segunda-feira, 28 de novembro de 2016

400 - ENQUANTO FUMO UM BOM CHARUTO ...




Há semelhanças separando-nos entre as diferenças que nos unem,
amei-te em tempos, como me amaram, depois, contudo, todavia, porém.

Não foram ciumes, foram dúvidas, ilusões, apreensões,
foram desilusões piores que cepticismo,
e as certezas, absurdos inaceitáveis, visões inverosímeis.

Os relógios sem corda, parados no tempo errado,
inda que certos duas vezes ao dia,
só, sós,
numa feérica ilusão de harmonia.

Harmonia pré-fabricada,
com pós-verdades, como agora se diria,
esquecido Cabrera Infante, Dulce Loynaz,
José Lezama, Reinaldo Arenas, Heberto Padilla,
e o outro, Camilo Cienfuegos, Huber Matos e outros, tantos outros.

Um cenário p'ra inglês ver, a virtude, a inocência inicial, o pecado capital,
a felicidade forçada, decretada, imposta, o improviso guindado a arte,
a arte sem arte urbana, a arte urbana tornada kitsch,
o kitsch duma matrioska, a matrioska como o handcraft suiço,
feito à mão em fábricas ultra modernas, o kitsch em série,
o artesanato nato, infalível, nado e criado com injectoras de alta pressão,
para alumínio, para plástico, ou em modernas impressoras 3D.

Enquanto lá, sem WiFi a vida não dá, e todos, peões de brega,
iguais, iguaizinhos, igualizados, maquinados, formatados, alinhados,
alienados, alinhavados,
pegando a vida de cernelha,
agarrando-se à ínfima centelha com que se acendem os charutos,
enrolados à la main, bloqueados, contrabandeados, falsificados,
condenados, malfadados, apreendidos, mitificados, amados, sagrados,
símbolos de irreverência, de subserviência, paciência, impaciência,
despotismo, abuso, prepotência, arbitrariedade, 
a resiliência d'uma causa justa que virou incerta,
de quem já nada se diz de ciência certa.

Apagou-se a vela,
lamenta-se ou aplaude-se,
agora sim começou uma querela,
e a divinização, a canonização,
que tempos estes os da pós–verdade,
sem magia, sem credo, sem fé,
onde,
tudo é gozo, riso, mentira,
quem diria aqui chegarmos,
vejam só a ironia.

Ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah !


quarta-feira, 23 de novembro de 2016

399 - BRAVO, JERÓNIMO ! * por Maria Luisa Baião

          
           Atravessava um destes dias o nosso burgo, quando ao descer precisamente a Rua de Burgos me lembrei que não deveria deixar passar em claro a tão comentada exposição de Marcelino Bravo, ali à Delegação Regional de Cultura do Alentejo. Em boa hora o fiz, porque não me arrependi, antes pelo contrário.

            A primeira impressão que colhi foi precisamente aquela que as páginas deste diário tinham já anunciado, cores fortes, quentes e emotivas. A segunda impressão foi-me transmitida pelo dinamismo das curvas do seu traço, lembrando o estilo “arte nova” do início do século XX, em que o real era, e contínua a ser pelo que vi, traduzido num estilo livre mas fortemente evocativo, um traço indelével de automatismo nas formas que caracterizou a pintura dessa época.

           Como então, a arte de Marcelino Bravo exige uma particular atitude para ser olhada, pois deixa transparecer uma mestria, uma dextria própria, não incompatível com a grande disciplina das formas e imagens.

            Nelas encontramos originalidade conceptual e um forte sentido de estrutura. É também perceptível uma suave distorção da realidade, o que só acentua a força de expressão das suas emoções interiores e de onde resulta certamente o jogo quente das cores que o individualizam e libertam da realidade natural.

            A policromia, as cores vivas, fazem lembrar as paletas dos impressionistas e neo-impressionistas, e revelam um mundo muito particular de relações cromáticas, (expressionismo?), decididamente liberto de inibições quanto ao uso da cor e de convenções quanto às formas.

