A verdade é
que nunca gostara de padres, nem de padres nem da sua conversa mole e, desde os
seus tempos de catequese lembrara sempre essa conversa monocórdica como um monólogo
de uma moleza dura, incompreensível, um discurso arengado e intransponível para
a sua mente jovem. Mais tarde, quando capaz de algum discernimento, alguma
sageza, de alguma observação, ou análise, esbarrou com o mesmo discurso
intangível, hermético cuja música raramente lhe soava agradável aos ouvidos, criando nele interrogações ao invés de certezas, ao apresentar-lhe como certas as piores dúvidas.
Devido a tudo
isso se é hoje baptizado tal deve-se somente à tenra idade em que o foi, por
nem ter capacidade de recusa nem argumentação para se opor, nem tinha sequer
outra opção, como aconteceu ao recusar a primeira comunhão e se afirmar, ou recusar anos mais tarde um casamento religioso e encenado na igreja como a
mãezinha tanto queria.
Sendo verdade
que as certezas tremiam não era menos verdade que esse mal não era novo, nem
novo nem de agora. Há muitos anos, mais precisamente no fatídico semestre em que
namorara a Cândida, a fúria do seu amor, a ânsia, a fome de amor que com ela
quisera repartir ou nela saciar fora cegamente travada pelos problemas
existenciais que a habitavam;
- Será pecado o beijo ?
interrogação e obstáculo que ela
demorou demasiado a ultrapassar e o fizeram perder a fé, a devoção, e minou todos os discursos anteriormente ouvidos sobre esse Deus bondoso,
misericordioso, amoroso, e todos os discursos sobre o amor, a dádiva, a
entrega, o sacrifício, a abnegação, a penitência e o perdão.
Entre os
doze treze anos e os quinze dezasseis, ainda oscilou nas opções, agradavam-lhe
as parábolas que incluíssem animais, sobretudo as que terminassem num claro
exemplo moral, especialmente aquelas que comportassem um divino e exemplar
castigo, com o desaparecimento ou a morte dos prevaricadores, dos pecadores.
Deus é amor.
Agradavam-lhe os castigos pesados, um Deus tirano, que castigasse
impiedosamente a maldade, a Lei de Salomão, o olho por olho na própria Bíblia,
a estátua de sal da mulher de Ló, o êxodo dos filhos de Israel conduzidos por
Moisés, a travessia do Mar Vermelho que se fecha e trucida os exércitos do
faraó, os discursos berrados às ovelhas do alto do púlpito pelo padre Bravo, um
bravo que o rebanho entendia e que uma vez ou duas explicou à chapada a um
crente menos crente a sapiência e a infalibilidade do Senhor.
Deus nunca se
engana.
Porém, não
sendo ele o padre bispo na zona, Deus correu com o transparente padre Bravo e, pela mão
ou pela boca do padre Macário voltaram os discursos herméticos cuja pedagogia
não era percebida, quanto mais assumida por um rebanho hesitante no rumo e que se
foi paulatinamente dispersando da igreja, da paróquia e na vida, tanto mais que
o padre Macário nunca foi homem para lhes fazer uns desenhos ou os meter no
caminho certo, nem à estalada.
Quanto a ele,
digo a mim e à Cândida, o apelo da selva era mais forte, a animalidade exigia
urgência na satisfação dos ímpetos temendo que, caso contrário, como ao homem
tornado fera, ao bater das doze badaladas, possuído e possesso, me transmutasse
em lobisomem. Por isso também eu exigia no momento em que a fé me acossava e a
devoção me atormentava e tornava um incubo, que ela por mais cândida que fosse,
se submetesse à minha vocação, à minha vontade, ao destino, à sina, ao fado.
Volta não
volta a cena voltava a repetir-se, Amália intransigente, ele dominador e
inconsequente como sempre, o divórcio mais que uma certeza no horizonte, ambos
irredutíveis, irreconciliáveis, ela mantendo-se fiel a Santo Antão, ele
derivando para a igreja da Sé, onde por certo não esbarraria nela. Contudo e apesar
de tolinha Cândida nunca se submetera à sua vontade, sua dele, pelo que cedo
acabaram, cada um retornando à sua paróquia, esquecendo os sonhos e os caminhos
que haviam jurado palmilhar juntos, juntinhos. A mesma fé que os unira os
separara, um padecendo de dúvidas outro com demasiadas certezas.
