sexta-feira, 4 de novembro de 2016

394 - CONFISSÕES DE TRAVESSEIRO .....................

  
Agarrara-se a ele ainda antes de estender a mão para o interruptor do pequeno candeeiro sobre a mesinha de cabeceira, agarrou-se a ele e apertou-o contra si e, na escuridão em que o quarto mergulhara submergiram ela e os seus devaneios. Talvez devêssemos dizer fantasias, pois que o abraçou com euforia e riu como uma criança enquanto cruzava sobre ele as pernas e o abraçava como a um ursinho de peluche gigante que tivera em menina, ou como quem vive uma paixão verdadeira. Tempo e sonhos foram-se dilatando com a escuridão e derramando na cama, agora mais quente, memórias de sonhos passados mas também visões de ilusões futuras em que, abraçados, trocava beijos, umas vezes roubados outras dados ou oferecidos com a sofreguidão piedosa de uma crente ofertando coração, espirito e alma ao seu Senhor, visões sendo por ela alimentadas com um desespero cada vez mais inquietante.

Amo-o, amo-o muito, não quero viver sem ele, é tudo para mim, nem saberia já viver sem esse querer, quero viver assim, como num sonho, como acredito ser possível, como desejo e quero, muito, quero ser dele, eu serei dele e ele meu a vida inteira, o resto das nossas vidas, enquanto Deus nosso Senhor quiser. O amor é maravilhoso e a paixão um milagre, estou apaixonada, louca, estou louca, louca de felicidade, louca de ansiedade, tenho que controlar-me ou ainda fico sem cabelo, já nem sei se me cai se o arranco para me convencer que estou acordada, viva, e de que tudo isto é verdade.

E, desvairada, encantada e embrenhada nos seus próprios sonhos, dava asas às fantasias criadas abraçando-o, enlaçando-o com as pernas, beijando-o, fazendo-o rodar consigo para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo, recusando acordar de tão vívido sonho, sonho que um dia passaria à história, deixaria de ser fantasia e seria realidade pura, pura e crua, tão pura e tão crua quão a Santíssima Trindade e a verdade.

Mais que uma vez se sentira arrebatada e desfolhada pelos dedos brandos dele, macios, finos e ágeis, atrevidos, penetrando-lhe os pensamentos, os sonhos, separando-a calma e docemente pétala a pétala, bem-me-quer, bem-me-quer, bem-me-quer, e, por cada pétala um estremeção, um ranger de dentes, ânsia, sofreguidão, volúpia, desejo, ambição, urgência.

Minutos depois do tsunami a bonança, um leito revolvido pela retoiça agora pleno de flores, de pétalas, a respiração retornando-lhe ao normal, o sonho dissipando-se lentamente qual nevoeiro em manhã primaveril, o lençol reclamado para cobrir o corpo nu, suado, molhado, abandonado a si mesmo, encantado ainda, vívido ainda, ela bocejando languida, cruzando as pernas, segurando em si a paixão, retendo o instante, ouvindo-se, sentindo a pulsação devolver-lhe a baixa-mar, a calma volver e, como refluxo da maré deixando na areia da praia rolos de espuma salgada, assim ela se encolhia saboreando a espuma dos dias, fantasiando, sonhando, não já delirando mas antes adormecendo exausta, cansada daquela fugaz agitação ora ultrapassada, tremores e rangeres de dentes esquecidos, ele esquecido.

Ele esquecido para logo lembrado de novo aconchegando-lhe o dormir, ajeitando-a na conchinha para onde a puxara, afagando-a dos cabelos às coxas, deixando que no escuro a mão lhe percorresse as formas ao sabor do mágico encanto que a tolhia, por isso as sentindo deslizando em si, descendo à cintura, subindo a anca como quem, aproveitando o declive duma descida toma embalagem para subir. Talvez fosse inverno, talvez ele sentisse frio porque a mão, agora entre as coxas, procurando o calor como se no inverno e se chegasse ao braseiro quando toda eu, o meu corpo inteiro em ebulição, tal qual café aquecendo na cantarinha de barro junto às brasas com a fervura erguendo-lhe o testo, eu agitando-me alvoraçada e aquela mão atrevida tocando-me, acariciando-me, eu conturbada, eu num completo desassossego, em efervescência, a espuma escorrendo já p’la enfusa como algo entornando, extravasando, espumando, eu uma pucarinha e havendo coisas que eu não quereria era acordar agora, agora não, isto é química entre nós, química perfeita, pura, magia, e acordar é que eu não quero, é química, é ebulição, é fervura, é sensação, é o principio de tudo, é excitação, não pares, é bom, sim querido, não, acordar não, agora não, acordar é que eu não queria, agora queria tudo, todo, tu todo amor querido, tudooooooooooooooo !

Ooooooohhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh !!!!

Acordar não ! Não ! Não e não !

Oh ! É o travesseiro ! Não ! Não ! Não !  



quarta-feira, 2 de novembro de 2016

393 - CUCU, CUCA, MINHA JÓIA .............................


Naquela noite em especial ela gostara de o ouvir, gostara e dissera-lho, ao que ele respondeu de modo algo petulante:

- Ainda tu não me ouviste falar durante o dia.

Para quem tenha assistido à cena terá mesmo parecido petulância, contudo não abonará em prejuízo da verdade sabermos não ter havido quaisquer testemunhas.

Nem era véspera de todos os santos, era mesmo o primeiro de Novembro, data que começara sendo assinalada logo pela manhã, todavia num dia tão marcante para os cristãos não consta que os sinos tenham tocado a rebate, ainda que tenham soado repicando todo esse santo dia.

Quer num quer noutro dos cemitérios da cidade, os mortos da família aguardaram solenemente todo o dia a visita que ele lhes não fez, contudo lembrou-os com uma exaltação inusual mas apropriada, sentindo-se nesse feriado mais feliz que o habitual e deveras aliviado por finalmente o Senhor os ter chamado a Si. O sofrimento de ambos tivera finalmente fim e ele, livre dos elevados custos dos esmerados cuidados, serviços de saúde e paliativos que clandestinamente lhes prestavam, pudera então trocar de carro e adquirir em cento e vinte módicas prestações uma admirável viatura que faria as suas delícias e provocaria a inveja dos demais.

Para quem esteja por dentro da cena, da coisa, será fácil acreditar não se ter tratado de petulância, ele era extrovertido e brincalhão, um tipo às direitas, nos antípodas de um petulante, ela comprovou-o no fim desse jantar durante o qual a conversa nem derivara em nenhuma direcção particular, antes abarcara no geral variadíssimos temas sem ao menos aprofundar qualquer deles. Tinha sido um lindo e lauto jantar com flores na mesa e à luz de velas, por se ter ido abaixo a corrente eléctrica ou algum deles se ter esquecido de pagar a conta da luz.

Não era normal acontecer jantarem de modo romântico, nem esquecerem pagar as contas, mas acontecera e, sem luz, recolheram ao quarto mais cedo que seria habitual, nem sequer estavam familiarizados um com o outro e ambos temiam que a coisa pudesse correr mal. Mas não correu, correu até melhor que teriam imaginado, ou sonhado, e ainda que uma vez mais haja tantas testemunhas como quando ele lhe parecera um petulante, ou mesmo não havendo testemunhas, só o Senhor saberá quanto se aplicaram, entregaram e amaram.  
          
Na confusão da excitação e do escuro como breu ele nem logrará negar com veemência ter titilado onde mais lhe tenha agradado, jamais porém esquecerá a tremura experimentada e que o acometeu ao passar-lhe a ponta da língua p’los lábios finos, mais precisamente aquele exacto momento em que outra ponta tocou a sua, momento acerca do qual se tornaria incapaz de afiançar ter alguém accionado o interruptor e desligado a pouca luz que um abajur derramava e onde ela depositara umas calcinhas azuisinhas, rendilhadas, a fim de coar aquela luz metediça e que por isso o quartito nem ficara transparente nem opaco, deixando escapar somente uma aurora azulada, celestial. 

Naturalmente a confusão já se lhe instalara no espírito, confundindo-se-lhe tudo e olvidando-lhe que o corte da corrente eléctrica era uma constante e o accionar do interruptor uma variante ocasional e irracional, possibilidade aceitável únicamente por quem dominasse o sentido das coisas ou da razão e, como corpo na corrente caudalosa dum rio agarrando-se a um tronco, assim ele se deixava arrastar ao sabor da emoção.