     Alguns traços geométricos revelam vagamente o “realismo cubista, ou preciosismo”, no entanto Marcelino Bravo não abandona as formas, às quais dá como assinalei, notável relevo pictórico, de realçar o vermelho puro, incendiado, na tela com Monsaraz ao fundo.

            São sobretudo as suaves distorções das formas e as cores que acusam na sua obra um traço expressionista, linhas e cores dissonantes, apontando para a natureza certamente hipersensível do artista, expressionismo bem patente na forma como é expressa (perdoem-me a redundância) a sua ligação e amor a Évora e ao Alentejo. As formas geométricas de composições como “Évora Património” apontam na direcção do expressionismo abstracto que Marcelino Bravo não concretiza, quanto a mim felizmente, para que se não perca a fácil identificação da sua forte raiz alentejana e eborense. Gostei, muito.
            E mal saí do nº 5, não me contive, e entrei no nº 6 da mesma rua, na “Galeria Jerónimo”, uma entre tantas lojas de artesanato, que contudo esconde mistérios insondáveis.

            É o refúgio conhecido de Jerónimo Amaral ** artista ignorado que todavia leva no rol vasto número de exposições de esculturas em ferro. Diferentes composições, mas todas elas figurativamente características e possuidoras de uma intensidade selvagem.

            Apresentando um grande contraste entre as diferentes obras, a sua criatividade tem um sentido de mistério que tanto nos inspira harmonia e paz como revolta, protesto, ou algo de grotesco. Jerónimo Amaral espanta-nos com a sua criatividade e técnica, virtuosa e radical ao mesmo tempo, e parece não conseguir esgotar as virtuosidades e possibilidades de cada tema a que deita mãos. Estranhas, desconjuntadas e distorcidas nas suas formas anatómicas, os seus temas emergem como criações “surrealistas”, em que o compromisso com a violência serve por vezes de mensagem e suporte à defesa do ambiente, mas que não quebram totalmente com o racional, ainda que procurem uma beleza chocante que porém fica tenuemente presa à racionalidade e á lógica. Mais que acusando traços das “Construções em relevo” do movimento “construtivista”, Jerónimo Amaral faz a sua própria escultura de materiais que vai reciclando, desperdícios metálicos, lixo, e criando figuras e formas de impacto impressionante, muito engenhosas e não raras vezes animalistas. Simplicidade e simbolismo são características de todas as suas esculturas em ferro, misto de uma visão de “outsider” e de “técnicas de colagem” na escultura.

            Se algumas das suas obras parecem revelar “histeria nascida em estúdio”, o artista, o homem, o outsider, é contudo uma paz de alma e fonte de simpatia. Jerónimo Amaral gostaria talvez de ser anti-social, não o consegue, trai-se a cada sorriso e involuntariamente deixa transparecer um calor humano que gera de imediato forte empatia. Essa sua faceta trai a concepção “dadaísta” que desejariam atribuir à sua obra, obra em que não existe uma recusa da procura do belo pelo insólito.  

             Muitos anos de vida para o Jerónimo Amaral. **

             Vão ver com os vossos olhos. 
_________________________________________________________________

Nota minha: Não faltem à "PRESENÇAS" de Marcelino Bravo na Biblioteca Pública de Évora !!
O "home" só expõe de quinze em quinze anos !! Aproveitem !! 


* Publicado in DIÁRIO DO SUL –  “Kota de Mulher” - 01-02-2001 by Maria Luísa Baião

** O saudoso  amigo Jerónimo Amaral já não se encontra infelizmente entre nós.

Perfil de Marcelino Bravo no Facebook:  https://www.facebook.com/marcelino.bravo.56/photos?lst=100000792991962%3A100004495483657%3A1481581098&source_ref=pb_friends_tl



domingo, 20 de novembro de 2016

398 - ARMINDINHA, AI MINHA MENINA …...........



