segunda-feira, 24 de julho de 2017

447 - BEM PREGA FREI TOMAZ * .............................



Bem prega frei Tomaz, faz o que ele diz, não faças como ele faz.

Não tenham a menor duvida, o segredo da coisa está no lançamento, um bom lançamento é o alfa e o ómega, o resto são peanuts, depois de lançada a coisa aguenta-se, a coisa ou o coiso por que o que há a vencer é a inércia inicial, como Newton bem sabia. Há dois mil e duzentos e tal anos já Arquimedes de Siracusa, mais modesto, afirmara que sendo-lhe dada uma alavanca e um ponto de apoio mudaria o mundo, esclareço aqui ser a alavanca uma das seis máquinas simples da mecânica, máquinas a partir das quais derivam todas as outras por mui complexas que sejam. Ressalvo que talvez Arquimedes tenha dito deslocaria, e não mudaria, pretendo evitar confusões e eventualmente más traduções já que alavanca, fulcro e força eram tudo o necessário para deslocar ou mover o mundo, cousa bem diferente da ideia do meu amigo Tomaz que só quer mudar o mundo ou mudar-nos a nós a seu jeito e desejo, mas por nossa conta e ónus.

Há mais de setenta anos Wernher von Braun sabia tudo depender do impulso inicial, desde que houvesse um bom impulso inicial qualquer coisa subiria e se manteria lá em cima, o impulso era tudo, era tanto que ainda hoje o empuxo ou força dos motores dos jactos ou dos foguetões, dos Atlas, dos Titans, dos Saturnos, dos Arianes, dos Soyus e tutti quanti são medidos em impulsos, libras, já os dos automóveis, máquinas mais modestas, são ainda medidos em cavalos por deferência para com os ditos e a engenharia das máquinas a vapor e dos cavalos vapor, os designados Horse Power.

A cantilena de hoje vem a propósito de um choque tido e havido com o meu amigo Tomaz, chamemo-lo assim, tendo eu dito duvidar estar ele em órbita sem o impulso inicial que levou. Ele não é parvo de todo, e é inteligente, o que não lhe tolerei foi vir armado em anjinho pregar resignação aos peixinhos, coisa que nem Stº António se atrevera a fazer. O que sucedeu foi que numa qualquer publicação na Net desenvolveu o amigo Tomaz uma teoria do sociólogo Richard Sennett que a Terramar publicara em 2001 “A Corrosão do Carácter” um influente ensaio sobre as consequências pessoais do trabalho em cada individuo e que segundo parece permanece perfeitamente actual, segundo o qual “já ninguém espera trabalhar na mesma organização a vida inteira, embora a empresa para a qual se trabalha seja um grupo social importante ao qual pertencemos e que define parte da nossa identidade”.

Esta teoria, que nem me dei ao trabalho de ver até que ponto plagiou, o Tomaz escreve bem e nem precisaria disso, nem foi isso que esteve em causa, em causa esteve o facto de vir consolar-nos, de nos induzir à resignação quando o país está como está graças em grande parte ao partido em que debutou, ao partido que o impulsionou, ao partido que não fez pelo país o que devia ter sido feito, e já agora deixem-me perguntar que partido fez alguma coisa de jeito nos últimos quarenta anos ? Se assim tivesse sido certamente não estaríamos como estamos e pior havemos de estar.

Pois este meu amigo, que como disse é inteligente e tem um curriculum extraordinário, só não tem inteligência para saber quando deve ficar calado ou que assuntos escolher, ele que orbita onde orbita e tudo deve ao impulso inicial que, como de inicio vimos mete lá em cima qualquer merda que posteriormente e com facilidade por lá se aguentará. Ora sucede ter o dito cujo Tomaz ter sido nem mais nem menos que bafejado pela oligarquia que aqui na terra põe e dispõe de lançadores, lançamentos, órbitas e tudo quanto lhes convenha, num impulso que me envergonharia mas que ele subtilmente escamoteia no vero e lustroso curriculum que publicamente apresenta, será caso para dizer que com a verdade nos engana.

No fundo o que nos opõe e eu lamento é que iguais oportunidades não sejam dadas a todos, que se vêem obrigados a emigrar à falta de amigos impulsionadores… Fica mal a quem foi colocado lá em cima pela mão dos seus perguntar aos outros por que não sobem, ou pior, consolá-los por ficarem cá em baixo, e que se fodam, que se resignem que isto da democracia não é para todos mas somente para alguns eleitos. Desgraçadamente até no exemplo que foi buscar para ilustrar o seu escrito foi infeliz, sacar da PT como exemplo é coisa que nem lembraria ao diabo, a PT enquanto empresa pública foi um modelo de péssima gestão a tal ponto que meteu 3700 colaboradores, funcionários ou trabalhadores em casa sem fazerem nada e a pagar-lhes, aliás fomos nós quem lhes pagou e paga ao pagar as comunicações mais caras da Europa... esquecendo ter sido José Sócrates enquanto PM e A. Costa enquanto seu Ministro da Justiça ou da Administração Interna quem fez a cama ao engenheiro Belmiro de Azevedo e à sua OPA, dando desonestamente início ao estrondoso rebentamento da PT ...  Agora é aguentar, é pregar resignação, é consolar os trabalhadores de quem fizeram gato-sapato, é obrigar a Altice a adoptar os hábitos estatais de gestão, é espremer todos quantos ainda cá estão e não debandaram deste paraíso, interrogando-me eu se isto é que é um verdadeiro democrata, dividindo a sua vasta sabedoria com o povinho mas esquecendo-se que é por estas e por outras tais que em Portugal as empresas morrem ou nem chegam a nascer e do Alentejo até fogem...

Para se pregar moral tem que se ter autoridade (moral) para o fazer... Se o meu amigo Tomaz não viu essa relação lamento, quanto ao texto, certamente vero e oportuno, nada tenho a opor, aliás o texto encontra-se noutras plataformas, sérias, onde Richard Sennett e “A Corrosão do Carácter” são abordados porventura com menos copy cola que aqui e muito mais meditação e avaliação crítica quanto ao cerne da questão envolvida... Não basta atamancar qualquer opinião para a tornar valiosa, sobretudo mal fundamentada como foi o caso, ao abordar o caso nestas páginas limito-me a expor outra opinião, uma outra perspectiva, e não a apresentar um mero juízo de valor ou preconceito, para que os leitores ajuízem da ética tortuosa e dos passos dados por quem nos prega sermões. Falar é fácil dar conselhos é fácil, o país está pejado de sábios e de conselheiros porém não temos nada, quarenta anos depois de Abril não temos nada, temos mais emigração, porém mais qualificada, e mais desemprego, temos isso sim mais oportunidades para boys e amigalhaços, em contrapartida temos mais saídas fechadas para todos, temos menos oportunidades, menos riqueza. É isto que temos depois de tanto sábio, tanto democrata e tanta democracia.

Esta minha página, este blogue está bem reconhecível e acessível. Não costumo atirar as pedras e esconder a mão, nem tentar parecer melhor ou mais limpo do que sou, ao contrário de muito boa gente não tenho necessidade disso. O curriculum apresentado pelo meu amigo Tomaz devia citar as ajudas e empurrões que a oligarquia socialista de Évora lhe concedeu, a ele, mas que não concede a todos, quero dizer o PS não criou um país nem uma democracia onde todos tenham iguais oportunidades, aliás é um partido à deriva e que em quarenta anos não encontrou a sua identidade nem o seu lugar nem os seus eleitores. Prova disso foi ter perdido vergonhosamente as eleições depois de quatro anos de asneirada grossa da direita (a quem continua a dever o sucesso actual) e ter-se agarrado à bóia de salvação que foi para ele o BE e o PCP, partidos que à primeira oportunidade lhe farão o que foi feito ao ingénuo Alexander Kerensky, um menchevique que aliás não merecia outra coisa, como A. Costa um político apagado, untuoso e xico-esperto merece e com quem jamais iremos longe ou acharemos a salvação.

Resumindo, ter padrinhos e um bom emprego, e estribado nisso vir pregar aos peixinhos é para mim coisa que só concebo aos santos ou a gente sem vergonha na cara.


* NOTA: Se não coloco aqui o link referente ao assunto abordado é tão só por não desejar fazer do assunto uma questão pessoal, a luta politica ou a exegética é uma coisa, a polemologia é de âmbito pessoal, completamente diferente e por onde não desejo seguir. Entretei-vos com “A Corrosão do Carácter” - Richard Sennett  - Terramar – 2001. O meu amigo Tomaz fez parte das estruturas locais do PS/Évora. A partir de 2000 desempenhou, por duas vezes, funções públicas. Primeiro, entre 1996 e 2001, nos gabinetes do Secretário de Estado da Juventude, do Primeiro-ministro e, finalmente, do Ministro da Presidência e das Finanças, do qual foi chefe de gabinete. Entre 2006 e 2009, foi coordenador adjunto do Plano Tecnológico. É membro da direcção do Centro Nacional de Cultura e co-autor do livro “Terror ao Pequeno-Almoço – A Gestão Que Preferia Não Conhecer”.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

446 - A INTENÇÃO É QUE CONTA ............................


Aquilo foi tudo um mal-entendido, cá para mim não passou de boas intenções, a gente às vezes quer mas nem sempre consegue é o que é, ou o que foi, é mais um daqueles casos em que acabamos por admitir, e dizer, o que conta é a intenção, já que por motivos que nos escapam ou são alheios à nossa vontade não se conseguiu concretizar o que seria certamente uma mera intenção, se boa se má não vem agora ao caso, ao caso vem não ter passado disso mesmo, duma intenção, não formalizada, a que não se conseguiu dar forma, não efectivada, materializada, que não se realizou, inconseguida como diria a outra….

Naturalmente ficou aborrecido com isto tudo o Zé António, já o conheço bem, bem e há muitos anos, imagino quanto o terá abalado o facto de não ter tido êxito, ele é muito dado às coisas, quero dizer leva tudo a peito, quando se mete nalguma é de corpo e alma, entrega-se ao que estiver a fazer e se o impedem atira-se aos arames, afina, como diz a Vicência do Herlander.

Ela é perspicaz, não lhe fazem o ninho atrás da orelha com facilidade, já dera por haver ali atrito, uma coisa subtil mas que todavia captara. Nem sempre é fácil captar as subtilezas de cada um, sobretudo se bem camufladas ou disfarçadas, porém não lhe escapara o ranger de dentes da Eunice, aquilo era tensão acumulada, aquele ranger escondia muita objecção ou contrariedade, fora essa a primeira vez, a partir daí afinara o olho, abrira o olho e muitas outras situações observara que ninguém diria ou sequer admitiria, mas não ela, a ela não a enganavam às boas que tinha o olho aberto como diriam os ciganos no mercado do rossio;

- Abra o olho ó freguesa abra o olho, dois pelo preço de três é aproveitar ó freguesa abra o olho !

Apanhar o momento de tensão, de atrito, do choque, por vezes coisa de segundos é realmente uma façanha de que a Vicência se gaba, não sabemos até que ponto terá ela razão claro mas admitindo que a tenha menos claro e mui mais difícil será conhecer o motivo, o detonador pior ou melhor dá-se por ele, ouve-se-lhe o estalinho, mas o que deu origem àquela guerra surda travada e escondida aos olhos de todos e que tantas subtilezas esconde ? Esse é o busílis, ou é aí que está o busílis.

O tempo veio a permitir ver ou antever alguns, alguns dos busílis, alguns motivos, como foi o caso dos passarinhos, sim dos passarinhos, não que os comessem que cá por mim tudo que seja mais pequeno que codornizes nem pensar e até essas já são pequenas demais, dando mais trabalho que o que tenham para comer mas aqui trata-se de passarinhos, não passarinhas, passarinhos mesmo, alimentar os passarinhos.

Ao longo da vida o Zé António alimentara várias pancadas ou várias taras, imagino o que a Eunice lhe terá aturado nestes anos todos, mas enquanto a coisa ficava entre os dois lá iam resolvendo as questões, isto imagino eu que sei perfeitamente só se descontrolarem as coisas quando transbordam, quando nem uma gota mais aguentam, deve ter sido o caso daquele ranger de dentes, por algum motivo uma gota não coube, imagino a explosão se estivessem só os dois, sozinhos, assim ela rangeu os dentes e calou-se, acumulou, como fazem as baterias, imaginem se lhe salta a tampa quando estiver com a carga toda, nem quero estar por perto.

Mas voltando à vaca fria, ou aos passarinhos, o problema radicava no facto de ter dado ao Zé António há algum tempo, a pancada para atirar da janela da cozinha à rua as fatias de pão que sobravam em cada dia. Não que ficassem longas horas desfeando a rua ou os passeios, ou que tivessem oportunidade de criar bolor, nada disso, a humidade da noite amolecia-as e na manhã seguinte bandos de pardais davam conta delas em pouquíssimo tempo. Bicada aqui bicada ali em breve somente sobravam as côdeas e até essas acabavam desaparecendo, era uma alegria para a passarada que excitada com a fartura e chilreando assinalava e alegrava a matina, o problema era o entretanto, ou os entretantos.

É que nesse entretanto, isto é desde c'as fatias caíam no chão, até que passadas umas horas de escuridão a pardalada as debicasse e comesse, alguma da vizinhança justamente revoltada com as toneladas de plásticos e outros resíduos flutuando nos oceanos e ameaçando a natureza e as espécies, quase deu azo a um abaixo-assinado e a uma mobilização de força contra o energúmeno que conspurcava os passeios da avenida, incapaz devido à incultura geral vigente de destrinçar entre resíduos orgânicos e inorgânicos, entre os que rápido se degradam naturalmente na natureza e os não biodegradáveis que nem passados quinhentos ou mil anos se degradam, desfazem, decompõem, a ponto do bom do Zé António ter sentido fundados receios de sair à rua, tendo sido obrigado a mudar de tácticas, passando a esfarelar ou a partir em bocadinhos pequenos e mais facilmente comidos e até levados, carregados pelos passarinhos, táctica que contudo a Eunice não aprovou continuando a sarrazinar-lhe a cabeça por tal motivo.

Com o tempo tudo se sabe, pior ou melhor tudo vem a saber-se e o motivo do atrito entre aqueles dois não era somente esse, acontece que a santa Eunice não suportava muita coisa que ele tinha que lhe aguentar, como o ouvir música alta, qualquer musica, ou que ele perdesse muito tempo no PC, ou tão pouco suportava ela ouvir o matraquear dos dedos dele no teclado sendo batido, digo digitado, a ponto do bom do Zé António ter sido “obrigado” a adquirir um caríssimo teclado, todavia silencioso. Só porque se o desgraçado estava ao PC ou se teclava seria por haver ali gato, ou namorico e a Eunice não estava para isso, fervia de ciúmes, inda por cima fervia em pouca água nem sendo necessária grande chama para atingir o ponto de fervura, diziam as más-línguas.

Fosse como fosse parece que as coisas foram enchendo de parte a parte, terá sido uma gota só a entornar, a extravasar, diz-se que o plácido Zé António um dia não se conteve tendo jogado as mãos ao pescoço da Eunice animado de uma vera vontade de pôr fim a todo aquele tormento e de a esganar. Não quis a providência que tal acontecesse naquele dia e a coisa tá agora mais apaziguada, deixando o Zé António os sapatos por arrumar e onde calha, a roupa suja largada onde calha e por apanhar, espalhada na casa de banho ou chutada para o corredor, os livros, jornais e revistas em cima de qualquer coisa, sem que ouça uma crítica e numa rebaldaria nunca antes vista naquela casa.

Uma conceituada terapeuta aconselhou e deu descanso à família afirmando estar a Eunice completamente recuperada das dores e mazelas do pescoço dentro de meses e pronta para outra, vem aí o verão, irão os dois parta a praia como de costume, ela não lhe poupará um ralhete a cada curva, a cada sinal, a cada ultrapassagem, a cada cem metros ou a cada quilómetro, ele jurou não lhe dar ouvidos nem que ela grite, dá gosto ver uma família ultrapassar os problemas e cooperar, reconciliar-se, a felicidade é que conta, o Zé António não conseguiu mas o que importa é a intenção, o que conta é a intenção e não faltarão certamente outras oportunidades… 


terça-feira, 18 de julho de 2017

445- A PACIENTE FELICIDADE DA VIOLANTE *...


