quarta-feira, 10 de agosto de 2016

AMARGA AMARGURA ..............................................


AMARGA AMARGURA *

Uma músiquinha está xingando n’ha mente,
nem será bem xingá, eu nem ouvia ela,
n’ha frente e eu nem via, nem tã pouco ouvia,
era mais um lamento, assim uma melodia,
p’ra cá e p’ra lá, ao sabor do vento,
nem dando descanso, nem parando o pensá,

e toda hora lá vinha ela com meu magicá,
arrastando o lembrá, fudendo o sonhá,
essa melodia por mim adentrou,
me atingindo e ferindo tal lamento doído,
p’ra cá e p’ra lá, p’lo vento trazido,
me xingando a valê, carregando o doendo,

não dando descanso naquilo que penso,
em tudo que sinto,

cortando bem fundo, espetando meu mundo,
ferindo acutilante, picando, destruindo,
um perigoso lamento se instalando profundo, 
n’ha esperança ferindo, melodia virando agonia,
matando divagá, divagando divagarinho,
num derivá de vagabundo,
virando, revirando, torcendo tudo,
me destrambelhando,

quebrando a ternura que levedando  apura,
melodia em lamento p’ra cá e p’ra lá todo santo dia,
ao sabor do vento, entrando mim adentro,
azedando o pensá, doendo sem fundo,
cortando lancinante, deixando f’rida aberta,
porta escancarada, amargura instalada,


e meu pensamento doendo m'rmão.

* Escrito e publicado por Humberto Baião em 10 de Agosto de 2016 - Évora


https://youtu.be/FqwJPJa1EUk

AMARA MALGOJO * 

Iom kanto malbenon n'ha menso,

nek estos bone Malbenado Mi ne aŭskultos,
n'ha fronto kaj mi ne vidis aŭ aŭdis malmulte ta,
Estis pli lamento, kiel melodio,
p'ra p'ra tie kaj tie, la vento,
ne ripozigis, ne haltante pensi,

kaj ĉiufoje oni gxin per magio,

trenante memorigi, la putino sonĝi,
ke melodion por mi eniris,
mi frapanta kaj vundante tian malkontentigas bedaŭro,
alportis p'lo vento p'ra p'ra tie kaj tie,
mi insultis la valo, portante la dolor,

ne ripozigis en kion mi kredas,

en ĉiuj mi sentas,

kaj tranĉante reen, jabbing mia mondo,

vundante razilo akrajn, prickling, detruante,
danĝera bedaŭro ekloĝante profunda,
n'ha espero doloranta, melodio turnante agonio,
mortigante vagas, vagante malrapide,
derivita bum,
turnante sin turnis, tordante ĝin,
destrambelhando mi,

rompante la tenereco feĉo demetas,

melodio bedaŭro p'ra p'ra tie kaj tie ĉiu ununura tago,
la vento, venanta en mi,
agriando la pensado, vundante senfunda,
tranĉante neforigebla, lasante f'rida malfermita,
malfermita pordo, instalita akreco

kaj Miaj pensoj doloranta m'rmão.

* Skribita kaj eldonita de Humberto Baião sur Aŭgusto 10, 2016 - Évora

https://youtu.be/FqwJPJa1EUk

domingo, 7 de agosto de 2016

374 - PATRIMÓNIO ......................................................


Havia muitos anos não tirava férias, e para férias em bolandas como aquelas, provavelmente teria sido preferível nem ter nenhumas. Primeiro interrompera-as por causa do desvio do malfadado avião, uma segunda interrupção ficara a dever-se ao assalto do navio, uma terceira, e que o irritara solenemente e em simultâneo o fizera rir devia-a ao muro, erguido de um dia para o outro em nome da liberdade, diziam.

A continuar assim acabaria as férias no ano seguinte, ou no outro, pelo que sua senhoria acabara mesmo por se arrepender de, contra seu hábito, ter tirado férias. O telegrama vincava a urgência, e o mais que ele poderia fazer eram suposições olhando os títulos dos jornais e tentando ver além deles. Sem Telex estava de mãos atadas. A que se deveria tamanha urgência? O problema da Baía dos Porcos estava suficientemente afastado para que a exigisse, porém o recuo e deslocamento das tropas espanholas em Marrocos e a sua concentração em Ceuta e Melilla não estavam nada longe e eram um caso diferente, diferente mas suficientemente próximo para gerar alguma inquietação, não estavam longe os dias em que Afonso XIII aflorara o nunca esquecido desejo espanhol de nos anexar.

