Devo
confessar-vos ter sido maoista durante os meus anos de PREC, mas o grave é que
fui maoista muito antes de saber o que era o maoismo. Quer dizer, fui enquanto
a Magda por lá andou, depois dela fugir para a Albânia com o Lucas, que pintava
os cartazes e as faixas para as manifs da UDP, com o desgosto deixei de
aparecer por lá. Quando terminei a licenciatura em História não estava nem mais
nem melhor informado a respeito do maoismo, e durante muitos anos procurei
colmatar essa falha, esse óbice, mas a literatura disponível ou era inexistente
ou deixava muitíssimo a desejar. O fervor ou ardor ideológico foi-me
arrefecendo com o tempo, e durante muito dele, tempo, votei indiferentemente ou
usei o designado voto útil, o país ia andando, não dava cuidados de maior a
ninguém, e “tudo parecia ir bem no reino da Dinamarca”.
Contudo,
todavia mas porém eu sabia haver um livrinho muito bom, um Best Seller mundial saído
em França e traduzido em Portugal em 1975, “Quando a China Despertar” mas cuja
edição eu deixara esgotar, pelo que o máximo que ia conseguindo saber sobre o
camarada Mao e a “Grande Marcha”, ou o “Grande Salto em Frente” e até em
relação ao movimento do “Desabrochar de Cem Flores” ou à “Revolução Cultural” provinha
de panfletos e brochuras laudatórias sem o mínimo de credibilidade. Não havia
internet e as publicações estrangeiras raramente se viam à venda em Évora, além
disso já andava enrolado com outra esquerdista, por sinal engraçadinha, a
Luisinha (com quem casei porque quis seus malandrecos), e naturalmente todo o
tempo era para namorar, e era pouco. Finalmente em 1991 uma obra espectacular
correu mundo e foi igualmente editada entre nós, tratava-se de uma autobiografia
de Jung Chang, intitulada “Cisnes Selvagens” e que devorei como um sedento, ou
antes bebi como um faminto.
A
obra da chinesinha Jung Chang, que vendeu em todo o mundo mais de dez milhões de
cópias só no primeiro ano, e cujos olhos de amêndoa eram iguais aos da
Luisinha, conta a história de três gerações duma família chinesa, a sua, e
retrata a vida da China do século 20 através da vivência de três gerações de mulheres
que passaram por situações de luxo e de extrema pobreza, de alegrias e
tristezas profundas, de dor e de luta, abarcando precisamente os períodos cuja
carência vos confessara, em especial o último, o da “Revolução Cultural”, e foi
para mim uma alegria e um sobressalto, tendo sido devorada num ápice.
Mas
porque a sede ou era velha ou era muita não me satisfiz. A obra, que abarca os
tais períodos importantíssimos da história da China e da vida de Mao Tsé Tung,
ambas se confundem, a história da China e a vida de Mao, estava extraordinariamente bem escrita, bem fundamentada e
melhor documentada mas não respondia ao essencial. Tal obra, Os Cisnes Selvagens, relatam,
descrevem minuciosa e exemplarmente a história da China do séc. XX, e com
especial cuidado a historiografia do período da “Revolução Cultural”, agora
designado na história da China como o período ou “Tempo da Libertação”, mas
fica-se práticamente pela descrição clarissíma da sua galeria de horrores.
A
descrição desse período é absurdamente impressionante, e não fora eu entretanto
já estar familiarizado com o “preço” da Grande Marcha, em que só chegaram ao
fim um em cada sete dos homens que a tinham iniciado, embora ao longo dos doze
mil quilómetros percorridos, a pé, a ela tenham afluído muitas mais gentes. Para
termo de comparação dir-vos-ei que a Muralha da China tem pouco mais de 20 mil
quilómetros, e a distância de Lisboa a Paris ronda os 2 mil. Foi considerada
uma derrota, que saiu cara a Mao a Grande Marcha, mas contribuiu
substancialmente para a vitória do Exército Vermelho que, como sabemos ganhou a
guerra que permitiu fundar a República Popular da China. Dizia eu que se não
estivesse familiarizado com os custos sofridos pelos chineses teria ficado em
dúvida. O chamado Grande Salto em Frente saldara-se por milhões de mortos, à
fome (30 milhões, os chineses eram por essa época 750 milhões e actualmente
quase o dobro), o Desabrochar de Cem Flores tivera o resultado contrário ao
pretendido, e a Revolução Cultural um sucesso que se saldara aos nossos olhos
de ocidentais por um saldo medonho, em dimensão e profundidade cuja violência e
absurdo dificilmente compreenderemos. Contudo na sua obra, Jung Chang limita-se
à descrição / contestação / condenação.
Essa
obra, que não deixo de recomendar-vos, por muito completa que seja não explica
o móbil, a origem, o porquê, a necessidade dessa revolução cultural (cultural
em termos antropológicos e sociológicos e não literatos ou académicos) violentamente
despropositada, disparatada e ignominiosa, pelo que ainda que muito melhor informado
a minha curiosidade, já não a adesão ou o abraço ideológico, continuaram por
muito tempo, assim como durante bastante tempo eu mantive a confusão, nem tanto
em relação ao Marxismo, pois o que eu não compreendia eram as diferenças que
opunham o Maoismo ao Leninismo, e em especial ao Estalinismo, pois elas nunca
me surgiam claras.