Não havendo a certeza de nada lembra tudo isto sem comoção, comoção verdadeira, da que provoca baques no coração. Recorda o abraço apertadinho, o sussurro, o tudo com jeitinho para não a assustar não fosse a passarada esvoaçar para longe, onde se não ouvissem os sinos repicando, ou onde não houvesse o juntinhos, o coladinhos, o pegadinhos, os pontos cardeais vogando sem tino na maré duns alvos lençóis de linho, perdidos ambos numa tempestade de desejos, navegando sem bússola, agarrados a uma manta colorida entretecida por mãos de fada agora sem saberem ao que agarrar-se e agarrando-se a tudo com o desespero do amor, a perseverança do carinho, a violência da ternura, como se estivesse nas suas mãos o destino, a sina, o fado que só Deus podia cantar-lhes quando, de novo lhe voltaram as tremuras ao passar-lhe com a língua nos lábios finos e molhados ao longo dos quais fez deslizar a ponta, esses lábios se lhe entreabriram abrindo-lhe as portas do paraíso e no paraíso uma maçã que comeu sofregamente, uma maçã verde de sabor agridoce cujo sumo o levou a ajoelhar-se como por respeito se venera e ora a um sumo-sacerdote das coisas em que se crê. 

Por isso ávido a sugava, sugava a vida a felicidade e o amor como se o amanhã não existisse e, porque insistisse e lhe parecesse que outra língua, outra ponta tocasse a sua, fechou os olhos desejando ardentemente adormecer quando as coxas dela, macias e quentes se contraíram de encontro às suas faces, onde uma barba de dias arranhava como lixa aquela pele de pêssego cheirando a rosas cujas pétalas, tal qual uma flor, se beijam com amor.

E como Deus descansou ao sétimo dia também eles descansaram e dormiram, juntinhos, coladinhos, pegadinhos, um no outro, os dois em um como prometia solenemente a SATA* no plasma ligado no quarto, ou o Clube Fluvial Portuense no dia de S. Valentim** abrindo aos sócios as entradas acompanhados, acompanhados talvez também por quem com eles partilhasse o juntinhos, o coladinhos, o pegadinhos, acompanhados por quem os auxiliasse na busca dos pontos cardeais, ou quem sabe a superar uma qualquer tempestade ensinando-os a navegar sem bússola, bem tapadinhos com uma manta colorida e feita à mão com devoção. 




segunda-feira, 31 de outubro de 2016

392 - CAÇAR COELHOS COM O GATO ………....…


Se não tens cão caça com o gato, é preciso é que apanhes ratos, diz-nos um velho provérbio nado e criado nas estepes mongóis e que, talvez pela mão de Marco Polo (1254-1324 ) ou Fernão Mendes Pinto (1509-1583 ) tenha percorrido a rota da seda até chegar à Europa, numa época (1347-1353 ) em que a peste negra ou bubônica era temida ou duramente lembrada e os ratos acusados da sua transmissão ou contágio.

Séculos depois um goês, a rota da seda passava pela India sim meus amigos, um goês dizia eu, vem de novo tentar caçar ratos com gatos ou, numa hilariante confusão com um outro ditado popular que correu mundo da Austrália aqui, matar dois coelhos com uma cajadada, matar dois ou três ou quatro, sabido que é ter a Austrália penado as sete passas do Algarve com a praga de coelhos que a fustigou levando a que o imenso país, quase um continente, tivesse sido dividido ao meio no sentido do Diálogo Norte-Sul e elaborado as mais exigentes leis quanto à manutenção, abertura e fecho de cancelas na dita cuja.

O recente êxodo migratório que Portugal conheceu, e conhece pois ainda não foi estancado, aliado à baixa taxa de natalidade e fertilidade dos casais tugas que, sem perspectivas de futuro adiam, atrasam ou simplesmente desistem de ter filhos, é uma autêntica bomba relógio ameaçando a existência dos parvos que ainda por cá ficaram, ou porque são doentes, ou inválidos, ou velhos, ou correndo o risco de me repetir, por serem parvos.

Seja como for daqui a dez ou vinte anos não haverá gente suficiente para alimentar a indústria nem o comércio nem a agricultura nem as pescas nem a Segurança Social nem para ocupar os milhares de empregos surgidos, que ficarão sem pretendentes. Festejaremos então o milagre do pleno emprego, o bater no fundo, o desastre, a calamidade, o abismo, pois já não se tratará de um pântano mas de um abismo absurdo e sem fim.