Eu teria quinze anos e a Arminda uns dezoito, ligeiramente mais alta e encorpada tentava impressionar-me dando às asas, digo aos braços, tentando assim aumentar o tamanho do peito, tinha um peitinho pequenino, uma coisa miudinha, linda, lembro-me tão bem. Parecia um anjinho de pele branquinha dando às asinhas e eu dizia-lho. Aos quinze anos já tinha um bom rol de paixões vividas e consumadas, embora com a Arminda fossem só devaneios e arrebatamentos de rapazes, digo de jovens, pois nunca tomei sequer um café com a Arminda. Um dos aromas de que gosto e sempre gostei é o do café, adoro-o, adorava-o e quando ia a passando, calhando haver uma cafetaria era fatídico, entrava para uma bica escaldada.

Quanto à Arminda sempre gostei dela por outro motivos, se bem que ela depois de casar com o senhor Óscar se tenha enchido de brios e nem quando ele morreu ou mesmo depois de ultrapassada a dor da perda me tenha voltado a querer. Hoje compreendo-a, o senhor Óscar não deixara filhos, a mercearia enriquecera-o, se bem que já fosse rico à data em que a fundara pois que para tal tinha adquirido o Palácio do Farrobo* e, num golpe de sorte o estado veio a adquirir-lho para nele instalar o actual edifício do Registo Civil e Tribunal tendo feito dele, Óscar, num golpe de sorte e dum dia para o outro um homem rico. A mercearia veio a ser inaugurada menos de cem metros mais abaixo, ou mais à frente, na vertente da Rua de Machede** virada para o pequeno Jardim do Bacalhau, na verdade um muito melhor local que o inicialmente pensado Palácio do Farrobo. Anos mais tarde, após muitas sovas e cheia de filhos, Armandinha cedeu e, muitos dos eborenses se lembrarão ainda, o espaço foi por ela dado de arrendamento para loja de louça de barro que, à direita de quem subia a dita rua se manteve aberta durante quase duas décadas. 

Era esta riqueza ou esta herança que a Arminda acautelava, não se deixando levar nem tão pouco por devaneios embriagados no mar de fardos de bacalhau por onde tantas vezes vogámos. Um parêntesis para vos dar conta do meu melindre, já que a Arminda me colocou de parte com receio que a viesse a enganar ou a tornar-me oportunista por mor da herança dela, para no fim acabar nas mãos dum magala do Regimento de Artilharia 16 que lhe batia e detestava o fiel amigo. Mas enfim, arbitrariedades da vida. Gostar da Arminda teve sempre muito a ver com o facto de eu adorar o olor das mercearias antigas, daquelas que tinham feijão e grão a granel, e arroz, e açúcar, em cubas de madeira na loja e que demolhavam os fardos de bacalhau, nesses tempos humedecido de propósito para pesar mais sendo guardado num armazém das traseiras, bacalhau que depois um facalhão de eixo, tipo guilhotina, articulado e preso ao mármore do balcão cortava em postas bem pesadas.

 Como já disse eu adorava aquele odor e por arrastamento o cheirinho da Arminda, a marçana por trás do balcão e com quem, por vezes, eu brincava ao esconder no armazém, entre fardos de bacalhau, sempre atento à vinda do senhor Óscar, o merceeiro a quem a Mercearia Do Farrobo enriquecera. Ricas pernas tinha a Arminda, isto recordo agora por falarmos em riqueza, hoje talvez não tivesse quem a apreciasse como eu, era cabeluda do umbigo ao rabo e, mesmo às escuras e no meio dos fardos adorava passar-lhe a mão pelo ondulado do cabelo negro ou pelas tranças que, de vez em quando com vagar uma amiga lhe entrançava e lhe caíam até meio das costas, até ao rabo para ser mais preciso que estas coisas da clareza e da objectividade são um esforço que vos devo.