* A minha amiga Violante casou cedo e os anos nem passam por ela. 


Ele fizera todas as campanhas que lhe tinham calhado em sorte e não se podia queixar do azar, não sofrera por aí além nem se considerava um deficiente embora não tivesse recusado a pensão de invalidez nem renegasse as vantagens que a ADFA lhe concedia. É certo que pagara cara aquela missão na Jamba, como alguns se atrevem a dizer, inda que eu não concorde com isso pois ele entende até ter ganho uns bons dinheirinhos, que muito jeito lhes têm feito. O saldo é tudo, e atendendo à conta no banco a sua sorte, ou o seu azar, nunca poderão ser tidos em questão sem uma criteriosa ponderação e coisa que somente eles, o casal, poderá fazer.

A sua companheira a Violante já se habituara, a principio custara-lhe um pouco mas o amor todas as barreiras supera, ou não ? Afinal ninguém lhe tirara o seu homem, o seu amor, talvez tivessem tirado um bocadinho mas fosse como fosse era dela, portanto ficara a ganhar que isto nas guerras do amor e dos ciúmes também existe um saldo e o dela era a crédito, positivo, apuradas as contas a vantagem ficara do seu lado, ela saíra ganhando, o resto seriam conversas de treta não passariam de invejas.

Era o seu homem de sempre, apagadas as luzes o toque dele era o mesmo toque de sempre e inconfundível para ela, o mesmo jeito de lhe correr a mão pela espinha fazendo-a arrepiar-se toda ao passar entre os olhinhos das costas, o mesmo gesto prolongando a caricia por ali abaixo até entalar a mão nas suas coxas roliças, o mesmo arfar. Chegado aí a respiração dele, tensa e acelerada não mudara nada, era a mesma, como o mesmo era o hábito de fazer da mão um cutelo, uma mão em cunha capaz de a trinchar em duas, claro que não trinchava, nem aleijava, não estavam no talho do senhor Felício, simplesmente enquanto isso ela estendia a mão no escuro e agarrava-se com devoção ao terço pendurado na cabeceira da cama, como fazia há mais de trinta anos sem perder a fé, a mesma cama em que tinham casado, ou por outra, que tinham desde o casamento.


Em boa verdade a mão não era a mesma, mas era a outra e também era dele. Violante antes preferia sentir-lhe a pele nua e rude dos dedos que a pelica da luva, conhecia o seu homem até no escuro, seria capaz de o reconhecer de olhos vendados até pelo toque, ou pelo cheiro. Com o tempo haviam refeito a vida com o que sobrara e com o que tinham, sem ovos é que não se podem fazer omeletes, mas desde que haja ovos o resto pouca importância terá, afinal foram perto de quarenta anos de felicidade, três filhas e quatro netos. Como diria o senhor presidente da junta, é obra, uma obra que ambos dois ergueram a duas mãos apesar de tudo.

O estranho ritual inícial aos poucos fora-se banalizando, com a duração e o passar de certo prazo, o tempo esse grande escultor que tudo apaga e tudo aviva, o tempo se encarregara de vulgarizar a rotina. Hoje Violante ri-se desses tempos, deitar com a luz acesa era crime de lesa-majestade, se acendesse a luz do quarto à noite era mais que certo o Edmundo atirar-se ao ar, afinava com isso e duas ou três vezes depois de armado um escarcéu por esse motivo a lembrança fixou-se e o hábito instalou-se. Nunca mais aquela luz se viu acesa depois das oito da noite, ou sete, ou seis sendo invernia e durante uns tempos nem candeeiros de mesinha de cabeceira houve e, se voltou a havê-los tal se deveu a dois incidentes ocorridos quase na mesma altura, o primeiro um bocado caricato pois o Edmundo tacteando à noite e às escuras com o coto o naperon sobre a mesinha, ao invés de o achar acabou por derribar o olho que procurava, tendo  o mesmo caído no chão com estrépito e rebolando ou desaparecendo para onde ninguém imaginaria nem procuraria, rolando fora parar à casa de banho, onde nenhum de nós se lembrara de o procurar e somente no dia seguinte sendo encontrado, lascado, com uma falha, inutilizado. Encomendar um da mesma cor dos olhos do meu Edmundo, que são lindos, durou uma eternidade e custou os olhos da cara salvo seja, o diabo seja cego surdo e mudo, lagarto, lagarto, lagarto, mas foi o caso, talvez achem um pouco estranho mas foi o caso, porém ainda não suficiente para que os candeeiros voltassem às mesinhas de cabeceira mas que muita influência teve ai isso teve.  


Determinante fora o segundo incidente, não sei o que buscaria o Edmundo mas sei que derrubou o copo d’água onde à noite punha a placa, uma placa esquelética, caríssima, que no escuro pisou. Ao levantar-se da cama em busca da perna pisara a placa que se lhe espetara no pé atravessando-o de lado a lado e impedindo-o durante dois meses de ir ao quartel. Uma coisa mais séria do que inicialmente julgáramos, felizmente a placa era boa e nada sofrera, ao menos valha-nos isso naquela maré de azar que acabou por trazer de volta os candeeirinhos com os abat-jours translúcidos tão apreciados e que roubáramos num hotel de Benidorm, lugar onde passáramos a lua de mel.

De qualquer modo as restrições quanto ao acender da luz no quarto mantiveram-se quási as mesmas, o meu Edmundo é um homem de hábitos e a primeira coisa que faz ao entrar no quarto é sentar-se na cama, sacudir os sapatos e desatarraxar a perna. Desatarraxar é como quem diz, mas soltar todas aquelas correias demora o seu tempo e impressionava-me ao principio, agora até gosto de lhe tirar a comichão do coto e sempre que desatarraxa a perna lá estou eu. Mais valia que tivessem inventado um sistema de parafuso, fora isso é tudo normal, e ele todo normal dali para cima, ou quase, tirando a mão, o maxilar, os dentes e o olho de vidro é um homem como outro qualquer, é o meu homem e amo-o, não dizem que o amor é cego, olhem, por falar nisso esqueci-me das lentes de contacto que nem sei onde as meti.

* A minha amiga Violante casou cedo e os anos nem passam por ela. 

terça-feira, 11 de julho de 2017

444 - PINTAR AMIZADES E AMIGOS DE OZ... ***


Entrei no café à hora habitual, a manhã estava fresca e o sol já queimava. Eu viera de acompanhar a Luisinha à consulta e ao meu ânimo, se tivesse que o pintar, ter-lhe-ia dado cores felizes. Até a Shana ao longe pressentiu o meu andar solto e radiante, tendo arrebitado o rabo e corrido ao meu encontro no seu saltitar próprio e engraçado, metendo-se entre os meus passos e quase me tombando por não a querer pisar.

- Bom dia senhor Nuno, p’ra mim bica cheia !

e nem parei, atravessei o café, o New Concept Coffee & Shop, fui lavar as mãos e fazer uma mijinha, não, não foi para não sujar aquilo, que anda sempre lavadinho, mas por causa da Shana que se rebola no chão e sabe Deus quanta sujidade pode trazer agarrada ao pelo, vírus, bactérias, micróbios, carraças, minhocas, ácaros, etc etc etc, e cantarolando dirigi-me para a mesa habitual, onde por pouco não tenho lugar cativo (na Ti Bilete tinha) quando, espanto ! Espanto não pela bica que já me esperava, essa eficiência do serviço é normal e habitual ali, espanto porque o senhor Nuno deixara junto à bica uma enorme encomenda, embrulho, pacote, decerto uma prenda, fácil de ver e de deduzir, comprida, larga, estreita, papel geográfico, Viana doo Alentejo, Aguiar, S. Bartolomeu do Outeiro, Torre de Coelheiros, Oriola, Vila Nova da Baronia, estação de caminho de ferro das Alcáçovas, pelo que tirei um bilhete e com cuidado me pus a desembrulhar, desvendar, descobrir os segredos e mistérios de tão estrambótico mapa e, passo a passo, lá fui palmilhando a estrada de tijolos amarelos expectante quanto à Esmeralda que surgiria para, finalmente, vindo nem sei donde um sorriso poisar em mim, se me estampar na cara, entreabrir os lábios primeiro e depois os escancarar num sorriso montado em sonora gargalhada, e se o dia já estava ganho por na consulta ter tido boas novas.



       Isto era o prémio no bolo rei, pelo que, tomado por profundo sentimento de gratidão e de amizade, antes que surpreendido e estonteado como fiquei me tivessem fraquejado as pernas, puxei da cadeira, sentei-me e mandei vir qualquer coisita indicada a momentos tais, senhor Nuno por favor traga-me os sais minerais, um uísque e dois conhaques, três pedras de gelo e uma água tónica que isto é demais, não esperava tal daquele sacana, tenho o coração em fibrilação, os olhos a marejar, ainda me cai uma lágrima no café e lhe estraga o sabor portanto se o senhor não se importa vai de uma vez só, já está, venham mais e mais remédios, se eu morrer hoje diga a toda a gente que morri feliz, que no New Concept Coffe & Shop só se morre de felicidade e quando a Ana Paula vir isto vai roer-se de inveja primeiro e morrer em qualquer lado depois, isto não é todos os dias, é só nos dias santos como o de hoje e para santos, entre os quais como todos mui bem sabeis há muito me incluo. *

Claro que o canhenho já leva cinco páginas manuscritas, mas mesmo assim não encontro palavras para agradecer ao meu amigo Nuno Rolo** (outro Nuno) a sua prova de amizade e a consideração demonstradas, obrigado, mil vezes obrigado, por esta não esperava, imortalizado às mãos de um mestre pintor, inda por cima eu, eu que estou melhor neste quadro que o bochechas no dele, muito menos charmoso embora tenha sido pintado por Júlio Pomar, é que com este nem se compara, basta eu estar nele !

Um quadro não é uma fotografia, nem tão pouco uma natureza morta, até por eu estar bem vivo e, curiosamente o Nuno ter captado exemplarmente as cores que comummente me animam. Não é um quadro abstracto nem psicadélico, é antes um quadro verídico e inequívoco da pessoa que sou e dificilmente me teria revisto noutras cores e noutros traços. É um quadro que muito bem expressa a minha atitude perante a vida e nesse item é expressionista, sendo ou representando também o viver e a vivência que há em mim e cuja impressão tão bem o Nuno conseguiu captar, sendo também nessa perspectiva ou sentido impressionista. Bela demonstração de amizade de ontem, Oz e amanhã.

Palavras à parte impressionou-me a sua atitude despretensiosa, simples e modesta mas simultaneamente a única coerente consigo mesmo. Foi uma grande, grandiosa e surpreendente maneira de me impressionar e me expressar a sua amizade e consideração, são tudo e todas cores bonitas, sem as tonalidades azuis, rosa, laranja vermelho ou verde com que gente engajada sempre nos pinta. Acredita que adoro o quadro amigo Nuno, e se repararmos bem no fundo dos olhos lá está o tal brilhozinho !

Obrigado ! Um espectáculo ! E agora para que tudo acabasse em bom só faltaria que tu morresses famoso e cedo p’ra eu ficar rico :D :D :D ))




Nota: A lente do telemóvel distorceu ligeiramente as fotos, e também alterou levemente as cores, mas quando visto a olho o quadro tem as proporções canónicas e as cores correctas. 


segunda-feira, 10 de julho de 2017

" NO MAN’S LAND, O ROMANCE DA INÉRCIA, TERRAS DE NINGUÉM "




" NO MAN’S LAND,

O ROMANCE DA INÉRCIA,

TERRAS DE NINGUÉM "

 

INTRÓITO

 

“Terras de Ninguém” foi escrito como um manifesto ou amadurecida metáfora da degradação do país desde a implementação da democracia em 25 de Abril de 1974, servindo o Alentejo como espelho e reflexo ou contraponto das contradições e enleios em que os sucessivos governos enredaram Portugal.

 

 Vivemos hoje subjugados por uma democracia disfuncional e desigual, corrompida até às mais altas esferas, fenómeno que não teve geração espontânea, antes uma incompreensível e insidiosa tolerância medrando paulatinamente desde esse dia e confundindo no seu caminho liberdade e libertinagem, direitos e obrigações, responsabilidade, competência, mérito, deveres, moral e ética.

 

 Através do percurso de vida dos personagens, iniciado nos anos finais do Estado Novo, “Terras de Ninguém” induz-nos a tomar consciência de como o uso e abuso de direitos por uns resultou no prejuízo de outros, sendo a liberdade falsamente equilibrada em dois pratos duma balança, num dos quais alguém sempre manteve interesse em manter teimosa e insidiosamente a mão.

 

Este romance foi escrito de jorro em sessenta dias, não foi alvo de emendas, nem de alterações, não sofreu rasuras, cortes ou aditamentos, preencheu quatro cadernos e seiscentas e quarenta páginas manuscritas, (cento e oitenta A4 digitadas), foi destilado do pensamento de quem há imensos anos olha estupefacto para o país e para o Alentejo. Poderia dizer-se não ter sido este romance escrito mas antes transcrito, como de um ditado ou duma cópia se tratasse, o romance maturava há anos na minha cabeça, bastou permitir-lhe escorrer da mente para a mão e desta para a pena.

 

Obriguei-me a parar, o romance ameaçava ficar exageradamente longo correndo o perigo de se tornar repetitivo e maçador atendendo ao muito assunto, tempo e situações abarcadas. Algumas cenas decorrem inseridas em factos históricos verídicos, partindo da realidade mas não a adulterando, o romance cria a sua própria realidade. Nunca a substancia foi trocada em favor do estilo literário.

 

Sem dúvida que constituiu um desafio entreter e opinar. Um romance é uma confissão, uma hipérbole da realidade da qual se parte caminhando até à especialização e apuramento da diversidade, diria até à exaustiva exploração da riqueza e do perfil dos personagens de modo a que venha a resultar daí algo expectante e proveitoso.

 

Qualquer romance, biográfico ou não é sempre algo de pessoal; é um prolongamento do ego e como tal dele apenas poderemos dizer que está bem escrito ou mal escrito.

 Espero que gostem, boa leitura.

 Évora 17 de Abril de 2017, 

Humberto Ventura Palma Baião





      TERRAS DE NINGUÉM – NO MAN’S LAND – O ROMANCE DA INÉRCIA


   

Enquanto ao som da marcha nupcial avançava pela nave da catedral de braço dado com Delfina, Manuel Mestre divisou entre os presentes aglomerados de ambos os lados a cara risonha e irónica do velho Sebastião, de imediato lhe vindo à memória a frase que  há tantos anos o confundira, as coisas nem sempre são o que parecem e realmente parecendo iguais não o são. Passadas décadas, Manuel Mestre compreendia finalmente o significado de tal frase, frase que na altura lhe parecera confusa, dúbia, nada clara mesmo e passível de várias interpretações, curiosamente longe da que agora lhe ocorria, conquanto segundo ele o velho estaria desfrutando uma lenta caminhada para o cadafalso. Atrás dele Mestre, sua filha Júlia, igualmente de braço dado a Benvindo, os dois sorrindo à esquerda e à direita.      

O velho Sebastião rejubilava, desta vez o motivo radicava num feliz ajuntamento, a celebração do facto ou dum milagre permitindo-lhe estar ali ocupando a cabeceira da mesa, improvisada mas vasta e recheada, sorridente e álacre como sempre, ele que sobrevivera a um avc fulminante e ficara feito num trambolho. Luís Sebastião, o filho, ergueria várias vezes o copo ao alto, voluntariamente seguido pelos outros é melhor especificar por todos, brindando toda a gente à saúde do seu velho amigo e pai, cujo filho não se cansava de o apelidar de grande, de enorme, deixando-o, ao velho, atrapalhado e em humilde modéstia, modéstia desmentida pelas sequelas do avc pois o velho recuperara tendo ficado rindo por tudo e por nada, roubando seriedade a coisas que a teriam ou mereceriam. Digamos tudo o fazer rir, ou tudo lhe dar para rir, temendo a família o dia em que por qualquer desventura assistisse ao atropelamento d’alguma velhota, pois para nada mais lhe daria a não ser para uma genuína risota, atrapalhando-os deixando-os incapazes, a ele Luís Sebastião e aos outros, de estancar tal enxurrada de gargalhadas.

