incubação de empresas, agremiações de ciência e tecnologia, todos virando-se para as empresas, para as pequenas e medias empresas, para a juventude, camuflando ou disfarçando uma vez mais a verdade, e a verdade é que esse esforço devia ter sido iniciado há trinta ou quarenta anos atrás, pois demorará outros trinta ou quarenta anos a surtir efeito e a reflectir-se no tecido social e económico o que, portanto, deve atirar as esperanças neles depositadas lá para o ano de 2050, se ainda houver alentejanos e portugueses por essa época, isto é se não tiverem já emigrado todos.

Aos jornais que há décadas têm aplaudido o poder local enquanto grande empregador deveríamos deitar fogo, o poder local que se encheu de funcionários e que agora todos nós temos que alimentar é o mesmo que abafou e atrofiou a economia local, essa sim a que poderia produzir e criar riqueza, empregos duráveis, sustentáveis, mas a quem a burocracia a politiquice e a cegueira travaram, combateram e mataram.

Os alentejanos e os portugueses não abalam, não emigram por gosto ou por prazer, fazem-no porque as nossas esclarecidas elites, as que nos governam, a nível local regional e central o fizeram com a barriga, com os pés, mas nunca com a cabeça, se é que a têm. O despovoamento do Alentejo e do país, a miséria em que Portugal caiu não é um azar, não é uma inevitabilidade, é sim uma causa da acção desses senhores, desses democratas tão demagogos quão ignorantes, porém cheios de certezas e ainda mais de arrogância.

Palavra de honra que, se vir um dia à minha frente um kosovar o mato, ou não serão eles os culpados do nosso miserabilismo ? Toda esta miséria que sobreleva em Portugal mais não é que a ascensão da ignorância de um povo e dos seus líderes, a mesma ignorância que sataniza Salazar e diviniza Humberto Delgado, nem um era o diabo nem o outro o herói que nos querem fazer crer. Uma vez mais manipulam-nos, mentem-nos, enganam-nos, não fosse a ignorância deste povo tão grande e jamais se atreveriam, fruto de uma péssima educação, outra coisa que não aconteceu por acaso…

As fatalidades que nos atingem não são obra do acaso, têm nome, ou melhor, têm nomes, e têm uma extensa lista deles de há quarenta anos para cá, fossem colocados ou inscritos num monumento e lá estariam os nomes de todos os nossos presidentes da república, de todos os ministros, de todos os secretários e subsecretários de estado, deputados, reguladores e gestores públicos, presidentes, vice-presidentes e vereadores dos trezentos e tal municípios que pululam que nem cogumelos inúteis por todo o país apesar de tão pequeno. Uma lista a que há que acrescentar todos quantos se calaram, de directores gerais e outros boçais a militares e economistas, de papistas a seminaristas…

Desde ignorantes a presidentes de república é um nunca mais acabar de nomes em lindas letras de reluzente bronze, destacando-se no negro do granito monumental onde julgam viver. Cada região, ou mesmo todo o país, que é tão pequeno como muitas das regiões da Europa, nunca teve nem nunca terá um Plano A, quanto mais um Plano B, como a UE exige, e bem. Somos artistas do improviso, mas o improviso teve a sua época alta lá pelos séculos XV e XVI, pelo que andamos ligeiramente atrasados. Mas no entretanto o que fizémos com a mais bem preparada geração da nossa história  ? Atirámo-la borda fora, como no tempo dos descobrimentos se fazia com os revoltosos e os párias...

Como costumo dizer não passamos de dez milhões de atrasados mentais, pense cada um o que quiser. A obra de todos, de todos aqueles que têm o nome gravado no triste e negro monumento está à vista, um Portugal de treta, ou de pechisbeque, que nos envergonha e condiciona, que nos torna escravos e condenados. Querem melhor exemplo da gigantesca fraude que essa lista nos legou ?  Portugal é bem o espelho e a prova da iluminada ignorância de uns tantos. O próximo lance ? A regionalização.