Era em tudo isto que o senhor embaixador pensava enquanto estugava o passo dando corpo à urgência com que fora instado, ainda lhe ocorrera uma qualquer relação com os movimentos terroristas que eclodiram nas províncias ultramarinas mas varreu a ideia do pensamento, o seu ministério não era o da guerra. E quanto mais a curiosidade o acicatava mais ele apertava contra si a pasta que sobraçava, acelerando o passo corredores adiante.

Esperava-o no cimo da escadaria o chefe da casa civil, que o cumprimentou com desvelo e consideração, apontando-lhe um inusual gabinete e solicitando-lhe dois ou três minutos de espera, sua excelência viria logo que possível pois já perguntara por sua senhoria uma vez ou duas.

Entrou, não se sentando logo e preferindo ficar em pé, lançando o canto do olho para o jornal desdobrado em cima da secretária e tentando pela última vez adivinhar o motivo da urgência, olhou, torceu o pescoço até conseguir ler a legenda da foto em primeiro plano franzindo o nariz inacreditavelmente surpreendido, que poderia ele ter a ver com Cagarin ? E repentinamente, esbaforido e agitado sua excelência entra, vindo de uma porta dissimulada, lateral, pela qual nem dera, estendendo-lhe pressurosa e afavelmente a mão.

- Sente-se senhor ministro, senhor embaixador, sente-se meu caro amigo, queira desculpar a urgência mas nestas coisas mais vale prevenir que remediar, vossa senhoria compreenderá e dar-me-á razão.

O senhor embaixador sentou-se, sorrindo, dando a entender claramente a sua excelência estar na disposição de o ouvir. Que os tempos iam difíceis, que aquele estava sendo um ano terrível para nós, não bastaria termos acorrido rapidamente e em força a Angola, nem eram as outras províncias o cerne do problema, era o mundo, era a ONU e eram sobretudo os portugueses, Portugal.

- O senhor embaixador articulará estratégias com o seu colega o senhor ministro do interior. Lá fora ou cá dentro pretendo que sejam sobejamente conhecidas as razões históricas e morais para aguentarmos firmemente as nossas possessões no ultramar. Caber-vos-á a vossas senhorias planearem e porem em acção os mecanismos necessários, diria essenciais a que esta batalha psicológica e propagandística seja ganha. Morreram na Flandres milhares de homens para garantir a posse dessas nossas províncias ultramarinas, esses homens, esses patriotas, esses heróis foram sacrificados em nome da Pátria, não serei eu a carregar para a história o opróbrio de abrir mãos desses territórios cujo custo está escrito e consagrado a sangue no tratado de Versalhes, territórios onde aliás temos uma missão evangelizadora e civilizadora a cumprir. Todos nós sabemos não se encontrarem os indígenas das várias tribos em condições de assumirem a sua própria autonomia, seria um desastre, veja-se o que acontece aqui ao lado na Argélia, milhares e milhares de mortos, centenas de milhares. *

Depois, trocando as pernas e pausando para ganhar folego continuou:

- Ao aceitar este cargo jurei a mim mesmo não entregar ao meu sucessor nem um país mais pobre nem um país mais pequeno, quero honrar a passagem de testemunho, quero honrar o meu juramento, quero respeitar e honrar a confiança dos portugueses em mim, quero honrar este cargo, quero não ter que me envergonhar de mim mesmo. Não entregarei aos vindouros uma Pátria diminuída em relação à que me foi confiada.

- Certamente Senhor Presidente ! Com certeza Excelência ! O Senhor Presidente do Conselho saberá melhor que ninguém o que fazer ante tão grave situação. 

