“VEROSIMILHANÇAS” pintura de Humberto Baião - Évora 1999
A decisão
fora por mim tomada algo solenemente há mais de trinta anos, provavelmente mais
próximo dos quarenta que dos trinta, mestre Paulino tentara diversas vezes inocular em mim o bichinho da pintura e, gaiato ainda, quer mestre Cachatra
quer mestre Palolo me haviam pedido por mais que uma vez, fosse ali ao Nazarett
numa corrida comprar-lhes guaches, bisnagas, aguarelas, cervejas, óleos, acrílicos,
garrafas de vinho de Borba, de Redondo e de Reguengos, pincéis, telas ou papel.
Até o senhor Amado no seu ar seguro, peremptório e doutoral me afirmara por
mais que uma vez:
-
Não tens nada a perder Humberto, quem sabe se tens vocação !
Portanto,
submetido a tanto convívio com os mestres e a tanto estímulo bem-intencionado
sucumbi, jurei a mim mesmo que o havia de fazer, isto é pintar um quadro, ou no
mínimo tentar, escolhido que fosse o tema e bem definidas a conjectura, a amálgama de cores, a textura da pincelada, muito
especialmente o jogo de sombras e uma cuidada atenção ao trabalhar a luz do dito cujo.
Independentemente
do motivo queria-o ou imaginava-o, isto é concebia-o mentalmente para que, se
vinda num repente a inspiração, não me apanhasse desprevenido, essencialmente era
essa a essência da coisa, havia que captá-la e fixá-la, se necessário com
empatia, pelo que inspirei fundo e me abandonei aos mais intrínsecos
pensamentos de um modo compenetrado.
Anos
mais tarde ao contemplar casualmente as obras da colecção privada de Acácio
Nobre* pressenti um forte e indelével impacto, embora o não tivesse sentido. Falando dum
modo mais especifico fora provocado pela tela que lá me levara, uma obra com sete metros
de comprimento por quatro e meio de altura, pintada exclusivamente do lado
esquerdo, representando uma figura humana, mais concretamente uma mulher saindo
duma porta de uma casa com dois andares que não se vêem, mulher que
igualmente não vimos por já ter saído, mas cujo perfume paira ainda no ar
deixando atrás de si uma improvável atmosfera cujas vibrações ainda sinto pois
que, como é uso acontecer com os quadros de Acácio Nobre, alteram infalivelmente
quer a densidade quer a dinâmica do ar envolvente.
“VEROSIMILHANÇAS” pintura de Humberto Baião - Évora 1999
A minha
aposta no eclectismo e heterogeneidade dos padrões que me identificariam futuramente
não radicou exclusivamente na simpatia que a persistência das imagens dos
quadros que Acácio Nobre não pintou nos causam a todos. Na realidade Acácio
Nobre foi um expressionista pioneiro cujo surrealismo ainda hoje nos impressiona,
sendo aí que nasce a simpatia que por ele nutro, simpatia que me não canso de
propagandear, já que ele foi para mim o único até hoje capaz de tornar o impossível
possível e cujas obras (e espólio, hoje felizmente classificado e numerado)
testemunham o rigor e o alcance das suas vanguardistas ideias, caso muito particular das
que nunca foram sequer públicamente apresentadas.
Foi portanto
sob a sua alçada, protecção ou inspiração que me acomodei durante todos estes
anos de introspecção e afã, dedicados à imaginação, concepção, definição,
conjectura, tema, cores e essência do quadro que ora vos apresento ou deixo à
apreciação, sendo este meu labor que entrego nas vossas mãos para observação crítica
e
que mui sensatamente intitulei “Verosimilhanças”.
Espero
sinceramente que apreciem e fruam o resultado deste meu incomparável e inimitável
trabalho, cujo mérito, se outro não tivesse, seria o de, em respeito à memória
de Acácio Nobre, testemunhar o esforço no sentido de o homenagear do modo que
ele mais valoraria, tentando a concretização do impossível.
Nem por
um momento sequer esqueci a máxima desse mestre, para quem a “arte é a nossa
necessidade de abstracção, o nosso fascínio pelo impossível e motor da
transformação da visibilidade… a união do conhecido e do desconhecido através
do desenho… para quem as palavras são insuficientes, só o desenho as podendo
completar.”
Exposta
esta tão clara quanto simples questão vou ficar-me por aqui, deixo-vos todo o
tempo do mundo para que possais apreciar e julgar a minha obra, por ora irei
calar-me e recolher-me, sei bem quanto as massas me amarguram, gostam de
máximas mas não gostam de filosofias.
“VEROSIMILHANÇAS” pintura de Humberto Baião - Évora 1999
* Colecção privada de Acácio Nobre, de Patrícia Portela, 156