A regionalização será a última desculpa / justificação que nos apresentarão como milagreira para colmatar a penúria de resultados dos últimos quarenta anos. Ainda haverá quem acredite nisso ? Haverá quem acredite que um pequeno país, que de uma pequena região não passa, vá encontrar nessa micro-divisão a bola de cristal que busca sem proveito há tantos anos ? Não, serão só os demagogos incompetentes e irresponsáveis que se agarrarão a esta última tábua de salvação para tentar explicar o inexplicável, nessa altura não serão somente aldrabões, serão também mentirosos, trapaceiros, flibusteiros e marinheiros que tudo farão para alcançarem a sua própria salvação…

Creiam-me, para satisfazer clientelas, muitos defenderão a regionalização deste pequeno país, ele mesmo e já por si uma pequena, depauperada, explorada e triste região…


* https://www.facebook.com/Alentejo.de.Excelencia/photos/a.290513174327592.64626.290493907662852/1014260725286163/?type=3&theater


Vá lá, ao menos riam e alegrem-se :D 

quarta-feira, 29 de julho de 2015

260 - ALL THE ALLENTEJO .......................................

               
              No momento em que, sem hesitações lhe espetaram o facalhão na garganta eu arrepiei-me, e, ainda que a faca não tenha sido enfiada até ao cabo o sangue jorrava em golfadas, e arrepiei-me de novo ao sentir rodarem a faca, como se fosse em mim que a forçavam, arrepiei-me uma terceira vez quando a faca, digo o facalhão, foi retirado e atrás dele mais sangue jorrou ainda, esguichava-lhe e escorria-lhe pelo pescoço quando o meu pai lhe procurou o buraco da primeira facada com os dedos aí introduzindo outro facalhão, de lâmina brilhante e muito mais larga que a primeira, havia que alargar o golpe e sangrá-la depressa.

A tudo isto eu assistia encostado à parede, melhor, colado à parede, enquanto ela gemia, já só gemia, estrebuchara imenso, mas dois homens fortes tinham-lhe colocado os joelhos na barriga para se firmarem e agarraram-lhe com denodo os membros bem atados. O pior tinha sido a atrapalhação do meu pai, mangas arregaçadas, o suor ensopando-lhe a testa, fácies tenso deixando antever os dentes, pequeninos, as mãos pingando sangue, escorrendo sangue, gritando aos homens, ordens curtas, precisas, um último grunhido, minha mãe aparando o sangue num alguidar de barro, a avó Inácia doseando o sal para que não coagulasse, coalhasse ou a rechina não sairia boa, a tia Aia picando a salsa e os alhos para a parte destinada a coalhar e a ser cortada em cubos miudinhos e transformada num petisco.

Homens acudiram à forquilha e aos tojos que, ardendo musgariam a marrã a fim de, com raspadeiras improvisadas lhe retirarem as cerdas, o lume foi chegado às patas e os cascos arrancados fumegantes, eu e outros miúdos lutámos por eles para lhes roermos o sabugo, a marrã inteiriçada, depois lavada até ficar luzidia, dependurada em dois postes atados em X e aberta, os intestinos caindo no chão, as miudezas aventadas para outro alguidar e
repentinamente perdem-se-me as recordações, por que raio não sou capaz de lembrar quem eram os outros gaiatos se era com eles que eu brincava, e tanto que eu brinquei, sumiram-se-me as lembranças, só as recupero em casa, a salgadeira aberta, mantas de toucinho, a perna para presunto pintada com pimentão e colorau, punhados de sal, cheiro a pimentão, muito pimentão na carne, e lá vou eu com a tia Aia p’ra casa da avó Inácia pois em dias assim só atrapalharia e nem vagar havia, nem vagar nem ninguém para tomar conta de mim.

Um dia seria destemido como o meu pai, destemido e convencido, o melhor e mais rápido a matar e abrir porcos no Alentejo, onde por enquanto somente brincava mas a cuja magia me estava habituando, descobrindo e deslumbrando, até com os mimos que me prodigalizavam todos quantos me rodeavam, especialmente a avó Inácia e a tia Aia.

Tantas vezes me disseram ser o Alentejo impar que acabei acreditando, os pais, os avós, tias e tios, até a avó Inácia, com quem em miúdo passava longos períodos de férias na aldeia. A tia Aia também me fizera acreditar em tal, e seria injusto esquecê-la.