- Bem sei que por esse mundo fora todos descolonizaram e veja-se com que desastrosas consequências para ambas as partes foi feita essa descolonização. Hoje mesmo na ONU seremos alvo de ataques soezes mas, tal qual os nossos heróis caíram na Flandres para honrar a República e garantir a sua unicidade e inviolabilidade, também nós saberemos estar à altura daqueles que, pela perfídia das palavras tentam destruir os valores em que acreditamos e a unidade territorial que há quase quinhentos anos mantemos. Estamos sozinhos na ONU, mas estaremos firmes e orgulhosamente sós sempre que tal seja preferível a que estejamos mal acompanhados. Um dia a Nação, os portugueses, dar-me-ão razão. Obrigado senhor embaixador, ide em paz, ide com Deus, que o Senhor lhe conceda fazer bom uso da autoridade que a Nação lhe concedeu. E a família como está ? Adeus, ide, ide vossa senhoria, iremos falando.
  


·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Opera%C3%A7%C3%A3o_Vag%C3%B4

·          https://www.publico.pt/temas/jornal/o-outro-lado--da-historia-do-assalto--ao-santa-maria-20226967

·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Muro_de_Berlim

·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Invas%C3%A3o_da_Ba%C3%ADa_dos_Porcos

·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Corpo_Expedicion%C3%A1rio_Portugu%C3%AAs

·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_XIII_de_Espanha

·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Iuri_Gagarin

·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Tratado_de_Versalhes_(1919)

·          * http://www.dw.com/pt/1954-in%C3%ADcio-da-guerra-de-independ%C3%AAncia-da-arg%C3%A9lia/a-314126

http://ultramar.terraweb.biz/06livros_JoseBrandao.htm

* Mais de 250.000 mortos em sete anos, contra os 8.831 falecidos nas 3 frentes coloniais que mantivémos durante 13 anos.

NOTA: Este texto foi concebido e ficcionado com base na pesquisa efectuada para uma tese de doutoramento, que desenvolvo há algum tempo, e como tal beneficiou da pesquisa bibliográfica a que uma qualquer tese séria necessáriamente se obriga. 


sábado, 6 de agosto de 2016

373 - REVELAÇÃO ... AQUI PARADO .......................

 

REVELAÇÃO... AQUI PARADO ... 

Aqui, olhando a casa e a travessa onde vivemos,
lembro-me de ti.

Recordo-te, 
em especial por aquelas conversas de crescidos que nunca tivemos,
recordo os verões e os invernos,
os verões em que o bom tempo te afastava e alheava de mim,
os invernos em que, se os dois em casa, era o inferno.

Eras totem de justiça e cortavas a direito, de caracter forte,
qual madeira de carvalho e eu,
na vida ainda como a manhã de orvalho está para o dia,
apreciava, via, e não entendia por que assim ser, ou deveria eu ser.

Foi perfeitíssimo desentendimento o que sempre cultivámos,
só depois de morto Édipo te fiz frontalmente frente,
alimentei personalidade dúctil, estava no ponto para esculpir,
um totem para endurecer, uma faca para afiar, um caracter para formatar,
uma selva por onde avançar cortando a direito,
como te vira fazer, sacudindo de mim as gotas orvalhadas,
comprometedoras, 
fechando um ciclo de enganadores equívocos.

Nem tu nem eu éramos faladores, contudo,
entendíamo-nos perfeitamente nesse nosso desentendimento,
e assim me fiz, ou me fizeste negativo de ti.

É tudo quanto te devo,
tudo quanto sou a ti devo,
a revelação dos haletos de prata,
o recurso a alguns ácidos alcalinos básicos,
ao tiossulfato de sódio, a soluções com sais minerais,
q.b. de sulfito de sódio, e água, bastante água,

ah !

e toda aquela oxirredução processada debaixo d’amena temperatura.

Sim, é tudo quanto te devo,
sim, tudo quanto sou a ti o devo,

algumas imagens numa velha caixa de postais que esquecida guardo,
numa gaveta que nem sei e raro abro,

como aconteceu hoje, como aconteceu agora  em que eu para aqui parado,
olhando a casa e a travessa onde morámos lembrando-me de ti pai,
de ti e de como poderiam ter sido as longas conversas que nunca tivemos,
e com as quais cresci,

e cresci, cresci, cresci,
para te enfrentar, cresci,
para te impressionar, cresci,
para te envergonhar, cresci,
para te esquecer, cresci,
cresci para me afirmar e para me afirmar esqueci,

verdade pai,
tanto que poderíamos ter falado.

