Naquela
noite em especial ela gostara de o ouvir, gostara e dissera-lho, ao que ele
respondeu de modo algo petulante:
-
Ainda tu não me ouviste falar durante o dia.
Para
quem tenha assistido à cena terá mesmo parecido petulância, contudo não abonará
em prejuízo da verdade sabermos não ter havido quaisquer testemunhas.
Nem
era véspera de todos os santos, era mesmo o primeiro de Novembro, data que
começara sendo assinalada logo pela manhã, todavia num dia tão marcante para os
cristãos não consta que os sinos tenham tocado a rebate, ainda que tenham soado
repicando todo esse santo dia.
Quer
num quer noutro dos cemitérios da cidade, os mortos da família aguardaram solenemente
todo o dia a visita que ele lhes não fez, contudo lembrou-os com uma exaltação
inusual mas apropriada, sentindo-se nesse feriado mais feliz que o habitual e
deveras aliviado por finalmente o Senhor os ter chamado a Si. O sofrimento de
ambos tivera finalmente fim e ele, livre dos elevados custos dos esmerados
cuidados, serviços de saúde e paliativos que clandestinamente lhes prestavam,
pudera então trocar de carro e adquirir em cento e vinte módicas prestações uma
admirável viatura que faria as suas delícias e provocaria a inveja dos demais.
Para
quem esteja por dentro da cena, da coisa, será fácil acreditar não se ter
tratado de petulância, ele era extrovertido e brincalhão, um tipo às direitas,
nos antípodas de um petulante, ela comprovou-o no fim desse jantar durante o
qual a conversa nem derivara em nenhuma direcção particular, antes abarcara no
geral variadíssimos temas sem ao menos aprofundar qualquer deles. Tinha sido um
lindo e lauto jantar com flores na mesa e à luz de velas, por se ter ido abaixo
a corrente eléctrica ou algum deles se ter esquecido de pagar a conta da luz.
Não
era normal acontecer jantarem de modo romântico, nem esquecerem pagar
as contas, mas acontecera e, sem luz, recolheram ao quarto mais cedo que seria
habitual, nem sequer estavam familiarizados um com o outro e ambos temiam que a
coisa pudesse correr mal. Mas não correu, correu até melhor que teriam
imaginado, ou sonhado, e ainda que uma vez mais haja tantas testemunhas como
quando ele lhe parecera um petulante, ou mesmo não havendo testemunhas, só o Senhor
saberá quanto se aplicaram, entregaram e amaram.
Na
confusão da excitação e do escuro como breu ele nem logrará negar com veemência ter titilado onde mais lhe tenha agradado, jamais porém esquecerá a tremura
experimentada e que o acometeu ao passar-lhe a ponta da língua p’los lábios
finos, mais precisamente aquele exacto momento em que outra ponta tocou a sua,
momento acerca do qual se tornaria incapaz de afiançar ter alguém accionado
o interruptor e desligado a pouca luz que um abajur derramava e onde ela depositara umas calcinhas azuisinhas, rendilhadas, a fim de coar aquela luz
metediça e que por isso o quartito nem ficara transparente nem opaco, deixando
escapar somente uma aurora azulada, celestial.
Naturalmente a confusão já se
lhe instalara no espírito, confundindo-se-lhe tudo e olvidando-lhe que o corte
da corrente eléctrica era uma constante e o accionar do interruptor uma
variante ocasional e irracional, possibilidade aceitável únicamente por quem dominasse o sentido das coisas ou da razão e, como corpo na corrente caudalosa
dum rio agarrando-se a um tronco, assim ele se deixava arrastar ao sabor da
emoção.
Não
havendo a certeza de nada lembra tudo isto sem comoção, comoção verdadeira, da
que provoca baques no coração. Recorda o abraço apertadinho, o sussurro, o tudo
com jeitinho para não a assustar não fosse a passarada esvoaçar para longe,
onde se não ouvissem os sinos repicando, ou onde não houvesse o juntinhos, o
coladinhos, o pegadinhos, os pontos cardeais vogando sem tino na maré duns
alvos lençóis de linho, perdidos ambos numa tempestade de desejos, navegando
sem bússola, agarrados a uma manta colorida entretecida por mãos de fada agora
sem saberem ao que agarrar-se e agarrando-se a tudo com o desespero do amor, a
perseverança do carinho, a violência da ternura, como se estivesse nas suas mãos o destino, a sina, o fado que só Deus podia cantar-lhes quando, de novo
lhe voltaram as tremuras ao passar-lhe com a língua nos lábios finos e molhados
ao longo dos quais fez deslizar a ponta, esses lábios se lhe entreabriram abrindo-lhe as portas do paraíso e no paraíso uma maçã que comeu
sofregamente, uma maçã verde de sabor agridoce cujo sumo o levou a ajoelhar-se
como por respeito se venera e ora a um sumo-sacerdote das coisas em que se crê.
Por isso ávido a sugava, sugava a vida a felicidade e o amor como se o amanhã
não existisse e, porque insistisse e lhe parecesse que outra língua, outra
ponta tocasse a sua, fechou os olhos desejando ardentemente adormecer quando as
coxas dela, macias e quentes se contraíram de encontro às suas faces, onde uma
barba de dias arranhava como lixa aquela pele de pêssego cheirando a rosas
cujas pétalas, tal qual uma flor, se beijam com amor.
E como Deus descansou ao sétimo dia também eles descansaram e dormiram,
juntinhos, coladinhos, pegadinhos, um no outro, os dois em um como prometia
solenemente a SATA* no plasma ligado no quarto, ou o Clube Fluvial Portuense
no dia de S. Valentim** abrindo aos sócios as entradas acompanhados,
acompanhados talvez também por quem com eles partilhasse o juntinhos, o
coladinhos, o pegadinhos, acompanhados por quem os auxiliasse na busca dos
pontos cardeais, ou quem sabe a superar uma qualquer tempestade ensinando-os a navegar sem bússola, bem tapadinhos com uma manta colorida e feita à mão com devoção.