Sou extrovertido, e confiante, diria que demasiado confiante (até há quem diga que sou um convencido), talvez por ter nascido aqui, nesta terra de xisto e fragas lascadas, de espaços abertos e campos extraordinariamente iluminados, amplos, resplandecentes, melhor dizer reverberantes se quiser ser fiel à memória da tia Aia, ela chamava-lhe a marca da terra.

A tia Aia colocava marcas em tudo, desconhecia a gramática, nunca ouvira falar de adjectivos, tinha contudo um modo muito próprio de catalogar o mundo, eu, por exemplo, nunca fui só Berto, eu era o Bertinho querido umas vezes e o Bertinho lindo outras, tal como as flores das giestas no campo não eram somente bonitas, eram celestialmente bonitas pois Deus decerto as quisera diferentes de todas as outras, e para melhor.

Já provaram vocês o mel alentejano de abelhas que sobretudo se alimentem destas flores de giesta e esteva ? E já repararam como em relação aos demais o gosto é desigual, para melhor ? Repararam como nem coalha no inverno ? O único que não coalha ? A tia Aia tinha razão, Deus colocou uma marca no Alentejo, aliás várias marcas, até o perfume dessa flor não se limitava a ser agradável, ele era, na tabela da tia Aia, indelevelmente agradável e inesquecivelmente inolvidável.

Custa-nos crer como neste cenário de horizontes largos o homem se deixou aprisionar durante séculos, custa-me aceitar que não tenham partido daqui todas as revoluções, não aceito que a submissão, que o cante alentejano tão bem exprime seja ainda hoje uma das nossas marcas, porque aqui, nestes campos lindos e que, como adjectivaria a tia Aia, luxuriantes, onde a ausência de solidariedade campeia, a única coisa que, mau grado o paredão de Alqueva parece não se deixar submeter é a natureza, que, alheia à luta dos homens se renova em cada primavera e, ao contrário de nós, gente, humanos, prima por manter ainda a diferenciação do carácter das suas estações bem marcado, ao invés do indígena, que aos poucos e em quarenta anos se transformou num camaleão gelatinoso, ou, como diria a tia Aia, em lindíssimos e gelatinosos camaleões, inda que sendo bichinhos que ela, que jamais saíra daqui, vez alguma tivesse visto.

Visto ou ouvido, estas vastas terras aplanam a alma e injectam nos seres vírus de bonomia, estado anímico que a tia Aia, sempre mexendo, adjectivaria de letargia, no que pacificamente lhe concedo toda a razão. Aqui o tempo não anda para a frente, não avança, regride, olhemos as nossas vilas aldeias e cidades e comprovemo-lo, um paraíso perdido, um vazio no tempo que nem Einstein previra mas que agora, mentes brilhantes, vendem aos turistas em pacotinhos de fins de semana, disso se encarregarão os operadores turísticos e para tal a GenuineLand preparou os nativos alentejanos cujo céu, livre de poeiras e fumos, vendemos em pastilhas  de noites de breu com um sabor estrelado através da Dark Sky Alqueva.

A novidade aqui passa só e somente por essas adjectivadas e exageradas promoções, os publicitários sempre foram excessivos, e não o foram ou são somente com este Alentejo, lugar onde procuram, ou alguém força, estabelecer novas tradições com mais rapidez que aquela com que enterram as velhas. Pôr em pé o misticismo Endovélico no Alandroal, obrigar-nos a todos a olhar o balão como pategos no Dark Sky, ou tentar tapar o buraco que a desertificação abriu na peneira com o projecto GenuineLand, embasbacando perante as centenas de empregos, milhares de empregos que estas coisas geram, tá-se mesmo vendo, é andar brincando com o Alentejo.

Brinca-se no Alentejo e no país, agora até promovem e homenageiam quem mais brinca.

Brincalhões …

Foto 1 – A arma usada na matança.
Foto 2 – Monsaraz no horizonte.
Foto 3 - O horizonte visto de Monsaraz.
Foto 3 – Afloramentos de xisto perto da ribeira de Lucefecit.