- Antes lhe dê para rir que para chorar, como acontece com alguns outros sobreviventes de derrames cerebrais, atalhou a Júlia enquanto o velho simplesmente se babava, não rindo agora por na prática lhe ser impossível rir e babar-se simultaneamente por várias razões ou motivos e da duas três, ou era essa a questão, ou não apanhara nenhuma piada no ar, ou simplesmente se encontrava feliz por aquela prova de carinho e homenagem, Ou pura e simplesmente no meio de tanto burburinho tudo lhe escapara sendo essa a razão pela qual ostentava tão estranha expressão, uma cara de parvo, ou de idiota, que comummente vemos nos mouquinhos por serem incapazes de apreender a totalidade desenrolada à sua volta. Babava-se feliz e é tudo quanto por agora nos interessa saber, isso e talvez não se limitar o almoço a reunir somente o grupo nuclear e habitual de amigos, antes relevemos ter o motivo subjacente à sua génese atraído pessoal de Alcabideche, Samouco, Bordéus, Poitiers e Toulouse, a ponto de alguém aventar estar ali reunida a diáspora portuguesa. 

             O melhor seria alcunhar o grupo de Grupo da Diáspora, adiantou o Espírito Santo, não, não esse sobrenatural ou divino dono disto tudo, antes o irmão do António Rolo Espírito Santo, amesendado à sua esquerda, ambos emigrados, um em Northwich, o outro em Kiev, a quem Dagoberto Metrot, vindo de França e emigrante de terceira geração dera a sua concordância, alegando e arranhando num português deixando muito a desejar, estar ali reunida a nata da diáspora. 

Evidentemente aquele desabafo não passou de arroubo patrioteiro, não esqueçamos comemorar-se o facto de o velho Sebastião ser homem de boa cepa e efectivamente se festejar a sua resistência e sobrevivência, se é que não existe contradição alguma entre a designação de avc fulminante e a categoria de morte silenciosa vulgarmente atribuída a este distúrbio da saúde, geralmente ocorrendo sem avisar, de forma lenta e tão insidiosa quanto astuciosa a ponto da vitima nem dar pela sua vinda, fenecendo de todo ou ficando muito estropiada ou limitada para o resto da vida, ou nem tanto assim, ali estava o velho quase tão são como um pero graças a uma milagrosa recuperação.

Portanto cousa muito diferente duma embolia, tendo sido neste ponto que a Linda cortêsmente explicou à Júlia que embolia e embolar, embora parecidas eram coisas completamente distintas, subtilezas que uma emigrante nada e criada fora, como acontecia com ela, teria alguma dificuldade em discernir, afastando-se as duas, a Júlia e ela, Linda, para longe dos restantes, dissertando acerca da dualidade embolia/embolar, abalada que não escapou despercebida, tendo alguém certamente mal-intencionado alvitrado que a Linda Love estava com um traseiro que mais parecia uma égua, numa clara alusão às ancas largas, convidativas e sedutoras de Linda, forjando com algum contorcionismo um trocadilho com as cavalariças reais, ali bem perto e onde aos puros Lusitanos e aos de Alter Real era mantida brilhando a estrela da raça.

Sempre houve e sempre haverá alarves deste quilate, sobretudo numa mesa guarnecida de néctares genuinamente alentejanos, capazes de calar o mais loquaz e de soltar a língua ao mais calado, mormente se, como nesta ocasião especial acontecia, se tratasse dos denominados reserva, ao que o velho Sebastião, por já estar com um grão na asa ou por ser mouquinho acrescentou tratar-se da reserva da nação, perdendo-se na explicação sobre esse facto, nós os alentejanos sempre fôramos, constituíramos para ele a reserva da nação, e agora passo eu a explicar pois estive lá e presenciei a coisa, não vá acontecer vocês julgarem o velhote taralhouco, aludia ele ao facto de o Alentejo ter sofrido e continuar sofrendo uma sangria, fenómeno a que os geógrafos chamam êxodo rural e que os leva, nos leva a nós alentejanos daqui para os arredores da capital, onde fundámos e povoámos as zonas que os alfacinhas alcunharam de “os saloios” e disseminadas por Almada, Seixal, Barreiro, Amadora, Setúbal e outras que agora me não ocorrem como as do litoral, de que Sines é exemplo maior, essa e todas elas a milhas desta transtagana terra onde nos encontramos, sofrida e devastada desde há séculos.

- Para não dizer milénios – Acrescentou a Zéza Pexita, sadina de gema, veterinária especializada em equinos, há uma década aqui aportada em busca de emprego e de marido, tendo encontrado o primeiro muito antes de aqui chegar, aqui digo Alter do Chão, mas continuando e teimando achar o segundo sem que esteja à sua vista ou ao seu alcance qualquer potencial solução.

Em boa verdade o Alentejo, uma das regiões mais lindas e promissoras do país tem uma história de milénios, é difícil não nutrir amor por estas planícies por onde os olhos se espraiam e o olhar se alarga, e falando de amor é bom não esquecer ser suposto este livro virar um romance, está porém custando a entrar nesses eixos, por agora têm sido apenas divagações em torno disto e daquilo, deixando ou permitindo pressupor não ter encontrado ainda o seu caminho, o seu ritmo, estará criando o ambiente para tal, o pano de fundo onde se desenrolará e esperamos sinceramente que uma vez encontrado o azimute faça como fez o Gama, se ponha a caminho, se ponha a andar, imitando esse alentejano da Vidigueira, ou de Sines, luta ou disputa  não vinda ao caso mas ao acaso e a propósito de decidirmos por uma vez se queremos fazer destas linhas um romance histórico, se um romance de cavalaria como já fui levado a pensar quando mencionado Alter do Chão e as cavalariças reais, se um romance de amor, subentendendo-se aqui o amor em geral, o amor humano, também entre elas e elas, como já vimos ou intuímos, ou desconfiámos entre a Linda Love das belas ancas de égua, assim ela me perdoe a ousadia e a Júlia, embora igualmente haja quem alvitre ou introduza nessa equação a Zéza Pexita, é-me indiferente, deve ser-nos indiferente, amor é amor, quanto mais colorido melhor e verdadeiramente em causa não está a sua natureza, não digo o seu género para que não confundam com géneros, ou um problema de género, pois está em causa e tardando, volto a frisar e a recordar, é saber se toda esta conversa vai descambar num romance ou não, seja ele um romance de amor ou um romance épico, policial, psicológico, de aventuras ou de capa e espada.

Manda a lei elaborar para cada obra um guião, definir personagens e traçar-lhes o esboço, parecendo-me estar no bom caminho. Algumas personagens foram já apresentadas, outras se seguirão na justa medida em que o romance se for ele mesmo desenvolvendo e digo ele mesmo por me parecer estar ganhando vida própria, desculpar-me-ão caso algumas personagens até aqui colocadas em posição de relevo venham a cair no esquecimento, enquanto outras farão a sua aparição no momento apropriado e viverão, ou não, uma vida longa, todavia sempre conformes aos desejos da narrativa, essa sim de primeira água, assim o exigem os leitores o amor e a verdade histórica, tanto mais termos que contrapor ao conturbado tempo vivido, o momento ou era da pós-verdade, adianto eu para esclarecimento dos mais distraídos, era insalubre, instável, equívoca, gelatinosa, ambígua e a que teremos que opor a placidez das ideias sólidas, da verdade vera, do testemunho histórico, da prova provada, da honestidade jurada, dos princípios, sob pena de sucumbirmos numa nova idade das trevas, atrever-me-ei a classificá-la como novel idade da estupidez esclarecida.

Em franca confraternização o confirmaram estes alentejanos das sete partidas do mundo e nem será precisa muita imaginação para nos debruçarmos sobre os temas que, numa hipotética sondagem apareceriam no cimo da tabela, o Alentejo, os alentejanos e naturalmente os seus vinhos e os seus queijos e enchidos, confirmada estão a auditoria e as conversas decorrendo em redor de um lauto repasto. Por efeito de arrastamento o país segue na esteira dessas conversas, quer no princípio quer no fim delas, já que o que os alentejanos não influenciaram, teve influência no Alentejo, país e província cara e coroa de uma mesma moeda, e, terei que o confessar, cada vez mais desvalorizada, ou cada vez com menos valor, o que parecendo ser a mesma coisa não o é.

Por ver tanta gente junta ocorreu-me existirem personagens por quem nunca ou raramente damos, que se insinuam mas tratamos todavia com uma indiferença estudada, por vezes cultivada, correspondendo eles com uma postura de alheamento propositado, comprometido, resultando não nos perdermos de vista, num excesso de simpatia pré-fabricada, e, reciprocamente fingindo cada um não dar pela presença dos outros, porém medimo-nos e miramo-nos, controlamo-nos mutuamente, respeitosamente. Esta espionagem não sucedia em virtude da guerra fria, entretanto estendendo-se como um manto de geada sobre a terra, mas porque os mandantes cá da terra receavam que quaisquer bombas lhes rebentassem surpreendentemente nas mãos como por vezes sucede com as bombinhas de carnaval, umas vezes levando os dedos, outras a mão, se não os olhos… A realidade é que a última coisa que desejariam seria ser apanhados de surpresa por algum Outubro vermelho que os apeasse do trono a que se julgavam com direito vitalício, para o que tomaram precauções acrescidas e, adaptando aos fins os meios necessários nem olharam a pormenores, no caso e para eles sem importância maior que a d’um pacote de amendoins. Peanuts portanto, contudo melhor será que se lhes dê a atenção que aparentemente não mereceriam a fim de evitar surpresas desagradáveis, por isso esta desconfiança para com um personagem cuja hora de ser retirado da prateleira onde arrumado estava aguardando a vez de entrar em cena chegou, trata-se nem mais nem menos do amigo de quem temos vindo falando e que alcunhámos há muito do John Le Carré cá da terra, numa despudorada alusão ao pseudónimo do famoso escritor de romances de espionagem, David John Moore Cornwell, criador de enredos e de espiões. Santiago, assim se chama o nosso amigo que nada tem de santo, bufo ou não, mas da sina não se livrando ele, se é só fama sem proveito ou se além dela o colherá, ninguém sabe ao certo, ao certo sabe-se apenas que pelo sim pelo não é melhor jogar pelo seguro e calarmo-nos ou mudar de conversa mal ele se aproxime, o país tresanda de bufaria e todo o cuidado será pouco.


II


Embora sendo visita de casa nem por isso nos víamos muitas vezes, talvez a média duma vez de dois em dois anos, ou pouco menos fosse a avaliação acertada, e nunca pelo Natal, Ano Novo, Carnaval ou Páscoa que nisso o Dagoberto era parecido comigo que sempre detestei as épocas festivas. Mas esta memória não vai para ele, vai para a Júlia, em casa de quem eu geralmente o via, e a via a ela tão diferente dele quanto a noite o pode ser do dia. A memória vai para ela que conheço, que conhecia desde jovem e com quem tive grandes discussões filosóficas, metafisicas ou existencialistas, chamemos-lhes assim pois nunca foram abertamente sobre a paixão ou amor, embora tivéssemos algumas vezes adormecido nos braços um do outro. Tempos que já lá vão e não voltaram nem voltarão jamais, tanto mais que o seu casamento teve lugar há meia dúzia de dias e a sua memória ainda me pesa no coração. Andaríamos pelos dezassete ou dezoito anos, fora ela quem me apresentara Sartre, Camus, Marguerite Yourcenar e Kundera, numa época em que a cultura e a literatura francesas davam cartas ao mundo, no cinema também digamos, convém que sejamos justos pois ela regressara a Portugal após esmerada educação no Collège Saint-Juste, nos Pirinéus franceses* cujo rigoroso ensino constatei por ela, pelo abandono quanto aos pormenores sem significado e pela bagagem literária e cultural que carregava. Ouvíamos música, francesa claro pois estava na berra por essa altura “Je T’Aime Moi Non Plus” de Jane Birkin e “Que Je T'aime” de Johnny Hallyday este último ainda vivo e mais fóssil que Roberto Carlos. ** Júlia nem teria dez anos sequer quando um milagre a salvou de morrer enregelada nos braços da mãe, colada a si numa tentativa desesperada de a proteger dos rigores da situação em que se viu envolvida e a quem o Senhor terá ouvido. Manuel Mestre, o pai, arriscara coiro e cabelo, apostara o fraco pecúlio que conseguira amealhar e entregara-se com a mulher, Perfeita da Anunciação, nas mãos de um passador que lhe tinham recomendado. Para ser franco não lhe tinha sido recomendado mas indicado, amigo já em terras de França garantira-o, pelo que não tendo mais nada a perder Manuel Mestre apostou tudo e entregou-se-lhe nas mãos e nas mãos de Deus, do destino, naturalmente ignorando estar a sua sina há muito tempo traçada. Zaragoza, o passador, em tudo o instruíra e recomendara. Previra aproveitar o rigor do inverno e a menor vigilância da Guardia Civil para passar a fronteira a salto, do lado de lá dos Pirenéus as autoridades fechariam os olhos, tanto mais nem ser ele um desconhecido para elas, pois tornara-se habitual aproveitar o Natal e o Ano Novo para fazer passar a maior quantidade possível daqueles migrantes aventureiros deixando para trás uma vida cheia de nada e um futuro com mais do mesmo.


Manuel Mestre fizera-se homem preguiçando pelas escadas do adro da igreja de Baleizão, ora rezando por ser um dos escolhidos para a jornada do dia ora mendigando um servicinho aqui outro ali, quando não uma côdea de pão, e isso não era vida, nem era vida nem era digno, bem o percebera quando, depois de casado, volvia a casa de ombros caídos sem nada nas mãos que confrontasse com o olhar pesaroso de Perfeita da Anunciação.

Nas horas passadas estendidos nas escadarias do adro da igreja os homens cerziam a preguiça com sonhos e fantasias quotidianamente servidas p’la realidade em doses homeopáticas e, inda ou mesmo sendo insuficientes lhes abafavam contudo a sede de justiça e a revolta. As últimas fantasias então em voga traziam até eles novas de França e das inúmeras oportunidades abertas por lá a quem acreditasse no progresso, na democracia e pugnasse por um trabalho bem feito, por solidariedade, responsabilidade e dignidade. 

Aquelas duas últimas palavras ficaram ressoando nos ouvidos de Manuel Mestre durante dias, justo será que se diga durante semanas ou meses a ponto de se poder garantir nada mais ou cousa nenhuma que não aquela, lhe importaria ou suscitaria dúvida sobre dúvida.

Lentamente e apanhando uma coisa aqui outra ali foi ele capaz de pintar um quadro ainda que minimalista, ou redutor, do cenário com que agora preenchia os sonhos, as fantasias, as aspirações e os anseios e, no seu íntimo via-se entrando em casa regressado do trabalho, cansado mas mais altivo que nunca e no rosto sempre um sorriso que não teria que se confrontar, antes iria ao encontro do que Perfeita da Anunciação licitamente esperaria dele, o sorriso dela desta vez não cairia no chão.

Verdade não fazer Manuel Mestre ideia nenhuma de quanto implicava a categoria redutora ou minimalista que acabámos de atribuir ao quadro mentalmente por si pintado e ao qual diariamente acrescentava algumas pinceladas, para ele era suficiente terem as coisas princípio meio e fim, e gradualmente a imagem a reproduzir em toda a sua plenitude se acabado, paulatinamente tomava forma no seu cogito, levando-o a concluir que à sua vida só daria um final digno se arriscasse abandonar o meio em que vegetava, meio esse nada mais tendo para lhe oferecer que coisa nenhuma.