Passados bem poucos anos passeando-me eu pela baía de Luanda sou agarrado por trás com alguma violência por um tipo que não demorei a identificar pelo cheiro, era o escurinho, o monhé, o menino Teles de Menezes, o magala que arriava na Arminda e que fora mobilizado por castigo. Sempre cheirara a caril dos sovacos. Esturrara grande parte da fortuna dela e numa sova maior que lhe dera saíra-lhe a sentença em rifa. A queixosa fora directa ao comandante da unidade que depois de aplicar um correctivo ao magala providenciou para que ele entrasse nos eixos tendo-o despachado para a longínqua Angola… Antigamente não havia condenação penal da violência doméstica é certo, mas existiam meios muito mais expeditos de acabar com ela de um minuto para o outro, hoje a democracia, os tribunais e os advogados enfernizam e eternizam tudo…

Foi assim que a Arminda primeiro se viu livre de mim, um gaiato, para se entregar nas mãos de um homem feito, com mais três ou quatro anos que eu, cinco no máximo, que por sua vez fez dela uma mulher a sério, uma mulher com sofrimento e tudo, coisa de que eu jamais teria sido capaz. Não me salvei porque nunca pensara converter-me de alma e coração às delícias da Arminda, como sempre concordáramos nunca passou dum devaneio de juventude, um amor de perdição pelo seu cheirinho a bacalhau, uma pele tentadora e macia como grão-de-bico cozido e um hálito permanente a menta e a café. Sinceramente nunca me vi como marçano, nem sequer sonhei com tal coisa, mas com a Arminda foi outra loiça… 

               Uma postinha de pescada da melhor… 


* http://viverevora.blogspot.pt/2011/06/evora-perdida-no-tempo-interior-do.html# 

** http://monumentosdesaparecidos.blogspot.pt/2012/01/palacio-do-farrobo-evora.html


Jardim do Bacalhau


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

397 - TIRAR O CAVALINHO DA CHUVA ............…..


Andava eu concentrado no estudo e apreciação de Enrique Vila-Matas, um jornalista espanhol, escritor conceituado, e às voltas com um seu livro, mais concretamente a sua “História Abreviada da Literatura Portátil“ uma obra absurda que estava a gostar de digerir e eis que a internet me prodigaliza uma sua entrevista, a propósito de um outro livro e da arte da escrita, da literatura, em que ele, lato sensu, eleva esse conceito a um extremo cuja tese defende tudo ser narrável.

Portanto estava neste ponto quando uma minha amiga e a propósito de um pequeno ditirambo meu na minha página pessoal duma rede social, que entrosou, entroncou, encaixou, combinou com modesto texto meu, o anterior a este, me pergunta se o que eu estava a dizer, a escrever, ou descrever, era mesmo uma pinocada (termo dela) termo que posteriormente e de acordo com o espírito do ditirambo alterou para pilonkada, ao que eu respondi sim, estava mesmo a escrever sobre ritmos músicais e sincronização sincopada duma pinocada pontual, pinocada, ou antes pilonkada … Adiante esclareceremos o termo, pois sendo tudo narrável segundo a teoria de Enrique Vila-Matas, este qui pro quo com a minha amiga Ermelinda não pode deixar de ser aproveitado por mim como motivo de salutar ocupação dos meus tempos livres, o que gosto de fazer quer lendo quer escrevendo. 

O texto a que ela se referia, e cujo link vai ser o primeiro no rodapé deste texto é um texto pessoalíssimo, sobre uma situação velhíssima e de difícil leitura se não estivermos atentos. Claro que hoje em dia as pessoas estão desatentas e excessivamente focadas no imediato, tendo dificuldade ou sendo incapazes de imaginar um contexto diferente daquele em que vivem, diferente do presente. Era um texto que recordava Néli, que só me procurava quando todos dormiam, ou quase todos, e que sem barulho se anichava em mim, em conchinha, quando nem o suor ou a areia nos incomodavam, mas travavam. Era esguia e magrinha, era bela, marcháramos uma semana sob condições péssimas e nem isso lhe retirara a beleza, nem o ânimo, nem a doçura…