Porém, na esteira das soluções milagrosas e exímios artifícios a que nos está habituando um mago goês, malabarista dos passes de magia, do faz que faz mas não faz, do que mais vale parecê-lo que fazê-lo, do muito barulho para nada, do é preciso que se faça qualquer coisa para que tudo fique na mesma e pareça que muda e mexe, que está vivo, vem esse estranho mago e faquir com o seu sorriso optimista de prestidigitador tirar ante nós mais um coelho da cartola,  esfolado, ou seja, mais um nó mui mal atado.

Propõe-se o ditoso artista curar-nos sacrificialmente de três ou quatro terrenas mazelas de que padecemos há muito, esquecendo que nos são congénitas, hereditárias. Abrir as portas do país aos membros da CPLP sem necessidade ou exigência de vistos ou autorizações de residência é encher o país de pretos e nem todos eles católicos… Para além de muitos que nem cristãos serão, certamente virão com os olhos postos na Europa, idem para os da Guiné Equatorial* que nem uma palavra de português sabem falar. Portugal será um trampolim, uma porta de acesso à Europa para toda esta gente a quem provavelmente iremos dar tudo que aos nossos negámos, como demos aos refugiados, casinhas onde morar e todas elas tiradas aos tugas que ficaram desempregados. Refugiados esses que, como todos nós sabemos passado algum tempo desertaram para parte incerta desdenhando do que lhes deram.

Realmente quem fica aqui ou é doente ou é parvo, inválido, sádico ou masoquista. Portugal prepara-se para fazer por estes enteados que quer chamar a si o que nunca fez para manter cá os seus próprios filhos. Mas a vinda aos trambolhões de gente sem visto de residência encherá jardins de dorminhocos aos baldões e fará recuar o custo / hora, o salário mínimo, o emprego máximo, os salários, jornas e quejandos tornando este país um milagre para empresários que há anos clamam por medidas que reduzam os custos, promovam a produtividade, a produtividade ora aí está ** como diria o meu amigo José Mário Branco, a fim de finalmente competirmos com os países decentes da Europa e do mundo através da instauração de um moderníssimo esclavagismo.

Encher-se-ão todas as pensões do Beato à Picheleira, de Marvila a Moscavide, da Areosa à Cantareira, e os cofres da Segurança Social, e as gavetas dos processos da acção policial, e os índices da actividade criminal, e os aeroportos de “mulas” pelo Natal… Está mais que visto que os governos anteriores e em especial este governo, que nada fizeram nem fez pelos que cá estavam e estão e os levaram e levam a sair, se prepara para tudo fazer por estes que estão para vir, ou não passasse tudo de presdigitação, de tirar coelhos da cartola, de não aparecer na Cimeira da CPLP que decorre em Brazília de mãos a abanar, por nada mais haver a oferecer que sonhos, sonhos que nem a UE nem Schengen alguma vez consentirão. Trata-se sim de deitar areia para os olhos de todos, de levantar cortinas de fumo para esquecer a ausência de futuro, e até de presente.

Não se pense contudo que somente os governos fizeram quanto puderam para tornar o país a cloaca nacional, os municípios, que não criaram as condições para o desenvolvimento, quando não o dificultaram ou impediram têm também a sua quota parte, como a têm gabinetes e técnicos que de norte a sul se arvoraram em reizinhos do seu reino e bloquearam, e boicotaram intenções e projectos, iniciativas e progresso. Todos são em maior ou menor grau culpados da situação.

Estamos abrindo às cegas e completamente as pernas à pretalhada, descemos abaixo de preto, abaixo de cão, somos uns cães uns para os outros mas nem um canil sabemos gerir, quanto ao goês e se o deixarem venderá seda e anil aos mongóis e aos chinocas, fazendo o pino e percorrendo  em contra-mão uma rota que não devia sequer atrever-se a seguir…Dêem condições aos tugas e eles que façam filhos... 

O busílis está no facto da medida exigir reciprocidade e alguns dos países da CPLP, com Angola à cabeça, não estarem dispostos a aceitar-nos com a mesma bonomia… Os pretos não querem lá brancos, pelo menos os brancos portugueses. Todavia não deixa de surpreender-me e até confundir-me que, ante tamanho disparate, o PR, sempre tão certinho, se resolva desta vez apoiar tão esdrúxula ideia… 


* Guiné Equiatorial, ditadura há 37 anos, um do países mais corruptos do mundo.
** https://youtu.be/_Adp77ivpT8

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

391 - CONVERSÃO, CONVERSAÇÃO, CONFUSÃO


A verdade é que nunca gostara de padres, nem de padres nem da sua conversa mole e, desde os seus tempos de catequese lembrara sempre essa conversa monocórdica como um monólogo de uma moleza dura, incompreensível, um discurso arengado e intransponível para a sua mente jovem. Mais tarde, quando capaz de algum discernimento, alguma sageza, de alguma observação, ou análise, esbarrou com o mesmo discurso intangível, hermético cuja música raramente lhe soava agradável aos ouvidos, criando nele interrogações ao invés de certezas, ao apresentar-lhe como certas as piores dúvidas.