Aos poucos e por caminhos ínvios foi dando corpo a uma hipótese de cuja tecitura cuidadosamente cuidou, para tal embrenhou-se ouvindo os velhos da terra, em especial o Semião, cuja vida fora passada em Barrancos e lhe contava das desgraças da guerra civil de Espanha, acontecidas e conhecidas em primeira mão pelos testemunhos de republicanos fugidos de Franco, fardo que carregavam nas costas para só atirarem ao chão quando se soubessem a salvo em terras portuguesas, ou as aventuras e desventuras dos foragidos da guerra assolando a Europa e o mundo, incluindo as peripécias e o percurso dos pilotos aliados trazidos em redes organizadas de fugitivos por terras de Espanha até Portugal, de onde catapultavam o regresso à Grã-Bretanha. Digo peripécias ou chamo peripécias a essas aventuras e desventuras por na verdade alguns daqueles pobres diabos se terem visto, a páginas tantas, sem saber que vira dançar, chutados que se viam de um lado para outro. Fugidos de Franco, os aqui refugiados estavam destinados ao embate contra Salazar e por sua vez recambiados, isto é, ressaltavam na paz e na justiça procurada e esperada como uma pedra chata ressalta num charco se a atirarmos de viés contra a superfície calma das águas. Felizmente alguns de nós não acharam graça ao vira dançado e recusaram-se a dançar o vira ordenado pelo mandador, que é como quem diz aplicaram-se numa contradança e, à sorrelfa foram alimentando outro bailinho, daí dizer-se que ante os viras de Franco e de Salazar, bailes mandados onde somente os mandadores bailavam, ter havido quem ousasse dizer que;

- Ao leme de Barrancos eu sou mais que eu, não me tentem prender nem impor uma fé, ao leme vai quem nada teme e menos tem a perder, aqui sou eu o homem do leme. Portanto, antes desse grande homem e grande diplomata a história deve registar e não esquecer, outros aristides sousas mendes, como será o caso sabido e consabido do humanista que foi o Tenente António Augusto de Seixas*

Todos estes pormenores Manuel Mestre ia anotando no seu mapa mental, era importante para ele saber que havia mais mundos além daquele em que penava, pois de outros não fazia ideia se seriam redondos ou cairiam a pique mal transpusesse o horizonte ou os limites das herdades do senhor engenheiro Casimiro Martins Perdigão, estendendo-se de Mértola a Baleizão. Tal era a acuidade e o pormenor com que ilustrava agora a sua ignorância que inclusive duas ou três semanas inteiras perdeu, ou ganhou, dependendo dos pontos de vista e dos resultados e proveitos obtidos. Digamos então que as ocupou na morosa e difícil tarefa de se esclarecer, para saber, quem, e qual o principezinho** a quem a fatalidade do destino ditara a morte aos comandos de uma máquina voadora daquelas por vezes sobrevoando a aldeia, ou em perda, ou simplesmente perdida, e que capitaneara frente à obsessão animalesca que grassara por uma Europa refazendo-se do caos e dos destroços em que a tinham deixado, a mesma Europa com a qual sonhava agora não o deixando dormir.




Manuel Mestre não vivia a leste da realidade, embora sonhasse muito. Quase a completar trinta anos, olhava com apreensão para o que fora a vida do seu amigo João M. Carrajola, uns anos mais velho e até essa mesma idade nunca tendo vivido, como ele não vivera nunca, uma situação estável. Por força das circunstâncias todas as situações passadas e por eles vividas unicamente poderíamos considerar precárias. Tentando tornear esse óbice João Carrajola ingressara na GNR resvés os trinta e seis, a baliza das admissões nos quadros do funcionalismo público, fora portanto à justa que encarreirara a vida, tarefa dificílima de conseguir por esses dias, gabando-se de agora ter tempo até pra ler, pena não apreciar fazê-lo. Não se trata aqui de admitir ou alvitrar serem os livros coisa desconhecida na aldeia, a carrinha itinerante carregando a Biblioteca da Gulbenkian encostava à sombra da igreja todos os quinze dias e alguns felizardos a ela se chegavam. Não era o caso de Manuel Mendes, não detestava ler, contudo nas horas preenchidas fazendo pela vidinha não lhe sobrava tempo, e quando o tempo lhe sobrava arrastava-se pela escadaria do adro da igreja tudo lhe apetecendo menos ler, não lhe faltaria então vagar, sendo neste caso a indisposição, ou antes a falta de disposição a origem de todos os males. A leitura e a cultura, pensava de si para si, eram coisas de quem tinha vagar, ou posses, surgindo-lhe cada vez mais como um privilégio dos ricos a que o pobre nunca se poderia alcandorar. O pobre e a sua pobreza seriam assim como a roda da fortuna que nas feiras perpetuava a ilusão, poder sair prémio poderia, porém se tiver cem números as probabilidades quedam-se de uma contra cem, uma a favor e noventa e nove contra. Pobre carrega, arrasta e perpetua a sua pobreza como Cristo carrega os pecados do mundo há uma eternidade. Faltar-lhe cabeça para ler é como dizer não dispor de paz, sossego, estabilidade, equilíbrio, não significava negar a Manuel Mestre capacidade de discernir ou se aperceber-se da canga sobre si pesando. O que lhe faltava era precisamente o que não se encontrava ao alcance de todos, e não os livros. Falo do patamar de felicidade e de equilíbrio que o seu amigo João Carrajola, perto dos quarenta anos finalmente encontrara, o ponto de firmeza e solidez de uma vida até ali atormentada por toda a insegurança que a alimentara. Mercê dos esforços desencantados e recompensados por uns padrinhos com o fito de lhe proporcionar uma outra vida, e à Leopoldina por quem se enamorara e a quem trazia pelo beicinho, João Carrajola viu-se pela graça de Deus fardado, comprometido, bem nutrido e despreocupado. Até os ataques de epilepsia e os nervos à flor da pele lhe haviam desaparecido de um dia para o outro, cousas que bastas vezes o tinham deixado em maus lençóis por o tornarem impetuoso, segundo uns, irrascível segundo outros, prepotente segundo terceiros, e intolerável segundo alguém anotara na ficha que sobre ele existia numa gaveta do posto da GNR da vila, ficha essa onde, em letras bem vermelhas alguém assinalara a sua personalidade, “perigoso”, tudo devido a uma infância atribulada, à ausência de carinho e ternura tão imprescindíveis nessa tenra idade, à constante desarmonia da sua vida anterior e que a regularidade com que o brindava o trabalho de natureza precária não ajudava a esbater ou a fixar. Mas isto são coisas magicadas pois apesar de ninguém as acrescentar nessa tal ficha por a mesma nem existir, acautelamo-nos nós a fim de compreender os efeitos averiguando e procurando entender as causas.


III


Pois o sucedido, muito antes ainda do nascimento desta fulcral e primordial Júlia se tornar imprescindível à nossa história, foi ter passado o estado de graça do amor e uma cabana. Manuel Mestre e Perfeita da Anunciação começaram, também eles, olhando à sua volta interrogando-se acerca disto e daquilo, por que não tinham eles direito a trabalho certo se eram tão jovens, fortes e voluntariosos, prestáveis e disponíveis, ou por que não lhes chegava a jorna para mais que meio pão, um casebre digno de um cão e, depois de contados e recontados os tostões nem um deles, nem um tostãozinho ficava para uma segurança do amanhã, um pecúlio para a menina, uma extravagância para uma saia, um capote ou umas botas de homem, já que não fora o relógio da igreja anichado frente à sua porta, sua deles, nem as horas saberiam por falta de verba para uma corrente ou um cuco quanto mais para uma geringonça daquelas, geringonça com a qual Perfeita da Anunciação embirrava desde que uns dias atrás, pela matina, ouvira nitidamente as badaladas do dito cujo assinalando as oito menos um quarto no preciso momento em que, ao acercar-se da porta do moiral da Herdade dos Safados, ele moiral a convidara a entrar e lho garantira, lho, o trabalho, sempre que ela quisesse e o aceitasse, a ele moiral, isto é, trabalho sempre garantido mas desde que ela consentisse em que ele, Fortunato Encarnação, lhe desse uma badalada de vez em quando pois também ele era humano, um ser humano, um homem de carne e osso, e não de ferro, ele mesmo reconhecia ali ante ela as suas fraquezas, fraquezas dele, mormente ante ela Perfeita da Anunciação, sublinhou, uma mulher linda e perfeita como nunca nem alguém lhe anunciara outra.

Por momentos custou a Perfeita da Anunciação acreditar no que os seus ouvidos lhe garantiam estar ouvindo, apanhada de surpresa que fora. Sabe a ciência que em situações assim o nosso cérebro puxa à mente em milésimos de segundo um bilião de coisas, de lembranças, de memórias, de hipóteses que possam explicar o que se está ouvindo mas não acreditando, qual a reacção ou resposta adequada, e fá-lo tão rapidamente que o melhor computador não foi ainda capaz de processar tão grande quantidade de informação em menos tempo, pelo que Perfeita da Anunciação teve, embora aos nossos olhos caso lé tivéssemos estado e assistido tal não tivesse sido nem miraculosamente possível na fracção de segundo que um piscar de olhos ocupa, mas foi, foi e teve ela tempo para depois de refeita de tal choque, ou surpresa, ajuizar com algum humor, melhor dizer com alguma ironia quão melómano este Fortunato lhe saíra se comparado com o primo Xico Estevão, um adepto confesso das mocadas, entendida a palavra como acto de percussão, mocada, pancada, batida, de longe muito mais forte e violenta que a badalada, esta mais melódica que aquela, mais dispersa no ar, menos invasiva, intrusiva do pavilhão auditivo e respectivo canal, logo menos ofensiva, ofensiva no sentido de agressiva, ofensiva no sentido de um corte ou de um rasgão, uma concussão ou laceração, portanto impossível de comparar com mocada, que deriva de moca, sinónima de pancada e de batida, cousas que por certo não deixariam de provocar, originar, golpear, ferir, fazer mossa, ainda que Perfeita da Anunciação nunca tivesse sido vitima do seu rude primo Estevão que nós agora e mercê desta exaustiva explicação quase pintámos como um troglodita armado de clava e cabeludo, primo com quem aliás uns anitos atrás namoriscara uns mesitos sem contudo trilhar caminhos que a impedissem de chegar casta ao casamento.

Não que pretendesse passar por santa ou por ingénua, nem uma coisa nem outra, simplesmente sublinhar que sempre soubera aparar o jogo ao primo Xico e evitar ou cuidar que as por ele chamadas ou designadas mocadas fossem aparadas, amparadas ou amortecidas, de molde a não deixarem amolgadela, abalo, comoção, testemunho ou cicatriz, a única defesa possível num mundo de malvadez e preconceitos que uma jovem casadoira nunca deve descurar antes do casório, mas sim levar convenientemente a peito. E por falar em peito, ante o olhar lúbrico e deslumbrado de Fortunato Encarnação, de imediato Perfeita da Anunciação buscou agarrando-as as pontas do xaile que sobre os ombros levava despreocupadamente e o repuxou de aconchego a si e de modo a que melhor se cobrisse, terminando este repentino cuidado e amparo com um cruzar de braços sobre o móbil de tanta observação e, no momento em causa, origem de tanta celeuma, tanta agitação, podendo nós concluir que ser generosa, se de peitos, pode ao invés do vulgar e licitamente esperado, perder uma mulher.

Badaladas ou mocadas, o certo é que Perfeita da Anunciação não ficou para ouvir a música em que Fortunato intentava embalá-la e, cinco segundos não tinham decorrido já ela se virava bruscamente e ainda a geringonça da torre sineira não acabara de bater a oitava badalada quando Perfeita da Anunciação ruborizada e atrapalhada deitou correndo em direcção a casa, casa essa, ou esta, onde vive, onde agora escuta sempre com um misto de indignação e revolta as badaladas que anteriormente tanto gosto lhe dava ouvir, mas que se lhe tornaram insulto insuportável desde que deixara o desafortunado do Fortunato de discurso por acabar e com o badalo nas mãos, sendo que estas últimas palavras não passam de força de expressão minha pois o bom do Fortunato, tal qual já acontecera com o senhor engenheiro Casimiro Martins Perdigão, descontada a compostura, que nunca haviam abandonado nem perdido ante Perfeita da Anunciação, o único aspecto em que se viram desarmados foi na cobrança, já que nem a um nem ao outro foi pago o preço da borrega que intentaram cobrar junto da jovem, bela e roliça Perfeita da Anunciação. *

* Ver Galopim de Carvalho, “O Preço da Borrega”.

E se nas suas divagações e interrogações Perfeita da Anunciação questionava o porquê das suas amigas, ou pelo menos algumas delas serem preferidas e terem as jornadas garantidas, enquanto outras eram preteridas e quase atiradas para a mendicidade, a dependência, a pedincha e até a prostituição, estava a lembrar-se de Luna Maria, e enquanto indagava para si mesma quantas, quais e quem se teria já deitado a ouvir as badaladas que lhe haviam de assegurar o trabalho no dia e dias seguintes, Manuel Mestre ponderava quanto do seu caracter não estaria a prejudicá-lo, já que não era dado a bajulações, ao beija-mão, à graxa, reflectindo igualmente quanto o facto de falar muito e fazer demasiadas perguntas o estaria a lesar, tido como era por ser um individuo revoltado.

O seu amigo João M. Carrajola tinha-o disso uma vez acusado, e de subversivo, coisas sem pés nem cabeça, acusações sem fundamento e que de todo nem faziam parte da sua personalidade. Mas como dizem os sábios mais vale sê-lo que parecê-lo, Manuel Mestre nem estava a ser, nem fazia por o parecer, e fosse como fosse o resultado era o mesmo, uma maioria dos dias sem ser escolhido para completar a jornada, o regresso a casa cabisbaixo, a vergonha sentida ao encarar Perfeita da Anunciação, calada e de olhos pequenos, mortiços, olhando-o já sem nada lhe perguntar, antes adivinhando o sofrimento abafado por ele e impossível de ser escondido ou disfarçado, interrogando-se nestas circunstâncias e cada vez que ele galgava o umbral da porta quando, quando seria que a fome a obrigaria a deitar-se escutando as malditas badaladas e já nem diferença lhe faria fosse com o senhor engenheiro Casimiro Martins Perdigão ou com o bom malvado e afortunado Fortunato Encarnação.

Num tal ambiente, o casal não ter uma catrefa de filhos acabava sendo uma felicidade, um rebanho, meninos ou meninas, só agravaria todos os problemas vividos e não vividos ainda mas dos quais o casalinho começara a aperceber-se, como ampliaria a dependência de que ficariam prisioneiros, ou reféns, e bem podemos dizê-lo pois já o pensámos, lá teria, ou não teria Perfeita da Anunciação que sujeitar-se ou submeter-se a pagar o preço da borrega se quisesse ter com que alimentar tanta boca quando três já eram difíceis de contentar.

De tamanhas atribulações ia escapando João Carrajola o qual, depois de pintar a manta bem pintada e quanto quis e lhe aturaram, ou permitiram, logrou padrinhos que o tivessem enfiado à pressão nos quadros da GNR uns escassos dias antes de completar trinta e seis anos e antes de o limite de idade para a sua admissão ser atingido. Penso já aqui o ter dito, não vos disse foi ter-se ele distinguido enquanto cabo do posto de Baleizão pelas sevícias proporcionadas a quem tivesse o azar de lá cair, lugar onde o nosso cabo, ciente da sua hombridade e sentido de justiça tentava moldar todos à sua imagem e semelhança, se preciso fosse à força, o que bastas vezes lhe trouxe contrariedades quase chegadas a vias de facto e, somente quando os confrontos com a população, que não escondia a sua antipatia nem o desagrado por ele nem quão pouco era estimado atingiram proporções desaconselháveis foi finalmente corrido dali.

Mas Deus escreve por vezes torto em linhas direitas e algures alguém tomou por bons ofícios o interesse e a dedicação do nosso amigo Carrajola pela manutenção da ordem e da disciplina, da autoridade, a ponto de, na hora H o terem transferido para uma cidade das Beiras onde o esperava o curso de sargentos, valendo-lhe ter-se furtado ao desagrado das gentes de Baleizão, preparadas para lhe fazerem a folha, o mesmo é dizer fazer-lhe sentir o seu pesado sentimento de repulsa e nojo. Foi muito depois disto, destes acontecimentos, deste tempo de trevas que Júlia veria finalmente a luz, sim, esteve para se chamar Maria da Luz, mas não calhou, o destino não quis, ficou Júlia da Anunciação Mestre, mas essa é outra história que mais adiante talvez vos conte.