Uma cena com uns bons anos e na génese da questão trazida à baila pela Ermelinda, esquecida de quando apareceu a musiquinha do Emanuel “Pimba Pimba” toda ela como sabemos explorando as possibilidades ilimitadas da língua portuguesa e da brejeirice. Não pude esquecer-me, ou não pude deixar de me lembrar que há umas décadas, quando não havia CD’s nem MP4 nem MP3 e as cassetes davam os primeiros passos, não havendo WiFi nem internet, não deixava todavia de haver outros povos e outras línguas igualmente alegres e brejeiras os quais, tendo num qualquer dia calhado conseguirem uma boa caçada, um gnu, uma gazela ou uma pacaça, havendo carne ao jantar, e festa e batuque, ou seja música, logo cantos e ritmos estariam assegurados. Foi precisamente aí e numa dessas ocasiões que vi como os outros (em cuja pele custamos a meter-nos) têm ou disfrutam igualmente de matreirice e sentido de humor, não sendo esses atributos exclusivos nossos, colonizadores ou velhos colonizadores, membros honorários da civilização que ora atropelamos...

Pois foi tal e qual assim que, acertando o ritmo com a pancada ou batida do tambor, ela, desvirtuando propositada e sagazmente a letra duma canção popular, (África ainda não teve o seu Giacometti nem a sua pesquisa e recolha de fórmulas orais e étnico musicais do canto tradicional mas, quando acontecer demorarão séculos a compilar pois serão aos milhões), e desvirtuando intencionalmente o vocabulário acertava o ritmo dizia eu, sussurrando-me ao ouvido, Pilonkan, Pilonkan, Pilonkan, desafiando-me a bater forte tal qual o pilão bate na cuba onde é amassada a mandioca, tal qual a palavra, distorcida, ia na boca dela tomando vários sentidos, conforme o contexto em que se inseria ou ela a queria inserir, convidando-me igualmente dessa forma a "dar-lhe" forte e feio, que é como quem diz "bate com o pilão" bem fundo e com força, subentendido evidentemente desde que não partisse o pistilo, ou pilão, nem o almofariz.

Muitíssimas palavras em variadíssimas línguas tomam diversíssimos significados, e esta que me foi sussurrada convidava-me a que me desse, lhe desse forte, ou a "declarar-me", ou a dar-lhe a boa nova do meu amor e a intenção de “fazer” por ela, isto é tomar-lhe a mão, desposá-la, pedi-la em casamento. No fundo estamos falando sobretudo de fórmulas inocentes em que, desvirtuando matreiramente o sentido inicial da palavra, e a levá-la ou elevá-la a uma provocação brejeira, sendo o que dava à canção atrás citada o sentido e o humor, tal qual fazem Emanuel e Quim Barreiros, em que ambos jogam com a duplicidade ou ambiguidade das situações que possam explorar numa frase, numa situação, numa palavra...

O nosso proverbial “bater com a cabeça na parede”, que é como quem diz “marrar contra a parede”, e numa modalidade mais forte “partir os cornos contra a parede”, nada mais simbolizam que a inutilidade de qualquer esforço ou tentativa, tal qual não adiantará absolutamente nada se estiver a “chover no molhado” ou se nos dispusermos ou lamentarmos “chorando sobre o leite derramado”.

Tal como nós África está cheia de provérbios, naturalmente alguns foram adoptados depois de séculos de colonização, e o nosso peculiar “vai pentear macacos” não andará longe de uma imagem que durante algum tempo me foi familiar, os beduínos catando-se, e não somente eles, também os indígenas, em filas de dois ou três ou cinco ou seis de enfiada catando-se uns aos outros de parasitas incómodos e exercício de todo improdutivo se descontado o alívio que tal operação certamente não deixaria de lhes oferecer.

