Mal as vi o
pensamento fugiu-me para as bandas do Minho, de Viana do Castelo, onde uma vez,
em férias, esbarrara com um aparato fantabulástico como diria a minha bizinha
do 4º Esquerdo. Rodas, folhos e mais folhos nas saias rodadas, blusas alegres e
o peito como prateleira, montra ou altar de filigranas de encantar, consagradas
por desmedidos corações pendendo-lhes das orelhas.
Sorrisos e
peitos francos, largos, num tagarelar nada próprio das alentejanas, muito mais
recatadas e que as farão pela calada. Estas duas não, carregavam desmesurada
alegria, uma natural desinibição e desprendimento total, contrastando com o
soturno ambiente que as rodeava, pouca gente, sobretudo gente muda e calada, ou
seja a pouca gente que ainda frequenta cafés pois a maioria desapareceu,
fecha-se em casa ruminando taras, complexos, manias e desgostos diversos nem saindo
à rua, ou mal saindo à rua deixando os cafés a um terço ou um quarto da
frequência e freguesia que apresentavam há meia dúzia de anos. De entre todos
eles, cafés, há agora na minha zona um que decidida e declaradamente não aceita
ciganos. Não que eles abundem por estas bandas, para ser sincero há meia dúzia
de anos que deixei de os ver por aqui com a regularidade que lhes era habitual,
eles, as carroças, os cãezinhos, tão ladinos quão as criancinhas ranhosas que
em bando os acompanhavam sempre, saltando por quintais, ora em busca de uma
bola, ora de uma torneira onde encherem os sebosos jerricans de plástico, ora
um par de calças, um sutiã ou uma blusa esquecida no arame, ora com a desculpa
de um raminho de hortelã para a panela ou de uma rosa amarela para oferecerem à
matriarca da trupe.
No café que
ora os não aceita, antes desta nova gerência era habitual parar por ali, eu e
eles, ambos de vez em quando, e de quando em vez lá lhes pagava um bolo ou uma
sande, desde que assoassem o ranho do nariz. Elas as criancinhas assim faziam e
eu contentinho, contentava-me com a minha boa acção do dia e com o meu
moralismo de merda. Isto não o pensei eu, atirou-me certa vez à cara um pai
cigano que chegara alguns minutos depois do ranhoso.
- Devolve já
o bolo ao senhor e diz-lhe que meta o moralismo no cu Caló !
Ao ouvir isto
as ciganas na sua esteira, fungando filigranas, não se remeteram a risinhos e
sorrisinhos abafados como seria de supor entre nós, não, antes desataram
sonoras gargalhadas que só não me deixaram todo vermelhaço por ter já há muito
tempo perdido a vergonha. Tentei emendar a situação alegando despreocupada e
alegremente sermos velhos amigos, eu e eles, os ranhosos, pois já nos
encontráramos ali mais vezes pelo que seríamos “amigos de longa data”.
- Isso é
outra conversa, ripostou o pai cigano enquanto recomendava ao Caló e ao Kalé
que puxassem as moncadas antes que caíssem no Jesuíta, um bolito tão catita, - Que
estão à espera para agradecerem a este senhor meus camafeus ?
Os catraios
fungaram, a moncada desapareceu-lhes instantaneamente das fúcias mal eles
fungaram e o pai cigano sentou-se despreocupadamente na minha mesa ajeitando o
sombreiro, pedindo desculpa, e ordenando à gaiatagem que fosse ver das éguas,
virou-se a mim atirando-me um:
- A gente
nunca sabe com quem lida e tem que estar sempre com um olho no ciganito e outro
no portuguesito sabe o senhor ? Arménio Zíngaro, um amigo ao seu dispor.
E lá
continuou debitando a sua lengalenga, sendo aqui que a coisa muda completamente
de figura e se torna interessante, dado tudo ter começado com uma ranheta, ou
uma ranhada e um ou dois ranhosos terem dado azo a uma conversa entre nós bem
bem avançada e, atendendo a que eu bebera um Brandymel a seguir à bica por o
tempo estar incerto e haver que prevenir, logo ele aproveitou para me
recomendar o licor Beirão, de longe o seu preferido, enquanto dissertava sobre
aceitação, tolerância e independência, socorrendo-se no entre meio da conversa,
de uma garrafa de Beirão que nem sei como viera parara à mesa, e de Miguel
Torga, segundo ele o único de entre nós que compreenderia o seu viver, o viver
do seu povo, pondo-me com isto de pé atrás e orelhas em riste.
