Havia
muitos anos não tirava férias, e para férias em bolandas como aquelas,
provavelmente teria sido preferível nem ter nenhumas. Primeiro interrompera-as
por causa do desvio do malfadado avião, uma segunda interrupção ficara a
dever-se ao assalto do navio, uma terceira, e que o irritara solenemente e em
simultâneo o fizera rir devia-a ao muro, erguido de um dia para o outro em nome
da liberdade, diziam.
A
continuar assim acabaria as férias no ano seguinte, ou no outro, pelo que sua senhoria
acabara mesmo por se arrepender de, contra seu hábito, ter tirado férias. O
telegrama vincava a urgência, e o mais que ele poderia fazer eram suposições
olhando os títulos dos jornais e tentando ver além deles. Sem Telex estava de
mãos atadas. A que se deveria tamanha urgência? O problema da Baía dos Porcos
estava suficientemente afastado para que a exigisse, porém o recuo e
deslocamento das tropas espanholas em Marrocos e a sua concentração em Ceuta e
Melilla não estavam nada longe e eram um caso diferente, diferente mas suficientemente
próximo para gerar alguma inquietação, não estavam longe os dias em que Afonso
XIII aflorara o nunca esquecido desejo espanhol de nos anexar.
Era
em tudo isto que o senhor embaixador pensava enquanto estugava o passo dando
corpo à urgência com que fora instado, ainda lhe ocorrera uma qualquer relação
com os movimentos terroristas que eclodiram nas províncias ultramarinas mas
varreu a ideia do pensamento, o seu ministério não era o da guerra. E quanto
mais a curiosidade o acicatava mais ele apertava contra si a pasta que
sobraçava, acelerando o passo corredores adiante.
Esperava-o
no cimo da escadaria o chefe da casa civil, que o cumprimentou com desvelo e
consideração, apontando-lhe um inusual gabinete e solicitando-lhe dois ou três
minutos de espera, sua excelência viria logo que possível pois já perguntara
por sua senhoria uma vez ou duas.
Entrou,
não se sentando logo e preferindo ficar em pé, lançando o canto do olho para o jornal
desdobrado em cima da secretária e tentando pela última vez adivinhar o motivo
da urgência, olhou, torceu o pescoço até conseguir ler a legenda da foto em
primeiro plano franzindo o nariz inacreditavelmente surpreendido, que poderia
ele ter a ver com Cagarin ? E repentinamente, esbaforido e agitado sua
excelência entra, vindo de uma porta dissimulada, lateral, pela qual nem dera,
estendendo-lhe pressurosa e afavelmente a mão.
-
Sente-se senhor ministro, senhor embaixador, sente-se meu caro amigo, queira
desculpar a urgência mas nestas coisas mais vale prevenir que remediar, vossa
senhoria compreenderá e dar-me-á razão.
O
senhor embaixador sentou-se, sorrindo, dando a entender claramente a sua
excelência estar na disposição de o ouvir. Que os tempos iam difíceis, que
aquele estava sendo um ano terrível para nós, não bastaria termos acorrido
rapidamente e em força a Angola, nem eram as outras províncias o cerne do
problema, era o mundo, era a ONU e eram sobretudo os portugueses, Portugal.
- O
senhor embaixador articulará estratégias com o seu colega o senhor ministro do
interior. Lá fora ou cá dentro pretendo que sejam sobejamente conhecidas as
razões históricas e morais para aguentarmos firmemente as nossas possessões no ultramar.
Caber-vos-á a vossas senhorias planearem e porem em acção os mecanismos
necessários, diria essenciais a que esta batalha psicológica e propagandística
seja ganha. Morreram na Flandres milhares de homens para garantir a posse dessas
nossas províncias ultramarinas, esses homens, esses patriotas, esses heróis foram
sacrificados em nome da Pátria, não serei eu a carregar para a história o opróbrio
de abrir mãos desses territórios cujo custo está escrito e consagrado a sangue
no tratado de Versalhes, territórios onde aliás temos uma missão evangelizadora
e civilizadora a cumprir. Todos nós sabemos não se encontrarem os indígenas das
várias tribos em condições de assumirem a sua própria autonomia, seria um
desastre, veja-se o que acontece aqui ao lado na Argélia, milhares e milhares
de mortos, centenas de milhares. *
Depois,
trocando as pernas e pausando para ganhar folego continuou:
- Ao
aceitar este cargo jurei a mim mesmo não entregar ao meu sucessor nem um país
mais pobre nem um país mais pequeno, quero honrar a passagem de testemunho,
quero honrar o meu juramento, quero respeitar e honrar a confiança dos
portugueses em mim, quero honrar este cargo, quero não ter que me envergonhar
de mim mesmo. Não entregarei aos vindouros uma Pátria diminuída em relação à
que me foi confiada.
-
Certamente Senhor Presidente ! Com certeza Excelência ! O Senhor Presidente do Conselho saberá melhor que ninguém o que fazer ante tão grave situação.
-
Bem sei que por esse mundo fora todos descolonizaram e veja-se com que
desastrosas consequências para ambas as partes foi feita essa descolonização.
Hoje mesmo na ONU seremos alvo de ataques soezes mas, tal qual os nossos heróis
caíram na Flandres para honrar a República e garantir a sua unicidade e
inviolabilidade, também nós saberemos estar à altura daqueles que, pela
perfídia das palavras tentam destruir os valores em que acreditamos e a unidade
territorial que há quase quinhentos anos mantemos. Estamos sozinhos na ONU, mas
estaremos firmes e orgulhosamente sós sempre que tal seja preferível a que
estejamos mal acompanhados. Um dia a Nação, os portugueses, dar-me-ão razão.
Obrigado senhor embaixador, ide em paz, ide com Deus, que o Senhor lhe conceda
fazer bom uso da autoridade que a Nação lhe concedeu. E a família como está ?
Adeus, ide, ide vossa senhoria, iremos falando.
· https://www.publico.pt/temas/jornal/o-outro-lado--da-historia-do-assalto--ao-santa-maria-20226967
· https://pt.wikipedia.org/wiki/Muro_de_Berlim
· https://pt.wikipedia.org/wiki/Invas%C3%A3o_da_Ba%C3%ADa_dos_Porcos
· https://pt.wikipedia.org/wiki/Corpo_Expedicion%C3%A1rio_Portugu%C3%AAs
· https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_XIII_de_Espanha
· https://pt.wikipedia.org/wiki/Iuri_Gagarin
· https://pt.wikipedia.org/wiki/Tratado_de_Versalhes_(1919)
· * http://www.dw.com/pt/1954-in%C3%ADcio-da-guerra-de-independ%C3%AAncia-da-arg%C3%A9lia/a-314126
http://ultramar.terraweb.biz/06livros_JoseBrandao.htm
* Mais de 250.000 mortos em sete anos, contra os 8.831 falecidos nas 3 frentes coloniais que mantivémos durante 13 anos.
NOTA: Este texto foi concebido e ficcionado com base na pesquisa efectuada para uma tese de doutoramento, que desenvolvo há algum tempo, e como tal beneficiou da pesquisa bibliográfica a que uma qualquer tese séria necessáriamente se obriga.