Por agora fiquemo-nos pela luta p’la subsistência, isto é, para que não fiquem dúvidas aos mais distraídos, a luta pelo pão de cada dia, luta ocupando não só Manuel Mestre mas milhares se não centenas de milhar ou milhões d’outros como ele em todo o Alentejo e por todo o país e para quem a sobrevivência constituía o cerne das preocupações diárias não lhes deixando tempo livre para meditações filosóficas ou manifestações culturais, nem sequer para uma simples leitura, já aqui foi dito, tal não obstava porém a que as conversas de taberna ou mesmo as de índole mais lânguida como seriam de supor quando estiraçados nas escadinhas do adro da igreja buscassem tema para matar o tempo, dizia eu que essa ausência ou falta de tempo e oportunidade não impediam contudo os sussurros, o diz que disse, a palavra passada oralmente de uns para outros, cochichada como quem passa numa estafeta o testemunho de mão em mão, ou antes de ouvido em ouvido, dos Urais aos Montes Hermínios, espalhando-se pelas vastas e desabrigadas planícies de Pax Júlia, não sem antes ter atravessado a Baviera e trazendo até ele Manuel Mestre e outros os ecos de novas modas, a visão crepuscular de um Outono vermelho cujas ondas arrastaram na sua avançada todos os escolhos, todos os lagos, todos os rios, tudo submergindo, tudo obliterando, tudo arrasando numa onda das que os tsunamis soltam e parecem nunca parar até embater numa manhã a que alguns chamaram social-democracia e ter subitamente parado o avanço, substituída por outras mais altas esperanças se lhe oporem. Manhãs de esperança ou ondas avassaladoras eram tudo quanto Manuel Mestre e os outros poderiam sonhar ou fantasiar, pois inda que sem tempo para lerem lhes sobrava o mesmo para a utopia e a crença na possibilidade de mudar tudo, senão agora, talvez um dia.

Eivados de esperanças os homens tornaram-se cada dia mais impertinentes, resistentes e combatentes, pelo que de este a oeste das herdades do senhor engenheiro Casimiro Martins Perdigão, o mesmo é dizer de Barrancos a Baleizão, o clima e o ambiente vividos em cada vila, em cada aldeia, em cada largo ou adro de igreja subia, galgava dia a dia um degrau na escala de ebulição, adquirindo um estado latente e tornando cada vez mais nítida a impossibilidade de ser encontrada uma solução enquadrada no âmbito de uma escolha moderada ou diversificada e consensual, compelindo a situação vigente e a contra situação para um radicalismo que não deixaria a ninguém margem para dúvidas, nem outra opção que não a aposta num dos extremos de um leque ideológico que, quanto mais uns teimaram manter fechado mais outros forçaram a abertura, e nem a mediação de um general apressadamente baptizado de sem medo logrou por um momento deitar água na fervura, diríamos aqui ter sido desejável racionalizar posturas, protocolos e comportamentos não redundando no rebentamento incontrolável de um dique que, uma vez aberto dificilmente seria fechado, ou controlado, havendo até quem, perdido por cem perdido por mil, advogasse atalhar caminho rebentando de vez com a represa, e fosse a aposta às cartas, com moeda ao ar ou contando os dedos de mãos disparadas detrás das costas para apresentação ao jogo numa jogada imediata frente à cara ou aos olhos do adversário, se jogasse e apostasse tudo no tudo ou nada.

Não fora esta revolta, surda, por enquanto mais pressentida que sentida e a vida de João M. Carrajola poderia ser chamada de uma rica vidinha, como melifluamente os homens se costumavam mimar uns aos outros engrossando o rol dos estendidos ao sol nas escadinhas do adro e, a bem da verdade devemos dizer ser cada vez mais numeroso o número de homens e o número de dias de rica vidinha a que eram forçados, e não convidados a passar espreguiçando espojados e galhofando estendidos nas lajes de xisto que escarafunchavam com o bico das navalhas e onde uns escreviam o que lhe ia na alma, desde amo-te Dolores ao nome dos filhos, das mães, quando não autênticas provocações como morte a Salazar, até ao altamente subversivo elogio a Lenine, que todos sabiam ser o nome do cão pertencente ao cabo da guarda, comandante do posto e para o caso cúmplice, guarda-costas ou capanga próximo e dilecto do nosso bom João Carrajola, ausente nas Beiras.

Íamos nós dizendo, ou nós já aqui o dissemos, ou deixámos intuído, ou melhor, subentendido, nestas coisas há que usar de uma cuidadosa subtileza pois as paredes têm ouvidos e nunca sabemos quem estará pronto a bufar, isto é a denunciar, a apontar, a ladrar ou a morder. Dizendo quanto ao recurso ao nós é fórmula usada e abusada a fim de te endrominar, enrolar, arregimentar, cooptar, ou seja, de te fazer pensar ou melhor acreditar que deste lado estará uma multidão solidária contigo, concordante contigo, encorajadora, em que possas respaldar as costas a fim de que as sintas quentes, é manobrismo, é figura de estilo, pura retórica, não passa de um sofisma para te conquistar a confiança, para te trazer para o meu lado fazendo-te crer estar eu do teu, é sonho ou canção para te embalar os sonhos e de que só acordarás quando levares um tiro ou quando precisares de toda esta gente, de todos nós, e verificares com espanto estares só, sem ninguém a teu lado, sem ninguém que te apoie, que te ampare, porque se a união faz a força a desunião é a desgraça de todos nós, de todo o país, e a densidade de bufos que se presume existirem por cada cem mil habitantes garante que toda esta gente não presta, com ela não se vai a lado nenhum e o melhor é fazer a trouxa e zarpar.

 Evidente se torna que teoricamente todos podem zarpar, todos menos o nosso bom João Carrajola, guindado que está a um emprego de estado, emprego oficial, no cobiçado sector do funcionalismo público, um lugar estável, garantido, já não se encontra na mó de baixo, agora zela pelo bem-estar e pela autoridade, pela disciplina, pela promoção da submissão ao interesse colectivo, pelo bem-estar de quem depende e que dele frue, e quanto à autoridade, ao mando, naturalmente o daqueles que podem dar-se ao luxo de dizer quem está bem e quem não está, por isso todo o clima subversivo que se ia gizando pelos campos e aldeias do Alentejo eram por si só uma ameaça ao bem-estar do nosso bom Carrajola e um desafio à sua importância crescente, diria que uma ameaça velada a um direito que ele sempre julgou legalmente seu, o direito de se fazer obedecer e que abomina ver contestado. Sinais visíveis do desassossego em que a situação o deixava eram o regresso dos esquecidos ataques epilépticos, dos nervos à flor da pele, a intolerância cultivada e a cegueira generalizada a tudo quanto fosse por ele considerado ameaça à rica vidinha que finalmente encontrara, ao futuro assegurado, à carreira institucionalizada, à reforma assegurada. 
  

IV


Se bem que os transportes se mostrassem rudimentares e os telefones um luxo acessível a bem poucos, as novidades iam-se sabendo, embora o Diário Novidades raramente apresentasse uma, qualquer que ela fosse. A imprensa como sempre fizera ao longo da história, perpetuava a modorra, sendo essa a regra pois as excepções teriam sido esgotadas no tempo de Gutenberg. O manto de silêncio estendido sobre tudo e todos como um nevão alimentava contudo uma velha paixão de ser humano, o borburinho, e por ele, ou por eles se sabia do estado de revolta cujo sentimento animava as terras alentejanas, onde esporádicos e episódicos focos rebentavam aleatoriamente como pressão que a melhor panela dificilmente contivesse. Desordenados, aleatórios, episódicos, pontuais, tinham porém lugar, existiam, aconteciam quando e onde menos se esperava, multiplicando-lhes o efeito, aumentando o receio da sua oclusão. Era um fenómeno novo com o qual ninguém parecia saber lidar, alimentado pelos ventos de leste trazendo notícias de lutas, conquistas e vitórias que, se por um lado animavam uns, por outro amedrontavam outros, sendo que o ponto de equilíbrio ideal estava longe ou impossível de ser atingido, devido a irracional obstinação que válvula nenhuma seria a médio ou longo prazo capaz de conter dentro da pressão admissível, aceitável ou tolerada. A revolta, na qual o mais pequeno foco tomava exageradas dimensões de subversão, radicalizava as classes possidentes e plebeias tornando carregado o ar que se respirava e por arrastamento quaisquer soluções consensuais.

Liberto de João Carrajola, um acólito confesso das doutrinas corporativas, autoritárias e restritivas, se não repressivas que se tinham instalado no país ocupando um lugar que os democratas haviam deixado vago e descurado devido a vícios e maus costumes, o bom povo alentejano aliviou um pouco a canga e, umas vezes aqui outras acoli ia deixando palavras de ordem ou desenvolvendo acções pontuais de reivindicação de direitos que julgava, e bem, terem muito que ver com a dignidade do homem, agora que a recém-formada ONU estabelecera uma carta de intenções com os direitos do dito cujo e a EFTA e a OCDE de modo unânime faziam recomendações que, mau grado a censura estabelecida por quem amava a paz podre mas sobretudo por quem mandava, chegavam inclusivamente ao Alentejo profundo, passando de mão em mão ou de ouvido em ouvido numa cadeia humana digna de ver registada num palimpsesto, novo pergaminho, canhenho, bloco-notas ou guarda factos, para que um dia mais tarde possamos saber, conhecer, reconhecer, meditar e debater o que foi a longa caminhada dos alentejanos rumo à liberdade ou à libertação, ou como costumava dizer o engraçadinho do Carrajola, a marcha dos cágados para o Egipto.

Mas voltemos à coisa séria que foi a caminhada, que continuamos a percorrer e continuaremos até que não sobre um único de nós sobre esta terra que tanta dor e tanto sangue tornaram sagrada. Movimentos espontâneos umas vezes, comandados pelas forças clandestinas ou sindicais outras, por um ou outro, ou outra persona, geneticamente talhada para liderar, ou obra de vanguardas, ou de células do partido clandestino e subterrâneo que movimentava camaradas como num tabuleiro de xadrez, ou de damas, pois há que reconhecer o papel das mulheres alentejanas na emancipação e nas lutas travadas que também o tiveram, certo é que embora sem contornos de guerrilha, ofensivas pontuais e aleatórias eram despoletadas, não dando descanso aos poderes instalados a quem a menor exigência de justiça ou de igualdade incomodavam sobremaneira. Não por acaso temos vindo a desenvolver e a descortinar, ou a descobrir, a mostrar a cara e as características do personagem João Carrajola e convém que os leitores não pensem ter tal sido feito por acaso, basta que tenhais o incomodo de ir bisbilhotar ao Google quem terá sido este personagem, este João Carrajola, para que acrediteis ser esta obra que ora estais lendo conduzida por um guião, obedecer a um esquema, procurando nada deixar ao acaso para que vossa excelência, leitor, usufrua de um prazer incomensurável e inigualável nesta leitura e, em simultâneo forme uma imagem do que foi ou podia ter sido a realidade vivida no Alentejo entre a instauração da República e o resto do século que se lhe seguiu, crente de que a realidade vivida e observada nunca se afastarão muito da narrativa aqui explorada e exposta para seu gaudio e prazer e naturalmente também deste escriba ao serviço e ao dispor de vossa excelência. 

É neste contexto ou com este espírito que iremos, lá estou eu a dar-lhe a volta com o colectivo, com o iremos, quando a realidade é que me encontro mais sozinho que um morto numa morgue durante um fim-de-semana, sozinho porque procuro a pacatez e a solidão que me permitam dedicar-me a cem por cento a esta empreitada, e, à excepção de uma televisão que a Ti Bilete mantém permanentemente acesa, ou ligada no café, nenhum outro barulho estorva o meu cogitar, todavia o iremos deixa de orbitar a esfera do singular ao envolvê-lo a si a quem a narrativa se destina, e a mim, fautor da mesma, e dois somos já plural, uma pequena multidão, melhor que cada um de nós regresse ao seu lugar antes que apareça o amigo Carrajola, praguejando o seu velho estribilho, andar andar não quero ver mais que um juntos ou dois a andar parados. Encontra-se portanto em causa uma pluralidade que nos exige uma outra personagem, até aqui somos poucos e todos quantos venham serão bem-vindos, por isso vos anuncio as próximas e previstas novas personagens, a entrada de uma Catarina, ou a acção da narrativa não estivesse decorrendo em Baleizão, mas também a de um tal Benvindo, menos próximo e confesso que imprevisto, ainda que tenha sempre alguma utilidade a presença de um personagem pronto para o que der e vier, ou não será verdadeira esta asserção?

Com toda esta conversa estou novamente esquecendo o essencial, e o essencial manda que seja respeitado o guião deste texto, supostamente um romance e, sendo romance nada melhor que começar a romancear as coisas para que não saia defraudado o leitor nem ele venha a perder o interesse pela leitura, pelo que, uns pozinhos aqui uns pozinhos ali, a verdade é que quaisquer comédias que se prezem, e não será por isso que iremos excluir desta verdade as tragédias, terão que ter a sua pitada de picante, no mínimo q.b. a fim de manter o leitor pela trela, preferencialmente trela curta não vá ele, romanceando a frase, fugir à sua fidelidade para com esta nossa conversada. Ora nada mais indicado que começar as coisas pelo princípio, e no princípio do drama estão Perfeita da Anunciação e Manuel Mestre, se é que ainda estão lembrados. A ela consideremo-la relativamente jovem, nem trinta e cinco anos terá, é portadora de uma beleza rústica, ou rural, forte e tisnada pelo mesmo sol que amadura as searas de trigo sem fim que por aqui são norma, ele igualmente forte, moreno, de uma rudeza campestre maravilhosamente colada ao caracter humilde, honesto, honrado e obediente com que o moldaram mas cujo crescimento, ou amadurecimento, já que falamos de sol e de searas sendo conveniente manter a narrativa dentro de um mesmo registo, lhe expandiu o pensamento tal qual o calor dilata os corpos, levando-o primeiro a sonhar, depois a fantasiar para finalmente se quedar interrogando-se acerca do porquê das coisas. Podemos questionar esta sua mudança de atitude, dir-vos-ei então que tudo teve que ver com o incomensurável amor que Manuel Mestre dedicou desde sempre a Perfeita da Anunciação. Sete anos de namoro e alguns de casamento passaram-se depressa e num idílio de invejar, ela sempre lesta e presta a recebê-lo, tal qual uma flor campestre se torna viçosa na Primavera atraindo sobre si as atenções e as abelhas, ele sempre pronto a colhê-la como se ela fosse uma papoila, a colhê-la, a fecundá-la, ambos gulosos um do outro como se cada um deles tivesse néctar, tivesse mel e todos os dias e todas as horas se inscrevessem no tempo próprio para crestar as colmeias.