Falado de como o crescimento não é mais que um processo químico,
revelação, reacção química influenciada por não raros factores psíquicos,
uma complexa trama ou núcleo de electrões vogando no tempo,
agitação excitada e constante d’uma solução, "persona lizada"...
medição afinada da concentração sob pena de diluição do agente sensível,
vigilância apurada da temperatura e da exposição, do metol, 
da hidroquinona, do fixador neutralizante dos karmas, 
da revelação de complexas fórmulas e auras,

não quereríamos um produto insolúvel, nem uma solução inviável,
pois não pai ?

Apostaríamos num composto à base de prata metálica trabalhada,
revelado com  puro acido acético glacial ou mesmo vinagre,
poderíamos também utilizar o ácido cítrico, somente em emergência,
seria necessário, imprescindível mesmo era que ficássemos sensibilizados,
pela reacção,  pelo resultado obtido, pela preservação do genoma,
sim o genoma, antes do nitrato de prata ou do azul da Prússia eu.

Eu.

Mas não foi isso que aconteceu pai,
o que aconteceu foi que fiquei para ali esquecido,

olhando a casa e a travessa onde morámos lembrando-me de ti pai,
de ti e de como poderiam ter sido as coisas que nunca foram,
e entretanto para te esquecer, cresci,
cresci e esqueci, verdade pai,
tanto que poderíamos ter falado.
mas já esqueci. 


Humberto Ventura Palma Baião, Évora, 06 de Agosto de 2016.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

372 - Tribute to Acácio Nobre, VEROSIMILHANÇAS

 “VEROSIMILHANÇAS” pintura de Humberto Baião - Évora 1999

A decisão fora por mim tomada algo solenemente há mais de trinta anos, provavelmente mais próximo dos quarenta que dos trinta, mestre Paulino tentara diversas vezes inocular em mim o bichinho da pintura e, gaiato ainda, quer mestre Cachatra quer mestre Palolo me haviam pedido por mais que uma vez, fosse ali ao Nazarett numa corrida comprar-lhes guaches, bisnagas, aguarelas, cervejas, óleos, acrílicos, garrafas de vinho de Borba, de Redondo e de Reguengos, pincéis, telas ou papel. Até o senhor Amado no seu ar seguro, peremptório e doutoral me afirmara por mais que uma vez:

- Não tens nada a perder Humberto, quem sabe se tens vocação !

Portanto, submetido a tanto convívio com os mestres e a tanto estímulo bem-intencionado sucumbi, jurei a mim mesmo que o havia de fazer, isto é pintar um quadro, ou no mínimo tentar, escolhido que fosse o tema e bem definidas a conjectura, a amálgama de cores, a textura da pincelada, muito especialmente o jogo de sombras e uma cuidada atenção ao trabalhar a luz do dito cujo.

Independentemente do motivo queria-o ou imaginava-o, isto é concebia-o mentalmente para que, se vinda num repente a inspiração, não me apanhasse desprevenido, essencialmente era essa a essência da coisa, havia que captá-la e fixá-la, se necessário com empatia, pelo que inspirei fundo e me abandonei aos mais intrínsecos pensamentos de um modo compenetrado.

Anos mais tarde ao contemplar casualmente as obras da colecção privada de Acácio Nobre* pressenti um forte e indelével impacto, embora o não tivesse sentido. Falando dum modo mais especifico fora provocado pela tela que lá me levara, uma obra com sete metros de comprimento por quatro e meio de altura, pintada exclusivamente do lado esquerdo, representando uma figura humana, mais concretamente uma mulher saindo duma porta de uma casa com dois andares que não se vêem, mulher que igualmente não vimos por já ter saído, mas cujo perfume paira ainda no ar deixando atrás de si uma improvável atmosfera cujas vibrações ainda sinto pois que, como é uso acontecer com os quadros de Acácio Nobre, alteram infalivelmente quer a densidade quer a dinâmica do ar envolvente.