Um cigano
discutindo comigo o existir, o estar e o ser, citava-me Miguel Torga puxando da
autoridade de ciganos dos quais eu jamais ouvira falar, mas que no seu mundo
(no seu universo corrigir-me-ia ele), seriam estrelas no firmamento do tríptico
em que nós profanos e pagão cristãos alicerçávamos o nosso viver, terra, mar e
ar, não estando eu de todo certo quanto à correcta interpretação e explanação,
aqui, ante vós, do completo e complexo discurso que o cigano aventou.
Ainda hoje
não sei quem era ou seria tal personagem, chapéu preto, fato preto, coçado, coçadíssimo,
sapatos cambados, barba de duas ou três semanas, mais parecia o meu mano Zé, um
cheiro penetrante a fumo, a lume de chão, e sobretudo um saber que me
surpreendeu pelo inusitado da coisa e pelo popular mas visível enciclopedismo
que o enformava de modo admiravelmente incomum.
E enquanto eu
cada vez mais surpreendido abria a boca de espanto, ignorando o mundo que ele
me apresentava, ou desvendava, de boca espantada ia conhecendo, entre brandis Mel
e licores Beirão a galáxia de divindades, pensadores e poetas que o habitavam e
impressionavam. Em simultâneo justificava-se alegando ser a tradição oral a
mais forte entre o seu povo, o qual se socorria da poesia e da música, como mnemónicas
infalíveis numa filosofia de vida que centrava, confiava e assentava na
oralidade da narrativa a sua sobrevivência.
Piscando-me o
olho enquanto me dava uma joelhada que mais que incomodar-me me permitiu
adivinhar um joelho magro, atirou-me esta pérola, como se rematando a surpresa impossível
de escamotear em mim:
- Ora o meu
amigo veja a quem e porquê deram há poucos dias o prémio Nobel, é que antes de
verbo já cá estavam os Zíngaros, os Sinti, os Rom, os seus rapsodos, os seus
aedos e a sua vida simples e boémia ou seja, muito antes da prosa já havia ranhosos
!
Isto dito como
se para encerrar a crítica ao meu inicial moralismo, tendo-se deixado tomar
pelo riso que só parou quando me agradeceu o convite e os bolos dos catraios. Antes
de desaparecer entre as mesas do Café Giraldo terá dito para a Sara, que as
servia nessa manhã:
- Bem haja
esse senhor, estimem-no, há poucos como ele !
Fiquei
impávido, e eu que nem o convidara para a minha mesa pois fora ele quem abusiva
e ostensivamente nela se sentara, tinha agora uma conta calada para quitar, só
em brandys seria uma dúzia deles…
Nós ciganos temos uma só religião: a liberdade.
Por ela renunciamos à riqueza, ao poder, à ciência e à glória.
Vivemos cada dia como se fosse o último.
Quando se morre, deixa-se tudo: a mísera carroça ou um grande império.
E, julgamos, naquele momento, que foi melhor ter sido um cigano do que
um grande rei.
Não pensamos na morte, não a tememos, eis tudo.
Nosso segredo é este: gozar cada dia as pequenas coisas que a Vida nos
oferece
e os outros não sabem apreciar: o amanhecer do dia, um banho na fonte,
o olhar de alguém
que nos ama.
É difícil compreender essas coisas, eu sei.
Cigano se nasce.
Agrada-nos caminhar sob a luz das estrelas...
Contam-se estranhas histórias sobre os ciganos.
Diz-se que lêem o futuro nas estrelas
e que possuem o segredo do Amor...
As pessoas não crêem no que não saibam explicar.
Mas, nós não procuramos explicar as coisas em que acreditamos.
Nossa vida é simples, primitiva.
Basta-nos ter por tecto o céu, uma fogueira para nos aquecer,
e, nossas canções quando estamos tristes.
* (Vittorio Mayer Pasquale(Spatzo)-poeta cigano.
“É preciso acreditar. É preciso ter em mente que a água nos benze, a
lua nos abençoa, o fogo nos consagra, o ar nos liberta e a terra nos
transforma. Só assim teremos os pés no chão, os olhos no horizonte e a mente
nas estrelas.”
Descendentes Calon e Kalderash
CIGANOS
Tudo o que voa é ave.
Desta janela aberta
A pena que se eleva é
mais suave
E a folha que plana é
mais liberta.
Nos seus braços azuis
o céu aquece
Todo o alado
movimento.
É no chão que arrefece
O que não pode andar
no firmamento.
Outro levante, pois,
ciganos!
Outra tenda sem pátria
mais além!
Desumanos
São os sonhos,
também...
MIGUEL TORGA