Felizmente para eles, não para nós que estamos desejosos que a história arrume um fim e se despache, se desenrole o novelo e não nos empate, felizmente para eles dizíamos nós, digo eu que teimo enganar-vos com a minha solidariedade alargada, de grupo, como se todos estivéssemos aqui debulhando os factos a que Manuel Mestre e Perfeita da Anunciação deram génese, ou provocaram, ou viveram, sendo que o mais importante foi precisa e decididamente o nascimento de Júlia, que infelizmente não presenciámos, mas de quem já falámos umas páginas atrás e deixáramos nos braços de sua mãe que assim buscava protegê-la do rigor mortal do frio das neves dos Pirenéus sobre todos eles desabadas em avalancha mortal e fico-me por aqui por não vos querer contar uma história começando pelo final. Não deixo porém de vos alertar para a importância fulcral que esta Júlia teria, teve e terá no desenrolar da nossa história, história aliás deles e da qual somos, ou sou mero contador e vós grandes observadores. Importa aqui resumir sim e para adiantar este enredo, ter o passa montanhas digo o passador Zaragoza sido o primeiro cadáver encontrado por uma equipa de resgate, seguiu-se-lhe Perfeita da Anunciação, mais bela que nunca, mas mortos, ambos mortos, aliás todos mortos, todos os dezassete que em fila indiana seguiam o passador por aquelas veredas manhosas, Manuel Mestre escapou por um triz, valeu-lhe a boa forma física que apesar de tudo manteve, ou mantinha e milagre dos milagres, para o que já vos tinha alertado, a pequena Júlia que sua mãe por instinto e com sacrifício da própria vida protegera. Quer ela quer o pai foram de imediato conduzidos a um centro de assistência hospitalar, tivesse a equipa de resgate chegado meia hora mais cedo e teriam encontrado Perfeita da Anunciação ainda com vida, não o quis o destino, nem a sina que a marcava, estaria escrito nas estrelas que a vontade d’Ele se cumpriria, cuidemos dos vivos e enterremos os mortos, os quais ou por ser festiva a quadra ou por terem sido demasiados de uma vez só deixaram consternados todos os habitantes das aldeias de Ordesa, de Monte Perdido, Torla e Mondarruego, gentes de onde eram oriundas as equipas de resgate que após a avalancha se lembraram de acorrer em busca de Zaragoza, um dos seus e homem experiente naqueles ínvios caminhos a que se afoitara à frente do numeroso grupo uma hora antes. Contudo, ironia das ironias, de nada lhe serviu a experiência e se aprendida foi a lição tê-la-á sido tarde e a más horas, de nada lhe servirá agora ou no futuro, coitado, paz à sua alma. Explicada fica a hora em que o destino marcou a vida de Júlia, melhor entenderão por que razão a sua meticulosa e completíssima e esmerada educação se processara no Collège Saint-Juste, exactamente nos Pirenéus franceses, não muito longe do local onde fora resgatada e de cuja amplitude e rigor, constatado através dela e da sua paixão pelos pormenores e bagagem literária e cultural carregada, em devido tempo vos dera conta.

Por agora se ver metido em sarilhos lembrou-se Manuel Mestre de passar a vida em revista, os últimos anos, em especial os motivos que o compeliram à aventura em que estava metido, melhor seria dizer atolado ou soterrado, pelo que tudo rememorou, desde ceifeiro a hortelão, de que lhe calhara algumas vezes ter feito, até serralheiro e mecânico pois o Alentejo, muito mais rapidamente que José Da Lopes Picão* nos quis fazer crer, mecanizou-se, tosca mas paulatinamente mecanizara-se com tudo que era geringonça a precisar constantemente de arranjo, ou porque a qualidade não fosse a melhor, ou porque não estivesse ainda devidamente apurada, quer porque seria submetida a todo o tipo de abusos, tropelias e extremos até à exaustão. É que ainda que fossem em ferro não aguentavam, ora tinha sido precisamente o ferro que o nosso amigo Manuel Mestre aprendera a dominar com mestria e depois da serralharia civil havia de calhar-lhe mui naturalmente a serralharia mecânica.


Fez-se mestre Manuel Mestre mas não se fez rico nem coisa aproximada, o seu feitio afastava as pessoas de si, já aqui o pintámos, quer dizer já aqui dissemos como era um individuo metediço e perguntador, e quanto isso lhe granjeara o epíteto de revoltado, lembro que fora até classificado como subversivo na opinião do seu amigo João Carrajola. Porém, sendo novo, tendo “sigueira” e sobretudo dispondo de bom olho e grande capacidade de observação, depressa aprendia e num ai se tornava mestre do que calhasse, a inteligência e a habilidade tinham-no bafejado. O que parecendo-nos ser uma sorte que lhe calhara mostrara-se todavia ser um presente envenenado, os amigos e os conterrâneos afastavam-se dos inteligentes como se estes estivessem cobertos de lepra, resultando daí que tanta inteligência acabava sendo mais prejudicial a Manuel Mestre que benefícios lhe trazia. Só em casos graves era chamado, digamos que em último caso ou como recurso final, o que fazia com que metade dos dias do mês não tivesse trabalho e a oficina ficasse entregue ao Deus dará, tal a fama de que gozava e as recomendações de que era alvo. Cheio de dívidas não hesitou fechar a oficina quando chegou a sua vez de assentar praça, ressalvemos contudo que desde o dia em que tirara as sortes combinara com Perfeita da Anunciação partirem os dois caso fosse mobilizado, e nesse mesmo dia partirem os dois para França sem olharem para trás nem pensarem duas vezes. Tendo assentado praça em Cavalaria 3 e cedo sido notados os seus pergaminhos quanto à mecânica as patentes do exército, que já não lidavam com cavalos nem eram bestas nenhumas logo ali o fizeram cabo mecânico e o resguardaram, a ele e às suas mãos de mago, tendo cumprido na metrópole todo o seu tempo de serviço militar obrigatório e mais meia dúzia de anos bem pagos, para o que muito contribuiu o facto de as chefias apreciarem sobremaneira a manutenção por ele propiciada igualmente às suas viaturas particulares que, pela primeira vez na vida trabalhavam, ou funcionavam que nem um relógio suíço.

Mas ganchos ou biscates, ainda que feitos nas horas de serviço, não eram alvo de louvores na caderneta, e como tal não os trouxe Manuel Mestre consigo quando passou à peluda. Saudades de Perfeita da Anunciação e da terra, que só via de quinze em quinze dias se não mais, de novo o trouxeram de regresso a Baleizão umas vezes e a Barrancos de outras, desmobilizado com mérito e louvor tal distinção não foi porém suficiente para que visse garantido o trabalho onde sempre lho tinham negado e continuariam a negar-lho, e, nesse mesmo dia em que Júlia fizera a primeira comunhão e o velho amigo Carrajola que nunca na vida fizera nada de proveitoso, lhe apareceu com garbo e feito tenente teimando pisar-lhe de novo o ar pesaroso, Manuel Mestre voltou para casa onde entrou humilhado para;

- Nem é tarde nem é cedo amor, começa a pensar em fazer as malas, partiremos os três para França mal tenha a passagem paga e concertada. (concertada com C).


Do que fora concertado, com quem quando e como são detalhes que nos escapam por ser coisa combinada em segredo e entre amigos de grande confiança, terá que bastar-nos saber ter a coisa demorado pouco menos de um ano e contentarmo-nos com factos e pormenores conhecidos e alusivos a um tal Zaragoza, a quem na data concertada um grupo entregou as notas e o destino, a fim dele por artes sabidas e devidas ao contrabando os conduzir de molde a mudar-lhes as sinas mas, por mor disso e dizem devido também ao ruído provocado por um tiro, as neves se terão soltado cobrindo-os com um manto branco que para muitos, quase todos, haveria de ser o manto negro da morte.  



V


Quando foi ouvido o tiro tudo o resto deixou de ter importância ou de fazer sentido, seria lícito aceitar estarem os ânimos aguerridos, mas um tiro? Nada o faria esperar. Que a guarda avançasse à cachaporrada ainda se aceitaria, as mulheres estariam mesmo preparadas para isso e, na opinião de alguns guardas estariam mesmo a pedi-las, algumas delas não passariam um dia sem que alguém lhes arriasse uma azevia, mas ali? Um tiro?

- Ai Nossa Senhora valha-nos Santa Maria!

Durante anos aquele tiro ressoou por Baleizão e depois por Portugal inteiro, não se ter feito justiça ampliou-lhe o eco e tornou-o ainda mais certeiro, mais mortífero. Catarina, que alguns anos antes se cruzara com Perfeita da Anunciação na sala de espera do Dr. Saavedra e a abraçara, feliz por estar de esperanças, caíra naquele dia às mãos de um epiléptico descontrolado com os nervos em franja e a quem o ar assustado dos patrões ante a manifestação das mulheres e as suas justas reivindicações aguçara o servilismo, incapaz de fazer destrinça entre a razão e a falta dela, entre justiça e injustiça, entre o beija-mão e o porte honrado. O tenente Carrajola acabara de matar e de se desonrar por dez tostões, incapaz de avaliar um conceito tão comezinho como era o da proporcionalidade.

Do tiro à morte poucos minutos teriam passado, foi o tempo de uma avalancha correr montanha abaixo. Deus unira-as ao conceder-lhes a sua graça naquele dia de esperanças, o Senhor as voltou a unir no momento de as chamar a Si. No Alentejo ser abençoado pode ser a nossa desgraça, Manuel Mestre bem o sabia, bem o sentira.

Nós alentejanos acreditamos que o Senhor chama primeiro os que mais ama e aqueles de quem precisa, ainda hoje Manuel Mestre acredita nesta lógica, foi isso que o ajudou a superar a morte de Perfeita da Anunciação a quem na última hora de vida conseguira estender a mão, mão através da qual sentiu, mais pesada que toda a neve que os cobria, a vida escoando-se-lhe gélida e lentamente. Temia Manuel Mestre pela pequena Júlia, mas quis o senhor resguardá-la para um destino que por certo lhe teria já destinado, destino destinado, os leitores que me perdoem a redundância.

A voluntariosa Cruz Vermelha francesa, la Croix-Rouge Française, tomou as rédeas do acidente, evacuou para os hospitais das redondezas todas as vítimas e deste urgente esforço resultou que Manuel Mestre se viu separado de Júlia a quem as freiras do hospital da ordem Beneditina com sede no mosteiro Santa Maria de Bellpuig de les Avellanes, em Os de Balaguer (Pireneus) tinham chamado a si, rodearam de cuidados e garantiram muito mais que os cuidados primários de que a criança necessitava. Ainda não obtivera alta e já MM fizera todas as diligências e mais algumas para não perder o rasto à pequena Júlia, pequena a quem a família agora se resumia.

Hábil, não lhe foi difícil encontrar trabalho numa quinta nas proximidades da cidade onde fora tratado e convalescera, não sendo expert em agricultura desenrascava-se, era forte e voluntarioso o que terá contribuído para que a sua vontade fosse vista e notada, e, com o passar dos tempos e a dificuldade existente em manter alguém na agricultura MM depressa se tornou nessa quinta num dos trabalhadores com mais tempo de casa naquela empresa agrícola nos arredores de Toulouse. As suas capacidades de improvisação e organização, os seus conhecimentos de serralharia e de mecânica fizeram-no apreciado e imprescindível. Poucos anos volvidos, provas dadas e confiança ganha haviam de garantir-lhe o lugar de maioral, capataz como diria o tristemente célebre amigo Carrajola, se é que deveria continuar a considerar seu amigo um individuo que os próprios compatriotas tinham renegado depois do mortal e rocambolesco crime durante uma manifestação de mulheres.

Manuel Mestre, doravante por uma simples questão de comodidade apenas MM, vivia feliz, se o não era mais tal se devia unicamente à dor que a ausência de Perfeita da Anunciação lhe provocava permanentemente. Amara-a como só se ama o primeiro amor e o Senhor, talvez para lhe aliviar a carga dera a Júlia o rosto da mãe, igualzinho, sem tirar nem pôr. Candentes e tumultuosos os últimos acontecimentos fizeram-nos esquecer Júlia acerca de quem sabemos ter sido socorrida num hospital da ordem Beneditina do mosteiro Santa Maria de Bellpuig de les Avellanes, em Os de Balaguer, ordem religiosa à qual pertenciam as freiras, revezando-se no tocante a fazerem as vezes de mãe e que só mama lhe não davam por lhes ser de todo impossível. Sabemos que Júlia herdara o belo rosto e a beleza da mãe, e estou em condições de vos adiantar que sim, que se criou sem problemas, e que sim, não só com mimos, carinhos e ternuras, mas também amor, o amor de uma jovem professora cuja filha, da mesma idade de Júlia, falecera há poucos dias deixando compreensivelmente arrasados os pais. Não irei pormenorizar aqui as razões, as doenças nem as circunstâncias ou particularidades que teriam conduzido à morte dessa menina e filha da senhora professora, a morte de uma criança de tão tenra idade, um anjo, é por si só merecedora da nossa misericórdia e absolvição, a dor demasiado aguda para que continuemos aqui a sua exposição, existem portanto sobejas razões para não discriminar ou dissecar o que deve ser votado ao respeito, melhor será que ficais sabendo ter a jovem professora, de seu nome Marine Le Goff aceitado cuidar de Júlia acreditando ter-lha Deus enviado a fim de a ajudar a combater a expiação derivada da perda sofrida. MM mau grado a dificuldade inicial com a língua não demorou muito que a não dominasse de modo aceitável, sentindo como que um amparo essa ajuda proverbial e plausível, mais que compreensível senão divina, digamos antes providencial, pois como todos nós saberemos não podemos abusar do divino, nem devemos. O amor que o casal Le Goff dedicava a Júlia foi sempre uma dádiva irrecusável.

Cedo ficou amigo do casal a quem sempre agradeceu a impagável ajuda, era visita lá de casa, assídua aliás, e nunca a sua qualidade de pai foi ocultada à menina ou colocada em causa, menina que tratava igualmente por pais Jean Jacques e Marine Le Goff. Abramos aqui um parêntesis para, ou a fim de aquilatar da importância do casal Le Goff na integração e evolução de MM, homem prático como sabemos e igualmente inteligente, desembaraçado e possuidor do domínio de várias ou múltiplas valências, agora diz-se saberes, diz-se competências, da agricultura ao manejo do ferro e da mecânica, desembaraçado, organizado e hábil quer a orientar os outros quer a dirigir actividades, coisa de que em França muito se padecia por naquela altura, acabada guerra de independência Argelina, a qual compreensivelmente gerara e conduzira a ressentimentos indutores duma grande discriminação dos argelinos, mão-de-obra base da agricultura da Aquitânia à Provença, sector que atravessava tempos de grande instabilidade, com grande rotatividade dos trabalhadores, postos de trabalho permanentemente por preencher, arrastando aos consequentes prejuízos dessas situações advindos.

Em terra de cegos quem tem olho é rei, guiado e ajudado pelo casal Le Goff o nosso imparável MM frequentou cursos de alfabetização de adultos, cursos de aprendizagem da língua francesa, e cedo se fez notar dominando o ambiente à sua volta. Foi assim que ascendeu a maioral ou capataz dessa empresa agrícola onde labutava e na qual já o déramos como empregado, podemos acrescentar que o lugar foi conquistado por mérito seu, e o seu mando sempre agradou aos mandados e aos mandantes. Saber liderar tem muito de pessoal, nem tudo se aprende na escola, muito se aprende fora dela, na vida, e esta tinha sido para MM uma mestra, e que mestra.

Enquanto MM desenleava a sua vida e se afirmava entre os franceses, constituindo um activo precioso e uma mais-valia a considerar, o país, o seu país de origem, a sua pátria, inda que ele nunca tivesse sentido ser um patriota, a sua pátria ia eu dizendo, a nossa, definhava enredada nas mesmas questiúnculas e problemas de sempre, arrastando-se pelos areópagos internacionais onde uns países a toleravam, outros ignoravam, alguns condescendiam e poucos a contestavam, com excepção do candente problema de autodeterminação das colónias ultramarinas, perdão, províncias ultramarinas, motivador de acesas discussões e ânimos sobreaquecidos. Porém disso mesmo não passavam, ânimos exaltados logo arrefecidos devido ao clima de guerra fria vivido e habilidosamente por Salazar aproveitado, gerido e manipulado.


VI         

      
Com o país parado o Alentejo estagnava e, se alguma coisa ainda mexia tal se devia às campanhas do trigo, de que o Alentejo foi chamado celeiro, à custa da Junta de Colonização Interna, subsidiando a compra de maquinaria agrícola destinada às grandes planícies do Alentejo, às grandes herdades, como a do senhor engenheiro Casimiro Perdigão e a promover um aumento da produção de que os assalariados rurais não beneficiaram, destinados que estavam a ser mero exército da mão-de-obra barata e disponível. E, para sermos coerentes também dispensável. Salazar sabia perfeitamente que o trigo nos sairia caríssimo, mas que fazer? Importá-lo da Alemanha, da RDA, da Ucrânia, dos States? E que fazer com o magote de desempregados que tal aquisição acarretaria? Deixá-los morrer à fome? Pagar-lhes subsídios de desemprego? Promover a inactividade e a preguiça? Condenar ao fecho milhentas oficinas e negociatas a montante e a jusante da cultura do trigo? Quanto nos custaria isso? E havia que acautelar o perigo decerto nunca dissociado de uma revolta dos escravos, digo dos desempregados. Seria caso para dizer que o barato nos sairia bastante caro, pois que continuem com a campanha do trigo e com ilusão de que o Alentejo é o celeiro de Portugal, antes tê-los empenhados que contrariados, antes crentes que enganados, antes mansos que bravos, antes iludidos que revoltados.