Devido a tudo isso se é hoje baptizado tal deve-se somente à tenra idade em que o foi, por nem ter capacidade de recusa nem argumentação para se opor, nem tinha sequer outra opção, como aconteceu ao recusar a primeira comunhão e se afirmar, ou recusar anos mais tarde um casamento religioso e encenado na igreja como a mãezinha tanto queria.

Sendo verdade que as certezas tremiam não era menos verdade que esse mal não era novo, nem novo nem de agora. Há muitos anos, mais precisamente no fatídico semestre em que namorara a Cândida, a fúria do seu amor, a ânsia, a fome de amor que com ela quisera repartir ou nela saciar fora cegamente travada pelos problemas existenciais que a habitavam;

- Será pecado o beijo ?

interrogação e obstáculo que ela demorou demasiado a ultrapassar e o fizeram perder a fé, a devoção, e minou todos os discursos anteriormente ouvidos sobre esse Deus bondoso, misericordioso, amoroso, e todos os discursos sobre o amor, a dádiva, a entrega, o sacrifício, a abnegação, a penitência e o perdão.

Entre os doze treze anos e os quinze dezasseis, ainda oscilou nas opções, agradavam-lhe as parábolas que incluíssem animais, sobretudo as que terminassem num claro exemplo moral, especialmente aquelas que comportassem um divino e exemplar castigo, com o desaparecimento ou a morte dos prevaricadores, dos pecadores. 

Deus é amor.

Agradavam-lhe os castigos pesados, um Deus tirano, que castigasse impiedosamente a maldade, a Lei de Salomão, o olho por olho na própria Bíblia, a estátua de sal da mulher de Ló, o êxodo dos filhos de Israel conduzidos por Moisés, a travessia do Mar Vermelho que se fecha e trucida os exércitos do faraó, os discursos berrados às ovelhas do alto do púlpito pelo padre Bravo, um bravo que o rebanho entendia e que uma vez ou duas explicou à chapada a um crente menos crente a sapiência e a infalibilidade do Senhor. 

Deus nunca se engana.

Porém, não sendo ele o padre bispo na zona, Deus correu com o transparente padre Bravo e, pela mão ou pela boca do padre Macário voltaram os discursos herméticos cuja pedagogia não era percebida, quanto mais assumida por um rebanho hesitante no rumo e que se foi paulatinamente dispersando da igreja, da paróquia e na vida, tanto mais que o padre Macário nunca foi homem para lhes fazer uns desenhos ou os meter no caminho certo, nem à estalada.

Quanto a ele, digo a mim e à Cândida, o apelo da selva era mais forte, a animalidade exigia urgência na satisfação dos ímpetos temendo que, caso contrário, como ao homem tornado fera, ao bater das doze badaladas, possuído e possesso, me transmutasse em lobisomem. Por isso também eu exigia no momento em que a fé me acossava e a devoção me atormentava e tornava um incubo, que ela por mais cândida que fosse, se submetesse à minha vocação, à minha vontade, ao destino, à sina, ao fado.

Volta não volta a cena voltava a repetir-se, Amália intransigente, ele dominador e inconsequente como sempre, o divórcio mais que uma certeza no horizonte, ambos irredutíveis, irreconciliáveis, ela mantendo-se fiel a Santo Antão, ele derivando para a igreja da Sé, onde por certo não esbarraria nela. Contudo e apesar de tolinha Cândida nunca se submetera à sua vontade, sua dele, pelo que cedo acabaram, cada um retornando à sua paróquia, esquecendo os sonhos e os caminhos que haviam jurado palmilhar juntos, juntinhos. A mesma fé que os unira os separara, um padecendo de dúvidas outro com demasiadas certezas.