“VEROSIMILHANÇAS” pintura de Humberto Baião - Évora 1999

A minha aposta no eclectismo e heterogeneidade dos padrões que me identificariam futuramente não radicou exclusivamente na simpatia que a persistência das imagens dos quadros que Acácio Nobre não pintou nos causam a todos. Na realidade Acácio Nobre foi um expressionista pioneiro cujo surrealismo ainda hoje nos impressiona, sendo aí que nasce a simpatia que por ele nutro, simpatia que me não canso de propagandear, já que ele foi para mim o único até hoje capaz de tornar o impossível possível e cujas obras (e espólio, hoje felizmente classificado e numerado) testemunham o rigor e o alcance das suas vanguardistas ideias, caso muito particular das que nunca foram sequer públicamente apresentadas.

Foi portanto sob a sua alçada, protecção ou inspiração que me acomodei durante todos estes anos de introspecção e afã, dedicados à imaginação, concepção, definição, conjectura, tema, cores e essência do quadro que ora vos apresento ou deixo à apreciação, sendo este meu labor que entrego nas vossas mãos para observação crítica e que mui sensatamente intitulei “Verosimilhanças”.

Espero sinceramente que apreciem e fruam o resultado deste meu incomparável e inimitável trabalho, cujo mérito, se outro não tivesse, seria o de, em respeito à memória de Acácio Nobre, testemunhar o esforço no sentido de o homenagear do modo que ele mais valoraria, tentando a concretização do impossível.

Nem por um momento sequer esqueci a máxima desse mestre, para quem a “arte é a nossa necessidade de abstracção, o nosso fascínio pelo impossível e motor da transformação da visibilidade… a união do conhecido e do desconhecido através do desenho… para quem as palavras são insuficientes, só o desenho as podendo completar.”

Exposta esta tão clara quanto simples questão vou ficar-me por aqui, deixo-vos todo o tempo do mundo para que possais apreciar e julgar a minha obra, por ora irei calar-me e recolher-me, sei bem quanto as massas me amarguram, gostam de máximas mas não gostam de filosofias.

“VEROSIMILHANÇAS” pintura de Humberto Baião - Évora 1999

* Colecção privada de Acácio Nobre, de Patrícia Portela, 156

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

371 - A VIZINHA JUSTA E O IMI DO COSTA ..........


Que bom que seria haver só domingos, eu por mim até prefiro os sábados, porém domingos ou sábados, é igual, é-me indiferente, a bem dizer a única coisa que muda são as mulheres, as mulheres e a paisagem quando olhamos pela Janela.

Mas que belo almoço, um bom gaspacho, e um bom presunto de porco preto, bem fresco e melhor regado como manda a lei, é um bom vinho este, Castelo de Estremoz, quase vimos daqui as vinhas subindo a encosta da cidade, este vinho* tem uma particularidade curiosa que talvez seja culpada pela espiritualidade que nos pranta, as uvas são vindimadas durante a noite, para manterem a frescura e o aroma que sentimos neste néctar. (cortei vinho e meti néctar, soa melhor não soa?). Depois de totalmente desengaçadas e esmagadas as uvas fermentam em cubas de inox com temperatura controlada durante seis a oito dias e as castas Aragonez, Trincadeira e Castelão que o compõem e fazem dele um vinho tipicamente alentejano e são uma feliz conjugação de fruta madura e frescura que resultaria numa suave estrutura não fosse ser para mim um vinho um pouco áspero, como se não bastasse já a aspereza da língua por onde ele arrasta o atrito. Já a cerveja Sagres me provoca essa mesma sensação, daí que não a aprecie, gosto dos líquidos que estralam no céu-da-boca e depois escorregam bem pela goela. Mas era um almoço de amigos e às tantas já nem notava a rudeza ácida do vinho, bem bom apesar de tudo, o Caxias chama-lhe um figo e fê-lo acompanhar de farta comida tradicional alentejana, queijos e a mais variada doçaria conventual. Saímos dali mais docinhos que cordeirinhos.

Estava eu olhando pela janela, olhando as vinhas quando me ocorreu, e apostaria, que fazendo o mesmo estaria o Costa, só vendo prédios e mais prédios, a poente e a nascente verá um mar de prédios a perder de vista, e pensei de mim para mim que onde uns vêem um mar de prédios Costa verá um mar de tributos, vai daí ter-lhe-á surgido a ideia da tributação, tributação ponderada, justa, mais sol mais tributo, melhor vista mais tributo, melhor astral mais tributo, todavia uma tributação solidamente alicerçada em critérios subjetivissímos, isto é justa, justissíma.

