REVELAÇÃO... AQUI PARADO ...
Aqui, olhando a casa e a travessa onde vivemos,
lembro-me de ti.
Recordo-te,
em especial por aquelas conversas de
crescidos que nunca tivemos,
recordo os verões e os invernos,
os verões em que o bom tempo te afastava e alheava de
mim,
os invernos em que, se os dois em casa, era o inferno.
Eras totem de justiça e cortavas a direito, de caracter
forte,
qual madeira de carvalho e eu,
na vida ainda como a manhã de orvalho está para o dia,
apreciava, via, e não entendia por que assim ser, ou
deveria eu ser.
Foi perfeitíssimo desentendimento o que sempre
cultivámos,
só depois de morto Édipo te fiz frontalmente frente,
alimentei personalidade dúctil, estava no ponto para
esculpir,
um totem para endurecer, uma faca para afiar, um caracter
para formatar,
uma selva por onde avançar cortando a direito,
como te vira fazer, sacudindo de mim as gotas orvalhadas,
comprometedoras,
fechando um ciclo de enganadores equívocos.
fechando um ciclo de enganadores equívocos.
Nem tu nem eu éramos faladores, contudo,
entendíamo-nos perfeitamente nesse nosso desentendimento,
e assim me fiz, ou me fizeste negativo de ti.
É tudo quanto te devo,
tudo quanto sou a ti devo,
tudo quanto sou a ti devo,
a revelação dos haletos de prata,
o recurso a alguns ácidos alcalinos básicos,
ao tiossulfato de sódio, a soluções com sais minerais,
q.b. de sulfito de sódio, e água, bastante água,
ah !
e toda aquela oxirredução processada debaixo d’amena
temperatura.
Sim, é tudo quanto te devo,
sim, tudo quanto sou a ti o devo,
sim, tudo quanto sou a ti o devo,
algumas imagens numa velha caixa de postais que esquecida
guardo,
numa gaveta que nem sei e raro abro,
como aconteceu hoje, como aconteceu agora em que eu para aqui parado,
olhando a casa e a travessa onde morámos lembrando-me de
ti pai,
de ti e de como poderiam ter sido as longas conversas que
nunca tivemos,
e com as quais cresci,
e cresci, cresci, cresci,
para te enfrentar, cresci,
para te impressionar, cresci,
para te envergonhar, cresci,
para te esquecer, cresci,
cresci para me afirmar e para me afirmar esqueci,
verdade pai,
tanto que poderíamos ter falado.
Falado de como o crescimento não é mais que um processo
químico,
revelação, reacção química influenciada por não raros factores psíquicos,
uma complexa trama ou núcleo de electrões vogando no tempo,
agitação excitada e constante d’uma solução, "persona lizada"...
medição afinada da concentração sob pena de diluição do
agente sensível,
vigilância apurada da temperatura e da exposição, do
metol,
da hidroquinona, do fixador neutralizante dos karmas,
da revelação de
complexas
fórmulas e auras,
não quereríamos um produto insolúvel, nem uma solução inviável,
pois não pai ?
Apostaríamos num composto à base de prata metálica
trabalhada,
revelado com puro acido
acético glacial ou mesmo vinagre,
poderíamos também utilizar o ácido cítrico, somente em
emergência,
seria necessário, imprescindível mesmo era que ficássemos
sensibilizados,
pela reacção, pelo resultado obtido, pela preservação do
genoma,
sim o genoma, antes do nitrato de prata ou do azul da
Prússia eu.
Eu.
Mas não foi isso que aconteceu pai,
o que aconteceu foi que fiquei para ali esquecido,
olhando a casa e a travessa onde morámos lembrando-me de
ti pai,
de ti e de como poderiam ter sido as coisas que nunca
foram,
e entretanto para te esquecer, cresci,
cresci e esqueci, verdade pai,
tanto que poderíamos ter falado.
mas já esqueci.
mas já esqueci.
Humberto Ventura Palma Baião, Évora, 06 de Agosto de 2016.