sexta-feira, 4 de março de 2016

319 - EI-LOS QUE PARTEM, NOVOS E VELHOS… por Maria Luísa Baião * .................................................


Voltei lá porque em menina me pegavam ao colo e me mostravam os aviões, e quando mais tarde descobri que não era o meu tio José Alves da Silva quem chamava as libelinhas dos ares até se fazerem à pista cerrei os punhos e bati-lhe com eles no peito, enraivecida por me roubarem o mistério de tal magia.

Vagamente, mas lembro-me ainda de um vestidinho estampado, de chita, com bonequinhos e florzinhas apanhado em balão pela cintura, e das pessoas sorrindo, carregadas de malas, sacos, sacolas e talêgos, não consigo é recordar-me do que diziam, nem sequer do que me diziam, do que me disseram, recordo-as apenas felizes, sorridentes, beijos e abraços, por vezes lágrimas que nunca soube distinguir entre as de tristeza e as de alegria, lembro bem essas despedidas, cumprimentos, partidas, chegadas, se lembro, até da gare sempre em festa.

Eu calcorreava tudo, cantarolando e saltitando, conhecia tudo e todos me conheciam, não eram muitos, talvez vinte contando as fardas ou uniformes, uns carimbavam passaportes, trás, trás, o seguinte se faz favor, the next passenger to please, le prochain passager s'il vous plaît, qui suit, s'il vous plaît et bon voyage, bon vol, who follows, bienvenue à Faro, Algarve, Portugal, please and good flight, welcome to Faro, Algarve, Portugal, merci, thank you, 

só não me era permitido passar para a pista, pisar a tal risca amarela, e ao colo de meu tio José Alves ouvia e aprendia as primeiras palavras estrangeiras enquanto ele vigiava, os passaportes, os passageiros, os suores frios, os tremores, as hesitações, uma mala mais cheia, ou mais pesada, um gesto mais esquivo, um gaguejar, lembro uma senhora inglesa que falava sem parar e afinal só escondia na mantilha um pequenino cachorrinho e que até a deixaram levá-lo pois nem era proibido, nem vacinas tinha, já de lá para cá teria sido impossível embarcá-lo disse o meu tio entredentes e com um sorriso nos lábios para o senhor Armando que recebia os tickets, les billets, e carimbava os passaportes, 

in the Heathrow Airport nothinh happens, quipped my uncle for the English lady, who travels to London, smiling at him, que, ultrapassado o medo se calou e não mais deu um pio. Entretanto fui saltar à corda e saltitar, brincar à cabra cega com o Armandinho na areogare vazia.

Lá longe ouviam-se ronronar os motores dos Lockheed Super Constellations, eram lindos, sempre que um se aproximava para landing o meu tio pegava em mim e corria para a pista, adoráva-mos vê-los descer, por vezes havia muito vento e então borregavam, e nós encantados esperando até que eles finalmente landing, as pinturas metálicas, neste caso nem pintura, outras vezes brilhantes, as riscas longas e lindas a todo o comprimento, o moinho das hélices rodando rodando antes de pararem de vez.

No ano seguinte comecei a distingui-los, os da Ibéria, os nossos, da TAP, os da Lufthansa, da Air France, da KLM, e nesse ano a minha tia fez-me umas calças como as que usavam algumas hospedeiras da BEA quando estavam de licença, e algumas turistas trazidas pela PANAM, eu envaidecida pois fui a primeira a usar calças em todo o Algarve e arredores, senti mesmo um orgulho em mim como só voltaria a sentir em meados desse ano ao fazer o exame da quarta classe. Ainda as lembro, azulinhas escuras com um bolso no peitilho onde a minha tia Felismina bordara um aviãozinho muito lindo e sorridente, os suspensórios eram debruados ou ponteados num verde contrastante que se via ao longe fazendo com que não coubesse em mim de contente.

Quando fiz o exame para técnica, lá pelos meus dezassete anos a tia Mina e o tio José Alves ofereceram-me uma viagem à escolha, Paris or London, e o tio Zé aplicava-se nas horas extras pois já lhe faltavam poucas para acumular as frequent flyer miles que lhe dariam direito aos nossos tickets, uma qualquer regalia lá do trabalho dele. 

Foi nesse ano que a Carol Burns da BOAC me ofereceu o seu chapeuzinho vermelho e fez com que eu mesma sonhasse ser hospedeira, e na verdade sonhei mesmo com isso, depois veio o 25 de Abril, o meu tio ficou sem emprego e foi obrigado a emigrar, a minha tia retirou-se para a casa na serra e eu fui estudar para Lisboa onde se viam já os jactos Caravelle soprando e planando sobre a cidade. Formei-me em fisioterapia, dediquei-me à luta, à revolução, a apoiar o nosso povo e ainda tenho o chapeuzinho vermelho da Carol que guardo numa caixinha com muito amor e carinho e junto aos tickets que me levariam a London or Paris quando somassem as tais mil frequent flyer miles estipuladas. 

Depois do último exame meti-me num táxi e ainda cheguei a tempo e horas ao aeroporto para me despedir do tio José Alves que migrava para os USA, a tia Mina chorava, a gare de departures era triste, ela estava triste, nunca mais presenciei arrivées or departures alegres, felizes, com gentes em festa, aos beijos e abraços, cantando e dançando, e claro que aviões não são libelinhas, perderam a graça, a magia, tornaram-se um monte de problemas, uma teimosia politica, um negócio nada rentável pago sobretudo por quem nem sequer voa, Joaninha avoa avoa…

Só já os vejo na Tv, ei-los que partem uma vez mais, desta estão tristes, muito tristes, carimbam os passaportes calados, chorosos, acabrunhados, revoltados, e tudo me parece mudo como num filme antigo, ninguém diz suivant, next passenger, prochain passager, merci, please, thank you, s'il vous plaît, 

sorriem apenas, sorrisos em silicone de cor fúxia como diz o meu marido, as máquinas piscando luzinhas, varando as malas e recolhendo imagens do seu interior, é outra magia, portais por onde a fila passa para outra dimensão, tire o cinto por favor, a carteira se tiver moedas deixe também o porta moedas, caminhe devagar, isqueiros não, líquidos não, só o indispensável, e sonhos, sonhos pode ter, mas só para levar, não para usar aqui, não para ter aqui, mas pode levar os que entender e desejar, 

espreitei, nenhum Zé Alves, tudo automático, tudo informático, nem cãezinhos, nem Armandos nem Armandinhos, nem pistas, nem riscas nem risquinhos, não consigo lobrigar nada já, nem há landings nem planes up à vista, nem borregagens, é tudo lá longe, perfeito, cronometrado, contrafeito, sem efeito em nós, e penso de mim para mim,

- Olha que, com efeito …

* Publicado por Maria Luísa Baião em 3 de Março de 2016 - in; https://www.facebook.com/notes/maria-luisa-baiao/ei-los-que-partem-novos-e-velhos-/1242760425738081




EI-LOS QUE PARTEM

Ei-los que partem
novos e velhos
buscando a sorte
noutras paragens
noutras aragens
entre outros povos
ei-los que partem
velhos e novos

Ei-los que partem
de olhos molhados
coração triste
e a saca às costas
esperança em riste
sonhos dourados
ei-los que partem
de olhos molhados

Virão um dia
ricos ou não
contando histórias
de lá de longe
onde o suor
se fez em pão
virão um dia
ou não…

Letra e música de Manuel Freire