Quem assim pensava, geria e equilibrava os pratos da balança exagerou na poupança e, ao romper-se a lona velha de uma cadeira de repouso caiu e bateu com a cabeça, ainda mais velha, no lajedo da varanda, deste modo se finou o homem que todos temiam e a substituí-lo ficaria o Delfim, um amigo da família dos cefalóides que não era diferente, nem igual, nem assim assim, contudo achou essencial tudo mudar para que tudo ficasse na mesma, como a lesma e, sob a palavra de ordem “evolução na continuidade” deu origem, sem saber, a uma verdadeira revolução que todavia demoraria ainda quase meia dúzia de anos a chegar, um problema de linhas, de carris, o velho e sentido problema da necessidade de uma outra matriz.

Se no 25 de Abril foi apanhado de surpresa este Delfim? Deve ter sido, imagino que sim, mas na realidade não sei, duvido, pois homem precavido vale por dois e aquele, sabido, sabia bem em que águas se movia, além de que em 16 de Março alguém lhe atirara já com um aviso para o regaço. São rosas senhor deve ter pensado, e assim iludido, entre água de malvas e água de rosas se viu apeado. Os ecos de algazarra, da festa, do bambúrrio chegaram até MM, a ele e a centenas, milhares de portugueses espalhados pelo mundo. Todos queriam avistar, ver, viver o fenómeno, o epifenómeno e muitos se puseram a caminho de Lisboa, de avião, de comboio, de automóvel, suponho que de bicicleta e a pé também, e de mota para não desiludir os amantes de duas rodas, entre os quais me incluo. Fosse este trabalho uma coisa mais séria, digamos uma tese de mestrado ou doutoramento e eu teria tido o cuidado de averiguar quantos e qual a origem dos que de barco tivessem aportado à capital, sendo assim como é, um mero entretém destinado ao vosso distraimento e prazer de leitura, adianto somente que sim, alguns tê-lo-ão feito, isto é vindo, acorrido de barco, de navio aqui fundeado para alguns, não sei quantos, talvez muitos, terem oportunidade de uma estadia (e não estada) estada foi para todos os outros que de navio não chegaram. 

Não quis Júlia perder a oportunidade de ver in loco a festa e o país onde nascera e com o pai meteram-se ambos a caminho num comboio descendente com destino à capital. Foi viagem de festa, até por nele vir também um tal Cunhal, ou Bochechas, na altura e para ela era-lhe igual, eram iguais, a bem dizer nem os diferenciava, a não ser depois, depois do primeiro 1º de maio, depois da Fonte Luminosa, depois daquela cena macaca na Tv, daquela do olhe que não senhor doutor, fosse como fosse qualquer desses dois recém-chegados seria um amor. Não que Júlia procurasse o amor, mas por vezes é quando menos procuramos uma coisa que a encontramos. Como acontece comigo que no momento não lembro algo e passados alguns dias ou semanas, quando não meses, se me acende uma luzinha e Eureka, cá está o que não lembrara ao diabo, ele seja cego surdo e mudo, lagarto, lagarto, lagarto.

Estava eu falando de se encontrar o amor quando ela, Júlia, esbarrou com um fulaninho saindo da apertadinha casa de banho da carruagem e de sorrisinho nos olhos, pardon mademoiselle mais, moi… Ao que ela não respondeu mas pensou, apertadinho o caralho devias era meter o apertadinho no cú que apertadinha estou eu, e retribuindo-lhe o sorriso, girando sobre si mesma lhe cedeu a passagem, entrando e fechando a porta atrás de si ou cedendo-lhe a passagem rodopiando, ou rodando, e esgueirando-se pela estreita porta. Há coisas que nem lembram ao diabo, mas quem está a escrever tem que se lembrar delas todas a fim de agir em conformidade, fazer com que a bota bata com a perdigota, isto a propósito do parágrafo anterior, ele, aquele fulaninho que saiu da apertada casa de banho da carruagem do comboio descendente pejado de líricos e líricas, ou deverei dizer prenhe de lirismo? Seja como for, em frente que atrás vem gente como diria a minha amiga Paula Duarte, e o que eu queria dizer-vos é que tive uma hesitação, o fulano desculpou-se em francês, mas Júlia, apesar de não lhe ter dado resposta pensou numa, que conhecemos porque o narrador no-la deu a conhecer, todavia Júlia sendo portuguesa passara em França noventa e nove por cento da sua vida, fora educada em francês, falava francês correctamente enquanto o seu português ainda que aceitável, era arranhado q.b. para que nos indaguemos acerca de quem autorizou aqui nestas linhas que ela pensasse e falasse não em francês mas em português como nos foi acabado de transmitir, ou contado.

E já que o comboio descendente carregado de lirismo, masculino e feminino, se dirigia para um reduto de Europa onde finalmente a justiça e o direito tinham eclodido, tido desfecho, tido a sua hora e a sua oportunidade, é justo que invoquemos esse direito, essa legalidade a fim de que os leitores sejam informados com verdade, pois seria por ela que nos meses e anos seguintes se lutaria, como tal bom seria que nos fossemos desde já acostumando às suas balizas, à sua imposição melhor, ao seu imperativo, categórico ou não que o momento não é para filosofias, quando muito será, acabara de o dizer para lirismos e já agora se me permitem, ainda vamos no início, o 25 de Abril foi há três dias, ainda vamos a tempo, a janela ainda não se fechou daí que me seja lícito usar e por enquanto abusar, para além da palavra verdade, da palavra justiça, da palavra lirismo e da palavra utopia.

Foi umas linhas atrás afirmado ter Júlia, viajando no mesmo comboio com destino à capital da utopia onde também vinham Álvaro Cunhal, Mário Soares e companhia, ignorado ou confundido os ditos por os não distinguir. Tal afirmação deve ser em nome da verdade totalmente refutada, não só Júlia sabia, e bem, talvez até bem demais, como era enviada especial duma revista francesa, Liberation, onde era repórter, incluindo fotográfica.

A sua presença no comboio descendente em direcção à nossa capital não era portanto tão inocente quanto a tínhamos julgado. Os franceses, a França, berço de revoluções e da democracia, também ela rejubilara com a golpada que aqui fora dada e embalara em peso com o Avril au Portugal, primavera ou fado tropical colocado por Georges Moustaki numa canção premiada provavelmente com um disco de platina, nem sei dizer-vos. Eu mesmo, eu, este escriba às vossas ordens trauteava essa dita canção até a dormir, isto é sem pensar, tal a força da impressão e da imagem que ela nos transmitia.

Portanto Júlia não só conhecia esses personagens como tinha obrigação de os conhecer, estudara a história de Portugal e depois da golpada das Caldas da Rainha a 16 de Março revira tudo, rebuscara tudo, situação, oposição, quem era quem, etc., etc., etc.. Diz-se que a sorte protege os audazes, mas no caso dela não foi a sorte, foi a preparação que lhe exigiram e que ela exigiu a si mesma antes de se oferecer para a reportagem que até nós a traz, traz com Z por ser do verbo trazer e não trás com S de algo que ficou para trás ou por dizer. Quando se apresentou ao chefe de redacção com a proposta de férias em Portugal para uma reportagem sobre os dias do golpe de estado, do golpe militar, do bambúrrio, Júlia, que o conhecia bem, isto é a fundo, profissionalmente, logrou responder acertadamente a uma rajada de perguntas que o mesmo lhe atirara à queima-roupa a fim de indagar, aquilatar, sopesar, avaliar o risco de enviá-la, ou não, o que implicaria uma verba ainda assim considerável.

Nem Júlia sabia, ao ouvir o sim do seu chefe e a recomendação para a gestão da verba que lhe seria confiada, quanto essa verba, ou melhor a sua limitação, os seus limites a iriam condicionar, se o leitor está a ficar sonolento ou aborrecido com estas linhas é tempo de acordar, para poupar, Júlia alojar-se-á numa pensão no Chiado, muito mais barata e central que um hotel, pensão em cujas portas, duas, ou aliás uma dividida em duas meias portas, das quais somente uma por costume se abre, a segunda abrir-se-á para dar passagem a um móvel, a um grupo, ou a um gordo, ou gorda, o que não é o caso, no presente caso encontram-se a essa porta constituída por duas meias portas, esbarram a essa porta apertadinha, um saindo outro entrando, um tentando sair outro tentando entrar, os mesmos que haviam dançado em frente um ao outro junto à porta apertadinha de um comboio descendente que dias atrás, atrás com S, se dirigia à capital, nada mais nada menos que Júlia Mestre e Dagoberto Metrot.

- Vous ici ?
- Vous ici ?

a surpresa parece ter sido recíproca, o reconhecimento e a surpresa agradáveis. Dagoberto Metrot um luso-francês de segunda geração, tal como Júlia viera assistir à nossa inesquecível festa e, tal como ela, arranhava umas coisas de português.

Não desta vez ainda que um estava de saída e outro entrando, não desta vez ainda pois quisemos somente acordar o leitor da sonolência ou modorra em que pudesse ter caído mas estes dois não o sabem eles ainda por, por enquanto somente o narrador saber, irão pintar a manta, bem pintadinha, que é assim que a juventude, saudável e vivaz gosta de a pintar.

Por enquanto dediquemo-nos a acompanhar as deambulações de Júlia pela capital, a cidade não é grande e parece estar sempre em festa. Júlia não perde uma, de França reconhecem o seu trabalho, o seu bom trabalho, e em vez de lhe aguardarem as crónicas remetidas pelo correio arranjaram-lhe um estafeta, um contrato por fora com um camionista de entregas rápidas, num dia, em 24 horas, tal permitirá que as suas reportagens sejam recolhidas num local previamente combinado onde ela as deverá entregar à pessoa X, que as fará chegar ao camionista Y, que por sua vez as porá em França, entregues em mão ao contacto Z, diria que John Le Carré não faria melhor e os rolos com as fotos e a reportagem do comício/manifestação com o Almirante Pinheiro de Azevedo, a tal garantida para a história pela célebre tirada “vão bardamerda” é a primeira de muitas entregas urgentes que o dito estafeta levará consigo.


VII        


Paulatinamente Júlia embrenha-se na agitada vida nacional e não demora a conhecer pessoalmente muitos dos seus intervenientes de craveira, Duran Clemente e em especial Diniz de Almeida por quem tinha um fraquinho que nunca escondeu. Otelo, um mulherengo que a tentara da primeira vez que o abordara mas afinal um cordeirinho que vestira a pele de um lobo, um lírico amante de teatro e de duas mulheres que magistralmente equilibrava, uma na mão esquerda outra na direita e lhe permitiam uma pacatez de vida e de espírito que o perdia, e, como tal, a tal frase célebre metia-os todos no Campo Pequeno deve ser levada à pala deste modo de ser, romântico e bonacheirão, herói e líder de imprevisto, rodeado de moinhos de vento nunca vistos e a quem para completar a imagem com que o recorda Júlia Mestre, falta somente um Sancho Pança, porém un gentleman, un seigneur et un maître romantique com quem Júlia gostava de falar e de beber uns copos, achando-o o máximo, um pândego para usar as palavras dela, totalmente diferente do sorumbático e desengraçado general Costa Gomes, até de Mr. Vasco Gonçalves, le fou, do indecifrável e inadaptado Spínola, um marechal sem exército mas decidido a chefiar todos ou a chefiar coisa nenhuma, puta dando-se com todos e com nenhum, o popular a quem afinal faltou a populaça, o líder sem seguidores, o romântico incapaz de amar, o homem do pingalim, o eunuco, e Júlia ria porque quanto melhor os conhecia mais lhe parecia que a festa não poderia acabar bem e pedia, pedia a França mais tempo e mais dinheiro, sorte a sua por ter encontrado no temido chefe de redacção um compreensivo companheiro.

Com o tempo foi Júlia conhecendo a vida nacional e os seus personagens melhor que o próprio povo português, duas licenciaturas sem dúvida a tinham preparado melhor que ninguém para ver o óbvio e para além dele. Júlia cursara Psicologia e dois anos mais tarde Jornalismo, a sua paixão. Segundo ela, fora-lhe difícil encontrar homens maduros à frente da nossa revolução, bem sabia ela não se fazer qualquer revolução com bom senso, antes com objectivos, aventura e atropelos, porém alguém tem que saber o que fazer, senão agora o que fazer logo, ou a seguir, por isso por aqui o tempo passava, cilindrava as personagens, mastigava-as, cuspia-as fora e exigia outras, como quem masca pastilha elástica.

Só lhe apareciam actores, actores de segunda, ou muito líricos ou muito românticos e loucos ou demasiado certinhos, sem piada nem metas definidas e alcançadas. Todos eles tropeçando na revolução, por sua vez esta avançando ao deus dará, aos trambolhões, conforme as circunstâncias, uns empurrando outros travando, uns agitando os manifestos outros contando espingardas, o país cai não cai para a direita ou para a esquerda, ou para cima ou para baixo e o problema é que nunca se decidiu, não caiu, ficou suspenso num limbo tal qual ficara em Alcácer Quibir nos idos de 1578 quando da vez de D. Sebastião.

   Por agora uns aproveitam o vazio legal tentando fazer valer os factos consumados, no Alentejo a fome vai dando origem à fartura e com base nisso canta-se a terra a quem a trabalha e ocupam-se herdades sem outro critério que não o de virar de pantanas a situação. Nos entretantos uma suposta maioria silenciosa agita-se gesticula e grita levantando alvoroço e intentando uma intentona, a 28 de Setembro, e a 11 de Março do ano seguinte são tentadas golpadas, ambas falhadas, o povo agita-se e sai à rua todos os dias, o povo unido jamais será vencido, mas foi, ele não sabe mas foi, jamais lho dirão mas foi, a história do povo é quem mais ordena vai servir de endosso para tudo, de cobertura a tudo, o povo tem as costas largas, de norte a sul é vê-lo de braço dado com as forças armadas, até que um tipo barrigudo se levanta um dia mal disposto, de ressaca, e confidencia ao cara de pau a seu lado ter que ser pôr um fim nisto tudo antes que esta merda nos desfaça.

Pode não ter sido bem assim, muito do que se conta pode ser só fumaça, mas a verdade é que um tipo hirto de óculos escuros e cara de pau tentou endireitar isto, e havia por isso de ser ministro.

Perdão, faço aqui uma pausa para corrigir a reportagem de Júlia Mestre. Talvez que por todos os dias e por dá cá aquela palha ela assistir a uma dança de cadeiras ou a um corrupio de ministros tenha confundido as coisas e por isso dito, decerto sem intenção mas erradamente que Eanes, Ramalho Eanes, o cara de pau, o de óculos escuros veio a ser ministro. Falso, veio a ser Presidente da República, com garbo, com votação de peso, com pundonor.

Este Eanes cara de pau teve algum peso, algum peso e algum bom senso, era ele quem estava na berlinda na noite em que não se brincou ao berlinde, numa única noite em que tudo se jogou, Júlia lembra-se das manifestações, da medição de forças, dos comandos de um lado e dos paraquedistas do outro, do peão de brega que foi o almirante Rosa Coutinho, o almirante vermelho e que nessa noite, 25 de Novembro, teria dito para os seus rapazes, agora não, agora não que estou a jogar ao bilhas e quero ver se bispo aquele ali de vidro colorido com uma estrelinha e mais brilhante que os outros. E o pessoal quedou-se, quedou-se para o deixar jogar e ganhar aquele bilas fenomenal, uns depuseram as armas e outros gritaram vitória. O almirante vermelho perdeu o berlinde, o barriganas do Jaime Neves palmou-lho, palmou-lho e agora quer a vingança, gritava vitória e queria vingança, queria o partido vermelho ilegalizado, queria a estrelinha em colapso, o almirante vermelho subjugado, valeu-lhe o lírico-mor de serviço, valeu-lhes melhor dizendo que viera correndo em nome do grupo da sueca, ou da bisca, ou dos sete, ou dos nove, dizer que democracia era com todos, jogar era com todos, ou todos jogavam ou desfazia a cova e arrebanhava os berlindes. Era tarde, ouviram-no e não ripostaram, era tarde, todos tinham bebido em demasia, cada um chamou os ordenanças e as viaturas e foi para casa, nada melhor que dormir sobre o assunto, amanhã logo se vê, ainda hoje isto se faz e assim Melo Antunes morreu paz.