Ora é precisamente neste entreacto que aparece o padre Madureira da Silva e o seu discurso da conversão* discurso que eu chamaria antes de tradução pois que o dito padre quase, quase nos faz desenhos para explicar na perfeição como devia ser aberto, claro e sucinto o linguajar da igreja, casa onde mais parece falar-se chinês para um público maltês, cada vez menos disposto a ouvir quem quer que seja, ou a perder tempo com o que não seja imediatismo, futilidade, materialismo e desvario.

Não são a cultura moderna e o neoliberalismo os únicos culpados pela dispersão do rebanho e pelo afastamento da palavra de Deus, é sim o cepticismo que a igreja permitiu, cultivou e até acarinhou no seu mundo, pois neste outro mundo real em que vivemos, na senda do racionalismo e do iluminismo, o grosso do rebanho logrou libertar-se de anátemas ainda que não de dogmas, e fugiu do hermetismo religioso sem que o tenha, (ou a igreja o tenha) substituído por algo mais proveitoso. 

A igreja permitiu gradualmente que a palavra de Deus surgisse ilegível, intraduzível, incompreensível, manipulável, e por fim dispensável por desnecessária. No fundo tratar do homem enquanto ser humano sem perder o pé, como sabemos que se fez desde a antiguidade clássica com Sócrates, Agostinho de Hipona, até aos tempos mais recentes da corrente existencialista e de Simone de Beauvoir, Jean Paul-Sartre, Boris Vian, do nosso Vergílio Ferreira e a nossa Maria Judite de Carvalho, de Kafka, André Malraux, Albert Camus, etc etc etc numa tradição de liberdade e responsabilidade que entre nós nunca foi muito respeitada.

Culpas natural e igualmente também da escola e da igreja, culpas nossas também por não buscarmos um caminho alternativo e avançarmos às cegas. O padre Madureira da Silva vem agora dizer que a igreja há muito devia ter gritado que a conversão é a mudança, é mudança de mentalidade, é escolha, é opção, é um caminho mais claro, mais limpo e com menos escolhos que aquele que o neoliberalismo e outros ismos nos oferecem, convidam e incitam a percorrer. Converter-se não é trocar paganismo por cristianismo ou vice-versa, é trocar o materialismo mercantilista por algo mais concordante com o que quer que seja o humanismo ou a alma, é ser solidário, ser, ser, ser, mais que ter, é ser.

No fundo uma questão de dignidade, para nós e para os demais, uma questão de sanidade, pessoal, mental, moral, e social, uma caminhada para uma concepção social da vida em vez de individual e que substitua a fatalidade que aceitamos sem contestar, uma concepção que nos una, em vez do abandono a que votamos o outro. No fundo a questão da busca de um projecto de sociedade, dum projecto que despreze soluções pessoais ou individuais e procure soluções nacionais, colectivas, no fundo a libertação pela coesão, pela assumpção de responsabilidades universais, acima de egoísmos, acima de privilégios, pelo regresso da palavra de Deus, pelo regresso da igualdade, da paridade, da palavra bem explicada, bem traduzida, se necessário com um desenho, como o padre Madureira da Silva teórica e exemplarmente fez.

Amadeu recortou o texto do jornal, meteu-o num envelope cor-de-rosa com um coração bem vermelho e rebordado a branco, branco de pureza, e deixou-o displicentemente em lugar onde sabia de antemão ser encontrado por Amália. A partir daqui há pormenores da história que posso imaginar mas não conheço, terão jantado juntos como havia muito tempo não faziam, terão procurado o quarto e a cama com alguma apreensão e desconfiança, tê-la-ão abandonado horas depois curados, completos, animados, entusiasmados, decididos, convertidos.

O divórcio foi esquecido, a decisão pendera para um país europeu onde encontrassem democracia, justiça, solidariedade, igualdade, paz, futuro, trabalho, emprego, onde fosse possível sonhar, ter certezas, família, onde imperasse a verdade e a honestidade, a franqueza. Curiosa e casualmente escolheram o menos religioso de todos, é apenas um pouco frio. **
  
* Padre Madureira da Silva, Coluna de Opinião, Diário do Sul, 25 de Outubro de 2016, página 4. 
** Atenção, a leitura deste texto não dispensa a consulta do artigo original do Padre Madureira. 

domingo, 23 de outubro de 2016

390 - ZÍNGARO SIM ZÍNGARO NÃO ........................