Ora aqui está um texto que não passa de uma boa “conversa de merda” dirão com justiça alguns de vós, ao que eu contraporei que, segundo Enrique Vila-Matas e a sua tese de que tudo é narrável, estará aqui um belíssimo texto, não só para a minha amiga Ermelinda, seguramente a mais interessada numa explicação aprofundada e lógica, mas certamente para todos ou todas para quem o que interessa é ler uma história qualquer desde que, ou quanto mais desbrave ou se intrometa nos pequenos pormenores da vida alheia com que muitos de nós preenchemos a nossa, a nossa, vossa, sua, tua, dele ou dela, deles, delas, não a minha, eheheheh !

Porque se estavam à espera de uma coisa mais para o literário, numa página que uso para meu deleite e prazer pessoal o melhor é irem “tirando o cavalinho da chuva”  ! Ahahahahahahahah !




·         https://youtu.be/4tdsFkvm0ck




·         https://youtu.be/nwcGukMkR8I


sexta-feira, 11 de novembro de 2016

396 - LEBAM KU BO - O CANTO DA ESPERANÇA


O dia despontava, um rebordo alaranjado acompanhava a linha do horizonte e nem meia hora levaria até vermos esboçadas as primeiras sombras, nas quais nos abrigaríamos, pois por essa altura o sol já castigaria. Todos estavam exaustos, tinham sido oito horas de marcha sem outras paragens que não as estritamente necessárias para fixar o Cruzeiro do Sul e a partir dele calcularmos a nossa posição. Os homens arrastavam os pés ansiando por estender-se, elas não davam parte fraca, mas repetiam exasperadas o gesto de levar os cantis aos lábios secos denunciando um desespero abafado. Uma sombra e, mal a encontrassem, por aquele dia, melhor seria dizer por aquela noite, a marcha estaria terminada e os corpos jogados ao descanso.

Não faltariam muitos quilómetros para a fronteira, a zona de perigo fora ficando perdida na retaguarda, a campanha correra-nos mal, perdêramos dois homens, todas as viaturas e muito material, mas salváramos o coiro. Uma batalha não faz uma guerra e nem tudo estava ainda perdido. Cansados e abatidos homens e mulheres espojavam-se na areia fresca da sombra. Apesar do revés o ânimo não se perdera. Eu observava-os na improvisação de instrumentos que lhe marcassem o ritmo e a velha canção de esperança, Lebam Ku Bo, ia surgindo aos poucos da boca de cada um e cada uma com pedras, armas, ossadas, galhos ou cascalhos marcando o ritmo que lhes corria nas veias. Notável se considerarmos tratar-se de perto de 30 elementos, exaustos e oriundos de meia dúzia de nacionalidades.  

Eri Zuma não me saía debaixo de olho, a sua costumeira tagarelice, ora abafada, não prenunciava nada de bom, uma das baixas do recontro dumas horas antes fora o seu prometido noivo e, não ter chorado nem bradado aos céus preocupava-me, estava acumulando azedume, enchendo a alma de revolta, as mulheres ovambo eram ensinadas a calar a dor mas quando a bolha rebentasse ninguém esperasse coisa boa. Era um grupo excepcional, gente superiormente preparada, corajosa, tenaz, perseverante, resiliente, mas até o aço mais duro em determinadas circunstâncias quebra…     
              

Abrigámo-nos sob a sombra de uma pequena ravina, a partir daquela hora o sol seria inclemente e o Calaári mataria os descuidados. Dois homens, os mesmos que haviam caçado um babuíno* e lhe tinham dado comida salgada, soltaram-no e seguiram-no na busca desenfreada da fonte da preciosa água de que precisavam, água a fonte da vida e onde o macaco os levou directamente apesar de bem escondida entre fragas. Poderiam passar-lhe ao lado que jamais adivinhariam haver ali água em tal quantidade. Os que ficaram limparam e lubrificaram as armas antes de adormecerem resguardados pela sombra da ravina. Naquela zona os helicópteros sul-africanos não se atreveriam a procurar-nos, temiam os cubanos e os velozes Mig para quem eram presas fáceis. Durante a noite, durante a caminhada e no espaço de poucas horas esbarráramos com dois meio enterrados na areia, um deles abatido recentemente, as cores e os estofos ainda não comidos pelo sol, procuráramos água mas tinham levado os cantis juntamente com os mortos, via-se sangue seco, muito sangue.