Alain
Peyrefitte, o autor de “Quando a China Despertar” atribui a explicação clarificadora
a uma confidência que lhe fora feita por Chou En-lai em conversa informal
durante um jantar diplomático e segundo o qual o marxismo / comunismo soviético
teria um caracter estático, enquanto Mao Tsé Tung procurava imprimir ao
comunismo chinês uma dialéctica dinâmica imparável e renovadora. Isto terá sido
em 1972 num jantar oferecido pela embaixada francesa em Pequim a 14 de Julho,
sabemos hoje de que lado estava a razão, pois a queda do muro de Berlin e o inquestionável
êxito do comunismo chinês, um pais dois sistemas, não deixam lugar a dúvidas (Página
95 da obra citada no início do §), sobretudo agora que estamos melhor
informados graças à Prémio Nobel bielorrussa Svetlana Alexievich, com “O Fim do
Homem Soviético - Um Tempo de Desencanto”, cuja edição portuguesa saiu na Porto
Editora, tendo sido considerado o melhor livro do ano pela revista literária
francesa Lire.
Naturalmente
as minhas leituras acerca das ideologias que animaram e animam a nossa história
continuaram ao longo de anos, com falhas que sempre procurei colmatar pois não
queria continuar o maoista ignorante que fora em jovem, ou melhor o ignorante
que fora, mas evitando atingir o ponto crítico em que, não lembro já a quem a
citação pertence, “ comunista é aquele que lê Marx, anticomunista aquele que o
compreende”, entendo que se não nos podemos deixar levar por paixões, então
ainda menos pela ignorância. Ao longo destes quarenta anos procurei livros que
me formassem e informassem, a minha saga, a minha demanda nunca parou, sempre
com a ajuda da Luisinha, de quem os meus saudosos pais disseram um dia:
- A
Luisinha fez do meu Berto um Homem…
sempre em busca das
respostas cuja ignorância me incomodava, em busca da verdade que se me tornou
um vício mas que também é um direito que nos assiste, este sim justamente adquirido,
o direito à verdade e que há quarenta anos todos pisam ou todos escondem, com
as nefastas consequências que daí advieram e todos conhecemos e estamos pagando
com um palmo de língua fora.
Mas
voltando ao tal livrinho muito bom, o tal Best Seller mundial saído em França e
traduzido em Portugal em 1975, “Quando a China Despertar” que eu perseguira
durante quarenta anos, devo admitir tê-lo deixado fugir nos anos do PREC por
inexperiência minha, excesso de confiança pois pensei que não se acabariam, desleixo,
por ter muita literatura para ler e por ter pensado que o teria quando eu
quisesse e me apetecesse, e luxúria, mas isso é outra história, e com final feliz.
Claro que me enganei redondamente e nunca mais consegui encontrá-lo, nunca foi
reeditado. Finalmente há umas seis ou sete semanas encontrei-o num alfarrabista
de Torres Novas ! Sorri de orelha a orelha e já não o larguei ! Foi meu logo
ali por 36 euros, uma pechincha ! O tipo nem sabia a raridade nem o valor
da obra ! Foi e é um best seller ! Já me deitei a ele ! Mas, perguntar-se-ão
vocês, porque raio vem este caramelo com esta conversa chata e de merda para
aqui ? Uma das respostas que obtive levaram-me a uma comparação da situação
chinesa com a portuguesa, e vai daí quero deixar aqui o alerta para o perigo
que corremos ao não dar saída ou solução a problemas que arrastamos há quarenta
anos sem coragem para os resolver.
Mao Tsé Tung fê-lo de uma forma peculiar, e sob
a capa de uma revolução cultural revolucionou hábitos ancestrais e burocracias
imperiais que a revolução comunista não lograra vencer ou mudar, tudo quanto
eram interesses instalados, lóbis de pressão, mentalidades arcaicas,
burocratas, reaccionários, revisionistas, comodistas, oposicionistas, inclusive
dentro do próprio partido, tudo o que fosse estático e ameaçasse o avanço da
revolução comunista chinesa, e havia bastantes entraves colocados até por gente
do aparelho e dentro do próprio partido, tudo que constituísse obstáculo ou
resistência à mudança, tudo isso foi varrido pelo tsunami da “Grande Revolução
Cultural Proletária” cujos guardas,de braçadeira vermelha, os guardas vermelhos, contaram sempre com o apoio explícito do
camarada Mao, que anteriormente tudo tentara para mudar a China mas que
esbarrara sempre com a imobilidade interesseira existente em quaisquer
sociedades, em especial numa milenar, como a chinesa… Não por acaso esse
conturbado período é agora designado na história da China como o período ou
“Tempo da Libertação”.
Pois
ao meditar sobre as forças de bloqueio que travam este país já me tenho
lembrado se estaremos à espera que uma guerra civil, de uma fome generalizada
ou duma revolução cultural à moda chinesa, pois qualquer delas, não deixando de
ser uma calamidade, seria certamente libertadora. Já tenho imaginado o que
seria se pusessem uma braçadeira vermelha a cada jovem que emigrou e a cada
desempregado e os mandassem pedir contas a quem nos colocou nesta situação de
merda em que nos atolaram, e já me ri ao imaginar os nossos responsáveis
negando ante esses jovens “guardas da revolução” a sua responsabilidade na
coisa, ou jurando-lhes não se lembrarem de nada tal qual fazem nas Comissões
Parlamentares de Inquérito. Já estou a ver os jovens guardas da revolução a
encaminhá-los para campos de reeducação forçando-os a severas autocríticas ou obrigando-os
a viver com 500 euros por mês. É que neste país onde todos penam ninguém tem
culpa de nada e se algo acontece certamente já estará há muito referenciado,
porém nunca acautelado nem prevenido. Talvez então as coisas mudassem de vez e radicalmente
e não como habitualmente, em que tudo muda para ficar tudo na mesma.
Pensai
nisso..........................