Mal as vi o pensamento fugiu-me para as bandas do Minho, de Viana do Castelo, onde uma vez, em férias, esbarrara com um aparato fantabulástico como diria a minha bizinha do 4º Esquerdo. Rodas, folhos e mais folhos nas saias rodadas, blusas alegres e o peito como prateleira, montra ou altar de filigranas de encantar, consagradas por desmedidos corações pendendo-lhes das orelhas.

Sorrisos e peitos francos, largos, num tagarelar nada próprio das alentejanas, muito mais recatadas e que as farão pela calada. Estas duas não, carregavam desmesurada alegria, uma natural desinibição e desprendimento total, contrastando com o soturno ambiente que as rodeava, pouca gente, sobretudo gente muda e calada, ou seja a pouca gente que ainda frequenta cafés pois a maioria desapareceu, fecha-se em casa ruminando taras, complexos, manias e desgostos diversos nem saindo à rua, ou mal saindo à rua deixando os cafés a um terço ou um quarto da frequência e freguesia que apresentavam há meia dúzia de anos. De entre todos eles, cafés, há agora na minha zona um que decidida e declaradamente não aceita ciganos. Não que eles abundem por estas bandas, para ser sincero há meia dúzia de anos que deixei de os ver por aqui com a regularidade que lhes era habitual, eles, as carroças, os cãezinhos, tão ladinos quão as criancinhas ranhosas que em bando os acompanhavam sempre, saltando por quintais, ora em busca de uma bola, ora de uma torneira onde encherem os sebosos jerricans de plástico, ora um par de calças, um sutiã ou uma blusa esquecida no arame, ora com a desculpa de um raminho de hortelã para a panela ou de uma rosa amarela para oferecerem à matriarca da trupe.

No café que ora os não aceita, antes desta nova gerência era habitual parar por ali, eu e eles, ambos de vez em quando, e de quando em vez lá lhes pagava um bolo ou uma sande, desde que assoassem o ranho do nariz. Elas as criancinhas assim faziam e eu contentinho, contentava-me com a minha boa acção do dia e com o meu moralismo de merda. Isto não o pensei eu, atirou-me certa vez à cara um pai cigano que chegara alguns minutos depois do ranhoso.

- Devolve já o bolo ao senhor e diz-lhe que meta o moralismo no cu Caló ! 

Ao ouvir isto as ciganas na sua esteira, fungando filigranas, não se remeteram a risinhos e sorrisinhos abafados como seria de supor entre nós, não, antes desataram sonoras gargalhadas que só não me deixaram todo vermelhaço por ter já há muito tempo perdido a vergonha. Tentei emendar a situação alegando despreocupada e alegremente sermos velhos amigos, eu e eles, os ranhosos, pois já nos encontráramos ali mais vezes pelo que seríamos “amigos de longa data”.

- Isso é outra conversa, ripostou o pai cigano enquanto recomendava ao Caló e ao Kalé que puxassem as moncadas antes que caíssem no Jesuíta, um bolito tão catita, - Que estão à espera para agradecerem a este senhor meus camafeus ?

Os catraios fungaram, a moncada desapareceu-lhes instantaneamente das fúcias mal eles fungaram e o pai cigano sentou-se despreocupadamente na minha mesa ajeitando o sombreiro, pedindo desculpa, e ordenando à gaiatagem que fosse ver das éguas, virou-se a mim atirando-me um:

- A gente nunca sabe com quem lida e tem que estar sempre com um olho no ciganito e outro no portuguesito sabe o senhor ? Arménio Zíngaro, um amigo ao seu dispor.

E lá continuou debitando a sua lengalenga, sendo aqui que a coisa muda completamente de figura e se torna interessante, dado tudo ter começado com uma ranheta, ou uma ranhada e um ou dois ranhosos terem dado azo a uma conversa entre nós bem bem avançada e, atendendo a que eu bebera um Brandymel a seguir à bica por o tempo estar incerto e haver que prevenir, logo ele aproveitou para me recomendar o licor Beirão, de longe o seu preferido, enquanto dissertava sobre aceitação, tolerância e independência, socorrendo-se no entre meio da conversa, de uma garrafa de Beirão que nem sei como viera parara à mesa, e de Miguel Torga, segundo ele o único de entre nós que compreenderia o seu viver, o viver do seu povo, pondo-me com isto de pé atrás e orelhas em riste.