               

Ainda nos não encontrávamos a salvo, nem suficientemente afastados para não temer os helicópteros e demasiado longe para sermos procurados pelos nossos camaradas de armas, estávamos por nossa conta, felizmente um combate frontal estava fora de hipótese, quase não tínhamos munições e fôramos obrigados a abandonar o armamento pesado se quisemos salvar a pele. O equipamento de comunicações fora também atingido e estávamos nas mãos da divina providência.

Deus e a providência eram ali muito requisitados, por nós e por eles, o inimigo, umas vezes cada um com o seu outras disputando os favores e a graça d’Ele. Não fazia grande diferença, nem faria, na hora da morte só desejávamos que fosse breve, e que não nos complicasse a vida, muito menos a dos outros. Nunca abandonáramos um moribundo, mas felizmente também nunca tivéramos que carregar com nenhum. Certa vez um deles para não nos atrasar a marcha em dias e dias metera o cano na boca e solucionara o problema, resolvera a questão, há homens assim, práticos, pragmáticos, uma padiola é do pior que pode haver para qualquer ferido grave, é uma forca, uma sentença de morte, um mau feitiço atirado para cima de um homem. Viver é fácil, difícil é morrer, exige-nos toda a coragem.

Todos dormem, de duas em duas horas a vigília roda, a noite fora extremamente cansativa, caminhara-se para fugir do inferno e p’ra aquecer, no Calaári as noites são de gelo, entre os menos zero e os quarenta e muitos só os insectos se aguentam. O pico a seguir ao almoço é mortal. Os homens retornaram com vários alforges de água fresca e limpa. Não dará para tomar banho mas todos vão poder dessedentar-se e beber que nem camelos, sobrará para encher os cantis. A sede será doravante o nosso pior inimigo, era importante partir abastecido. Para cúmulo as rações de combate provocam demasiada sede e os homens, esfomeados, adivinhando a fronteira no máximo a um dia de nós, vingam-se da fome e empanturram-se. 

                        

Um dos homens mira-se num estilhaço de espelho apanhado no último héli pelo qual passáramos, ordeno-lhe que se desfaça dele e o enterre bem fundo na areia. Um descuido, um reflexo e a nossa posição pode ser denunciada a milhas e milhas de distância. Todo o cuidado é pouco. Aqueles dois preocupam-me, têm borregas nos pés e recomendo-lhes que os limpem bem e passem nelas gordura das latas de rações. Kristna está assada debaixo dos braços, tem o peito farto e pesado, a presilha do sutiã, o suor e o pó da areia constantemente roçando-lhe a pele feriram-na. Digo-lhe que largue e enterre o sutiã, que passe tintura nas zonas feridas, não sendo casos graves se tivermos cuidado não nos atrasarão. Reiniciamos a marcha ao som de “Lebam ku bo”, o canto da esperança reafirma ser a esperança que conta, a esperança tornou-se a fé destes homens e destas mulheres, esperança de conseguir sair com vida do deserto, de chegar à aldeia, à cidade, esperança de sobreviver à independência frustrada, de ter filhos, família, vida, alguns já andam nisto há quase vinte anos, ou mais, vieram das matas, só conhecem a guerra e as matas, e agora o deserto.