Ainda acabrunhado ouço a canzoada a ladrar e entre ela um ladrar mais fino, assim como um chiar, é chiar de “poodle”, a minha vizinha Justa vai passear os cães, logo será sábado, nem preciso ser adivinho nem consultar um oráculo ou o calendário, nem sequer preciso levantar-me, os latidos dizem-me ser sábado, dia em que a vizinha Justa os leva bem cedo a passear, isto é a correr com ela, aposto que serão seis e meia da matina e nem um minuto mais, aposto que ela calçará os ténis rosa vivo e o fato de treino preto com a lista laranja eléctrico em S do ombro ao tornozelo. Gosto de ver aquele S, fá-la parecer mais alta e mais direita, mais desempenada (não devo usar o termo mais nova), com o peito mais atiradiço para a frente e as costas menos curvadas.  

Costa esfregará as mãos olhando os telhados, já o fizera quando das taxinhas sobre as dormidas e os turistas que entravam na capital, por isso nem entendo toda esta admiração agora, o homem foi feito para taxar, nem saberá fazer outra coisa, tal qual a minha vizinha Justa e a sua postura, que a ocupa e alimenta, aliás muitissímo bem para os quarenta e cinco ou cinquenta que contará, demasiado bem até, concedo que tem as rodinhas um pouco baixas mas o resto compensa, se compensa… 

Dizia eu que o Costa espreitará os telhados, e eu não me contenho sem espreitar a manhã pelos fuinhos do estore. Adoro quando ela põe aquela fitinha no cabelo, aquela ou aquelas, afinal condizem sempre com a cor das coleirinhas da Fakir e do Monhé, dois animais exemplares que nos dias de semana nem largam um balido, digo um trinado, digo um latido. A genica da vizinha Justa logo pela manhã tira-me do sério, aliás se não fosse isso seria o estacionamento no largo, nota-se logo que é sábado, menos carros, outros carros, e atirados para ali ao calhas sem quaisquer preocupações. Durante a semana e bem arrumadinhos cabem o dobro, bem, mas ao fim de semana os fiscais da EMEL não aparecem e a malta dá ganas à sua natureza interior, é como se alguém tirasse o interior às válvulas dos pneus d’uma bicicleta, descomprimimos, cagamos para tudo.

A vizinha Justa tem daquelas trelas de onde se tira um saquinho para apanhar a caca dos cãezinhos, a vizinha Justa é exemplar, toda ela, é exemplar, é um modelo, um modelo modelar, já o Costa, um bom contorcionista e ilusionista, seria um presidente de Junta exemplar, quis o destino fazer dele autarca modelar, daí até PM foi erro de casting, cada um com as suas tamanquinhas, cada macaco no seu galho, e realmente não lhe vejo arcaboiço para ministro, nem de primeira nem de segunda, do trapalhão anterior nem sequer vou falar, esse quanto a mim nem para apanhar a caquinha dos cães serviria, erros de casting, desde que se foi o Carlos Castro que o país anda assim aos trambolhões, faquires, Houdinis, emplastros…

Modelar é a Justa, essa sim, sei do que falo, o prédio faz um angulo recto e da minha janela vejo a janela da casa de banho dela, por onde o sol entra de manhã bem cedo tudo tornando radiante, contudo essa parede de tarde nem apanha sol, talvez lhe baixem o IMI, ela merecia, ai se merecia, sim tem as rodinhas baixas mas é elegante. Mereceria claro, justificar-se-ia.

A chaleira ! Nem a ouvi apitar merda ! Lá se entornou o chá outra vez, e aquela porcaria mancha-me o esmalte do fogão de um castanho dificílimo de tirar. Lá estão eles de novo com a história do IMI na televisão, taxem, os pombos caralho ! A cidade está cheia de pombos porra ! E cagam em cima de toda a gente foda-se, ainda são piores que o Costa, dos pombos e do Costa ninguém se safa, é a nossa sina…

Vou calçar os ténis e buscar a pedaleira, vou-me até à Ericeira ...