Um cigano discutindo comigo o existir, o estar e o ser, citava-me Miguel Torga puxando da autoridade de ciganos dos quais eu jamais ouvira falar, mas que no seu mundo (no seu universo corrigir-me-ia ele), seriam estrelas no firmamento do tríptico em que nós profanos e pagão cristãos alicerçávamos o nosso viver, terra, mar e ar, não estando eu de todo certo quanto à correcta interpretação e explanação, aqui, ante vós, do completo e complexo discurso que o cigano aventou.

Ainda hoje não sei quem era ou seria tal personagem, chapéu preto, fato preto, coçado, coçadíssimo, sapatos cambados, barba de duas ou três semanas, mais parecia o meu mano Zé, um cheiro penetrante a fumo, a lume de chão, e sobretudo um saber que me surpreendeu pelo inusitado da coisa e pelo popular mas visível enciclopedismo que o enformava de modo admiravelmente incomum.

E enquanto eu cada vez mais surpreendido abria a boca de espanto, ignorando o mundo que ele me apresentava, ou desvendava, de boca espantada ia conhecendo, entre brandis Mel e licores Beirão a galáxia de divindades, pensadores e poetas que o habitavam e impressionavam. Em simultâneo justificava-se alegando ser a tradição oral a mais forte entre o seu povo, o qual se socorria da poesia e da música, como mnemónicas infalíveis numa filosofia de vida que centrava, confiava e assentava na oralidade da narrativa a sua sobrevivência.

Piscando-me o olho enquanto me dava uma joelhada que mais que incomodar-me me permitiu adivinhar um joelho magro, atirou-me esta pérola, como se rematando a surpresa impossível de escamotear em mim:

- Ora o meu amigo veja a quem e porquê deram há poucos dias o prémio Nobel, é que antes de verbo já cá estavam os Zíngaros, os Sinti, os Rom, os seus rapsodos, os seus aedos e a sua vida simples e boémia ou seja, muito antes da prosa já havia ranhosos !

Isto dito como se para encerrar a crítica ao meu inicial moralismo, tendo-se deixado tomar pelo riso que só parou quando me agradeceu o convite e os bolos dos catraios. Antes de desaparecer entre as mesas do Café Giraldo terá dito para a Sara, que as servia nessa manhã:

- Bem haja esse senhor, estimem-no, há poucos como ele !

Fiquei impávido, e eu que nem o convidara para a minha mesa pois fora ele quem abusiva e ostensivamente nela se sentara, tinha agora uma conta calada para quitar, só em brandys seria uma dúzia deles…


 LIBERDADE ** (by Spatzo) *

Nós ciganos temos uma só religião: a liberdade.
Por ela renunciamos à riqueza, ao poder, à ciência e à glória.
Vivemos cada dia como se fosse o último.
Quando se morre, deixa-se tudo: a mísera carroça ou um grande império.
E, julgamos, naquele momento, que foi melhor ter sido um cigano do que um grande rei.
Não pensamos na morte, não a tememos, eis tudo.
Nosso segredo é este: gozar cada dia as pequenas coisas que a Vida nos oferece
e os outros não sabem apreciar: o amanhecer do dia, um banho na fonte, o olhar de alguém
que nos ama.
É difícil compreender essas coisas, eu sei.
Cigano se nasce.
Agrada-nos caminhar sob a luz das estrelas...
Contam-se estranhas histórias sobre os ciganos.
Diz-se que lêem o futuro nas estrelas
e que possuem o segredo do Amor...
As pessoas não crêem no que não saibam explicar.
Mas, nós não procuramos explicar as coisas em que acreditamos.
Nossa vida é simples, primitiva.
Basta-nos ter por tecto o céu, uma fogueira para nos aquecer,
e, nossas canções quando estamos tristes.

* (Vittorio Mayer Pasquale(Spatzo)-poeta cigano.


“É preciso acreditar. É preciso ter em mente que a água nos benze, a lua nos abençoa, o fogo nos consagra, o ar nos liberta e a terra nos transforma. Só assim teremos os pés no chão, os olhos no horizonte e a mente nas estrelas.”
Descendentes Calon e Kalderash

CIGANOS
Tudo o que voa é ave.
Desta janela aberta
A pena que se eleva é mais suave
E a folha que plana é mais liberta.

Nos seus braços azuis o céu aquece
Todo o alado movimento.
É no chão que arrefece
O que não pode andar no firmamento.

Outro levante, pois, ciganos!
Outra tenda sem pátria mais além!
Desumanos
São os sonhos, também...

MIGUEL TORGA