           

Néli fez de mim a sua esperança, faço-me distante, despercebido, duro, todos temos que estar prontos a perder tudo a qualquer momento, o segredo é ter pouco, ter tudo exige capacidade de renunciar a tudo, não quero iludi-la, não quero enganá-la, somente à noite nos procuramos. Há que ser superior a tudo, a todas as tentações, renunciar é sobreviver, o compromisso tolhe, coarcta, prende, compromete, obriga a ceder, tortura, fragiliza, pode matar. Desapego é sobrevivência, liberdade, vida. Tudo isto Néli sabe, quem não sabe cedo ou tarde intui. Ela sabe e só me procura quando todos dormem, ou quase todos, sem barulho anicha-se em mim, em conchinha. Nem o suor ou a areia nos incomodam, mas travam. É esguia e magrinha, bela, marchamos há uma semana sob condições péssimas e nem isso lhe retira a beleza, nem o ânimo, nem a doçura.

Há duas horas que notamos mudanças na vegetação, há mais verde e mais arbustos e árvores, provavelmente estaremos neste momento pisando a linha vermelha de fronteira e entrando em Angola, sobrevivemos a mais uma provação, a mais uma missão, e continuamos cá, para o que der e vier. A guerra será ganha ou não valerá a pena, ou não terá valido a pena.

Brigadeiro, e adido militar, o Chino deve andar agora perto dos setenta anos, mas não parece, os pretos enganam a gente, mesmo com essa idade alguns quase não fazem rugas. Hoje levei-o a almoçar à minha terra, o grande lago deslumbrou-o. Conto-lhe das minhas primeiras paixões no varandil, sobre a cisterna, diz-me constrangido que casara com Néli. Mostra-me uma fotografia de ambos tirada poucos meses antes dela falecer. Um grave problema de rins demasiado tarde associado a paludismo levara-a, um caso extremo e galopante. Ele também fora acometido pela malária mas safara-se devido a ser Major General e a saúde dos membros da forças armadas estar primeiro. De seguida emborcou instantânea e repetidamente dois copos de Reguengos reserva, o sorriso matreiro e os dentes brancos, impecáveis voltaram-lhe à cara numa caricatura simultaneamente inebriada e feliz.

- É a vida, a vida não pára m'ermão.

Alargando os colarinhos, o cinto e os sapatos balbuciou algo como nunca se ter habituado a mais nada que não a farda. Fora guerrilheiro toda a vida, não conhecia mais que a guerra e a mata, nem tempo tivera para aprender uma letra, bem vistas as coisas tem mais cicatrizes que medalhas. Brindámos, rimo-nos do secretismo de antigamente. Agora o Facebook conhecia-nos todos os segredos. Não nos descobrira e juntara passados tantos anos ?

- Brindemos à savana, às picadas, ao Calaári, aos computadores, facebooks, intermetes e MPLA ! … Propôs ele…

Ergui o copo mas recusando-me a brindar, ele sabia bem quais e desde quando vinham as minhas divergências e dissidências com o MPLA. *

- Se lá estivesses serias general ou brigadeiro m'ermão ! À tua !

Fingi nem o ter ouvido, olhei o lago e embrenhei-me no ensopado de cabrito, carne muito parecida à da pacaça observou ele, talvez sim, talvez não…


** Estava-se então no principio da década de oitenta e os problemas no sul de Angola, derivados de tácticas e estratégias profundamente erradas, ditariam os factores subjacentes à minha divergência e afastamento. Erros que ditariam um elevado custo em vidas humanas e somente ultrapassados em 1987 com a Batalha de Cuíto Cuanavale, o maior confronto militar da Guerra Civil Angolana, ocorrido entre 15 de Novembro de 1987 e 23 de Março de 1988. O local da batalha foi o sul de Angola na região do Cuíto Cuanavale na província de Cuando-Cubango, onde se confrontaram os exércitos de Angola FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola) e Cuba (FAR) contra a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) e o exército sul-africano. Foi considerada a batalha mais prolongada e mortal do continente africano desde a Segunda G. G. e terá provocado para cima de quinhentos mil mortos.