Ora é
precisamente neste entreacto que aparece o padre Madureira da Silva e o seu
discurso da conversão* discurso que eu chamaria antes de tradução pois que o
dito padre quase, quase nos faz desenhos para explicar na perfeição como devia
ser aberto, claro e sucinto o linguajar da igreja, casa onde mais parece falar-se
chinês para um público maltês, cada vez menos disposto a ouvir quem quer que
seja, ou a perder tempo com o que não seja imediatismo, futilidade,
materialismo e desvario.
Não são a
cultura moderna e o neoliberalismo os únicos culpados pela dispersão do rebanho
e pelo afastamento da palavra de Deus, é sim o cepticismo que a igreja
permitiu, cultivou e até acarinhou no seu mundo, pois neste outro mundo real em
que vivemos, na senda do racionalismo e do iluminismo, o grosso do rebanho
logrou libertar-se de anátemas ainda que não de dogmas, e fugiu do hermetismo
religioso sem que o tenha, (ou a igreja o tenha) substituído por algo mais
proveitoso.
A igreja permitiu gradualmente que a palavra de Deus surgisse ilegível,
intraduzível, incompreensível, manipulável, e por fim dispensável por
desnecessária. No fundo tratar do homem enquanto ser humano sem perder o pé,
como sabemos que se fez desde a antiguidade clássica com Sócrates, Agostinho de
Hipona, até aos tempos mais recentes da corrente existencialista e de Simone de
Beauvoir, Jean Paul-Sartre, Boris Vian, do nosso Vergílio Ferreira e a nossa
Maria Judite de Carvalho, de Kafka, André Malraux, Albert Camus, etc etc etc numa
tradição de liberdade e responsabilidade que entre nós nunca foi muito respeitada.
Culpas natural
e igualmente também da escola e da igreja, culpas nossas também por não
buscarmos um caminho alternativo e avançarmos às cegas. O padre Madureira da
Silva vem agora dizer que a igreja há muito devia ter gritado que a conversão é
a mudança, é mudança de mentalidade, é escolha, é opção, é um caminho mais
claro, mais limpo e com menos escolhos que aquele que o neoliberalismo e outros
ismos nos oferecem, convidam e incitam a percorrer. Converter-se não é trocar
paganismo por cristianismo ou vice-versa, é trocar o materialismo mercantilista
por algo mais concordante com o que quer que seja o humanismo ou a alma, é ser
solidário, ser, ser, ser, mais que ter, é ser.
No fundo uma
questão de dignidade, para nós e para os demais, uma questão de sanidade,
pessoal, mental, moral, e social, uma caminhada para uma concepção social da
vida em vez de individual e que substitua a fatalidade que aceitamos sem
contestar, uma concepção que nos una, em vez do abandono a que votamos o outro.
No fundo a questão da busca de um projecto de sociedade, dum projecto que
despreze soluções pessoais ou individuais e procure soluções nacionais,
colectivas, no fundo a libertação pela coesão, pela assumpção de
responsabilidades universais, acima de egoísmos, acima de privilégios, pelo
regresso da palavra de Deus, pelo regresso da igualdade, da paridade, da
palavra bem explicada, bem traduzida, se necessário com um desenho, como o
padre Madureira da Silva teórica e exemplarmente fez.
Amadeu
recortou o texto do jornal, meteu-o num envelope cor-de-rosa com um coração bem
vermelho e rebordado a branco, branco de pureza, e deixou-o displicentemente em
lugar onde sabia de antemão ser encontrado por Amália. A partir daqui há
pormenores da história que posso imaginar mas não conheço, terão jantado juntos
como havia muito tempo não faziam, terão procurado o quarto e a cama com alguma
apreensão e desconfiança, tê-la-ão abandonado horas depois curados, completos,
animados, entusiasmados, decididos, convertidos.
O divórcio
foi esquecido, a decisão pendera para um país europeu onde encontrassem democracia,
justiça, solidariedade, igualdade, paz, futuro, trabalho, emprego, onde fosse
possível sonhar, ter certezas, família, onde imperasse a verdade e a
honestidade, a franqueza. Curiosa e casualmente escolheram o menos religioso de
todos, é apenas um pouco frio. **
** Atenção, a leitura deste texto não dispensa a consulta do artigo original do Padre Madureira.