Mas não julguem por este pequeno apontamento que a revolução não teve mártires, revolução sem heróis e sem mártires nem é revolução, e assim, muito antes de a publicidade nos oferecer os detergentes dois em um (2=1) e outras soluções dois em um, um jovem capitão de cavalaria, MM há-de criar por ele uma empatia especial, se é que não criou já ao ver na Tv o homem à frente dos blindados que ele tantas vezes reparou e afinou e cuja manutenção nunca fora tão eficaz, nessa hora certamente terá tido uma pontinha de orgulho, pontinha que, esclareçam-se os mais novos e menos familiarizados com estas andanças que Abril trouxe, nada ter que ver com o quartel da Pontinha, centro de comando das operações daquele prodigioso dia.

Digamos tratar-se de blindados franceses, marca Panhard com perto de cinquenta anos, já abatidos ao efectivo por essa Europa fora há umas boas décadas mas ainda prontinhos para as curvas e contracurvas da nossa revolução, foi enfiar-lhes um ramo de cravos no cano do canhão, uma palmadinha na anca, como dantes se fazia às muares de cavalaria e ei-los prontos a assustar o pagode que até Marcelo Caetano ai não que não foge, fugiu.

Foi um destemido herói esse Salgueiro Maia, porém quis o destino que a revolução, o revanchismo, o mau perder e a insignificância tivessem feito dele um mártir e, quando lhe deviam ter sido prestadas honras negaram-lhas, para quem não saiba é costume as revoluções tragarem os seus melhores filhos, aconteceu no oeste, no oeste da península, a oeste da Europa, e a oeste da vergonha, um bardamerdas houve que deixou o burro ir às couves teria dito o destemido capitão.

No fim da macacada, no meio de mortos e feridos perguntarão vocês quem afinal tirou benefício destes tempos atribulados? Júlia nos dirá pois jantou com sua excelência, um dos beneficiados, numa dessas noites de sábado em que a cabeça descansa com paciência tendo sido convidada para jantar por nada mais nada menos que o senhor embaixador Frank Carlucci, pai americano mãe italiana, ex. director da CIA, e o único homem que depois de toda a bagunçada se ficou a rir. E rimo-nos nós quando encontrámos nos arquivos uma ficha que, juraríamos pela caligrafia ter sido preenchida pelo punho dele e cujo título rezava, Dagoberto Metrot CGT, a acompanhar.

Para quem não seja da terra nem lhe conheça o fusos e os usos, o que acontecia com Júlia Mestre e Dagoberto Metrot, que eram portugueses sem serem, ou não se demoravam por cá tempo suficiente para o serem, digo eu agora que estes dois, ou antes esses dois de que falávamos, perdão, esse de que se falava esse tal Carlucci, viria anos mais tarde a aproveitar esta democracia capciosa, numa parte em que além de capciosa esta democracia se tornou caprichosa, não ia com todos, aliás vai cada vez com menos, menos mas mais, mais ricos mais influentes, o que, não podia deixar de acontecer com o embaixador Carlucci depois de abandonar funções na embaixada. Aquilo foi dar corda nos acontecimentos e nos sapatos, gizar uma ligação a outro que tal mas mais baixo, mais baixo em notoriedade internacional que nacional a tinha até demais, e vão os dois de montar uma negociata imobiliária, ele e um tal Albarran, de Albarraque, muito baixo, uma espécie de estrela da Tv, mas essa é outra história, a história de como se enganam os tolos quando afinal este povo toda a vida se tem julgado muito esperto, mas todos lhe comem as papas na cabeça, como mais adiante veremos.


VIII


É bom que se diga em abono da verdade que Abril reclama nem todos virem nem viverem de ou com santas intenções, naquele comboio descendente com destino a Santa Apolónia mas que fez paragem em Campolide vinha uma prova disso. Sabemo-lo porque aqui foi dito tão importante comboio só o ser por trazer nele com destino a este torrãozinho à beira mar plantado e num repente alvo do mundo e dos tabuleiros de xadrez dois peões de brega, digo dois dos melhores jogadores do planeta, um em representação do longínquo oriente, para lá dos Urais pois a explicação é pertinente, outro pelo ocidente, para onde se avançarmos não acharemos fim, dado o mundo ser redondo como o comprovou Fernão de Magalhães ao serviço dos reis de Espanha, que aqui sempre foi dificílimo fazer qualquer coisa de jeito, e, não tendo fim a busca do ocidente mas havendo necessidade de catalogá-lo nas cartas marítimas que Ptolomeu haveria de invejar, chamaram alguns a esse mundo inacessível que enganou Colombo, outro bem-intencionado por nós dispensado e ao serviço de Espanha, pois então dizia eu do ocidente que lhe chamaram mundo novo, mundo livre. Ora aí está uma designação, ou classificação que nada destoa sendo caso para dizer por uma vez bater a bota com a perdigota, todo o século XX foi século de utopias, algumas tão aberrantes quanto as outras e aí está mais uma, a nossa dizem alguns, como se houvesse entre utopias alguma diferença que não a devoção com que nelas se crê, ou acredita, pois no momento em que se vivem logo deixam de ser utopias para ser fantasmagóricas, telúricas, truísmos, pesadelos, efabulações, terrores ou fantasias, e esta do mundo livre deixa livre o campo à imaginação mais frutuosa e à busca mais acirrada, pelo que a importância daquele comboio descendente não poderia ser mais relativa, ou relativizada que a homónima teoria de Einstein, porém, a presença a bordo de Dagoberto Metrot, sindicalista e delegado da CGT francesa em missão de observação e colocado em Lisboa, dava à composição uma importância transcendente que contudo passou despercebida a muito boa gente e que somente arquivos como os da Torre do Tombo, ou o designado "Arquivo Mitrokhine" nos permitirão contar a verdade por ser neles nos termos baseado ou terem sido os documentos nela encerrados, nela Torre, encerrados e desclassificados decorridos que são trinta anos sobre os eventos a relatar-nos as verdades a que nos julgamos com direito, daí a exaustiva pesquisa a que esta obra obrigou.

O mundo laboral fora garrotado pelas ideias corporativas vigentes há décadas, o 25 de Abril alargou-lhe a trela e uma vez cortada essa trela ali tínhamos uma fera à solta, caminhando desconfiada, farejando tudo, mirando tudo, medindo tudo, um perigo à solta se esfaimada, uma fera ao serviço se domada, era esta a missão do espião do mundo do trabalho, não confundamos com trabalhista, a Dagoberto Metrot competiria domar a fera, observá-la, aquietá-la, controlá-la, conduzi-la ao redil, ganhar-lhe a confiança, amansá-la e por fim colocar-lhe outra trela, qual cérbero, quem o dominasse dominaria as ruas, as praças, avenidas, quarteirões, sectores inteiros, os vidreiros, os ferroviários, os tintureiros, o poder como sabemos está na ponta das espingardas ou na mão que o agarrar e nem sempre está onde devia estar.

Poderão os mais distraídos e mais ingénuos descrer desta descrição da importância do mundo do trabalho e para vos tornar mais crédulos adianto-vos que, a ser como no-los mostram os arquivos, ainda Dagoberto Metrot quase nem metera o pé no chão e já a sua presença era senão reclamada pelo menos justificada, as forças designadas como contra revolucionárias puseram em andamento um movimento, um processo tendente a quebrar a unidade sindical, portanto o poder de facto, que não o legítimo, estava em perigo, sobre esta matéria existem depositados setenta e dois relatórios se considerarmos somente o período entre 25 de Abril de 74 e 28 de Outubro de 1978, data da fundação da Central Sindical de Portugal, a conhecida União Geral de Trabalhadores UGT, arquivos e relatórios consultados por este vosso escriba exaustivamente a fim de vos dar a conhecer a verdade, seja ela conveniente seja inconveniente, portanto a luta desenrolou-se de modo incendiário durante quatro anos, a primeira avançada foi feita através da publicação dos decretos 215-A/75 e 215-B/75, e logo a velha cantiga do «Proletários de todos os países, uni-vos!» levou um forte abanão, a unicidade sindical acabaria por cair como foi dito atrás a 28 de Outubro de 1978 em Lisboa, enquanto em Paris a missão de Dagoberto Metrot era reavaliada tendo em conta os últimos desenvolvimentos.

Para efeitos menos prosaicos ou secretos, poderão V. Ex.ªs consultar o arquivo dos jornais diários desses quatro anos em causa e verificar o efectivo derrube do poder da poderosa CGTP e criação da UGT, a central sindical que quebrou a unicidade sindical, central sindical esta dita democrática, defensora dos valores da democracia, independente, liberta de pressões, compromissos, exigências e imposições, tacticismos, manobrismos, central sindical esta, a UGT nada e criada com fundos da República Federal Alemã, mais concretamente da Fundação Friedrich Ebert , tudo fora montado com a ajuda da Fundação Friedrich Ebert que abrira escritório em Lisboa em 1977, o primeiro delegado da Fundação Friedrich Ebert, o alemão Gerhard Fischer era o operacional no terreno através de quem se efectuavam os principais contactos, começando com o advogado Gustavo Soromenho, administrador do jornal “República” e futuro tesoureiro do PS, e Carlos Carvalho, à época um jornalista desportivo. Desde 1969 a 1979, Elka Sabiel a responsável em Portugal da Fundação Friedrich Ebert, ligada ao Partido Social-Democrata alemão (SPD), coordenou os apoios ao PS e à independência sindical, fora ela quem tratara da organização do congresso fundador do PS, na Alemanha em Abril de 1973, e foi ela quem durante uma década veio a Lisboa cerca de 35 vezes a fim de dar apoio aos socialistas no combate pela consolidação da democracia. Elka Sabiel, usando o apelido Esters, recorda-se bem do primeiro português que conheceu: “Mário Soares, em Paris, em 1969”  com quem viria a conviver em Lisboa. Portanto foi nada virgem e pura a UGT, sem dever nada a ninguém como comprovado e observado está, a não ser à gratidão desinteressada da tal fundação e do mundo livre que ninguém sabe onde mora nem de quem seja filho. Poderemos portanto dar de barato que a primeira missão de Dagoberto Metrot saiu gorada mas desistir é próprio dos fracos, a luta continua, hasta la vitória, siempre!

Mas estamos a afastar-nos do essencial, isto das conversas é como as cerejas, quem come uma vai comendo outra e outra e acaba por não dar atenção a mais nada que não ao saco das ditas e quem diz um saco diz uma cesta, uma tigela, uma terrina, uma taça. E o fulcro da nossa observação é o Alentejo, também ele por esta época em bolandas, ocupações, usurpações, expropriações, aquisições, um fluxo, uma azáfama, uma mexida que talvez não tivesse tido igual nem na implantação da república em que tudo foi virado do avesso, mas havendo mais marés que marinheiros, a um fluxo seguiu-se um refluxo, toda a ação gera uma reacção, é dos livros, pelo que de umas passou-se para outras e essas outras eram agora as devoluções, as desocupações, as pressões e contrapressões que o nosso velho amigo Carrajola tão bem aprendera a gerir, onde andará ele agora? Terá ido para o caralho juntamente com os pides de Alcoentre? No lo creio mas tomei nota para que a cena não fique esquecida nem esta história manca ou desguarnecida de factor tão importante para a compreensão dos factos.

Gerava o fluxo algumas quezílias, umas querelas, alguma violência, gratuita como sempre, felizmente de pouca monta ou significado, sendo vulgar surgirem nestas situações de atropelo oportunidades para, ou a fim de, provando-se e comprovando-se, verificar-se sermos um povo de brandos costumes. Por vezes foi mais o susto e o medo que propriamente o enredo, tendo esse medo apesar de tudo chutado  alguns até para o Brasil.

O mesmo se diga do refluxo, este porém foi ancorado em legislação preparada para balizar os excessos tendo sido a vez das privatizações, devoluções e desocupações de terras a que atrás aludíramos.

Anos se passou nisto, década e meia a duas, nalguns casos três e mais, gerando uma indefinição que levou o Alentejo a estagnar. As unidades especializadas em determinadas culturas morrendo, lembro o tomate, o arroz, o figo, houve fileiras cuja quebra de produção superou os 50% e, enquanto novas fileiras não se perfilavam, como a vinha e o vinho, o tempo decorria tentando ou permitindo dar a volta e refazer as equipas de saberes e sabichões que nestas ocasiões sempre se dispersam e que por vezes para se reconstituirem levam tantas gerações quantas tinham levado a formar-se, levam gerações, quando levam, quando não morrem de todo e de vez.

A terra a quem a trabalha, um slogan dos tempos áureos da revolução foi deixando cada vez mais gente com um amargo de boca. Á destruição das empresas privadas após a revolução seguira-se a morte das unidades colectivas de produção. Falta de produção, falta de organização, falta de legislação, falta de coesão e o Alentejo da terra a quem a trabalha passou a ser a terra de onde todos abalam, partem, deixam, abandonam. De zona agrária de respeito passou a anedota, nunca mais nele a bota voltou a bater com a perdigota. E foi assim que nem aqui em baixo se fez a reforma agrária do latifúndio nem a norte a do minifúndio, como sempre neste país nada é para fazer, tudo é para ir fazendo…  

  
IX


No entanto enquanto o país fervia MM progredia e consolidava a sua posição não sendo o facto de andar afadigado que o fazia esquecer Perfeita da Anunciação e por lógica analogia outras mulheres, com quem se dava, ou que via. Os primeiros anos de dor foram dedicados a lembrar o seu primeiro amor, nada a que se visse obrigado, porém a sua consciência assim lho ditava. Tinham sido poucos mas tinham sido anos de felicidade os que vivera com Perfeita da Anunciação, tal teria que bastar-lhe, era tempo de enterrar os mortos e cuidar dos vivos, e entre esses estava ele e Júlia, por quem fazia tudo que podia.

A liberalidade da mulher francesa tornou-lhe as coisas fáceis, mas até o que é fácil tem um preço e o preço das mulheres fáceis foi, durante muitos anos, não esquecer Perfeita da Anunciação e com ela comparar todas as outras, sem paralelo, sem comparação o que lhe tornava difícil tomar uma decisão sempre que se lhe colocava essa candente questão.

Tanta facilidade complicava-lhe a vida e quantas mais mulheres conhecia menos compelido se sentia a aceitar que elas ficassem ou a deixar-se ficar. O caso estava a tornar-se bicudo e MM cansado de hoje uma amanhã outra, conhecer muitas e na realidade não conhecer nenhuma, porque uma mulher só na intimidade continuada se conhece. Atrás foi dito que as mulheres fáceis lhe complicavam a vida, não que Perfeita da Anunciação tivesse sido difícil, mas com ela não tinha sido tiro e queda, ambos tinham cumprido um ritual que os elevara a cada degrau que galgaram, ela tornando-se mais mulher, ele sentindo-se mais homem, porque o valor das coisas está também na dificuldade da sua obtenção, por isso tão pouca gente apanha a azeitona caída no chão, não que esteja bichada, mas qual o seu valor se não for varejada ?

Temos então que MM demorou a despir a pele daqui levada agarrada a si e eivada de preconceitos dos quais o que acabámos de abordar era um deles. Acostumados ao sol os olhos estranham se passam a ser submetidos à escuridão, demorando a aclimatar-se e vice-versa, assim se encontrava MM, encadeado com a liberalidade das terras de França e não só neste domínio mas em muitos outros e a cada dia confirmava quão atrasado estava o país que abandonara e o seu Alentejo, um atraso dentro de outro atraso, assim via as coisas depois de ter conhecido numa feira de artesanato em Toulouse as matrioskas russas.

Platónica, a primeira paixão em terras de frança teve-a MM por Marine Le Goff, que contudo escondeu e dominou muito bem, evitando assim trair a confiança que o casal lhe tinha concedido. Homem avisado este nosso MM, prático e pragmático, a vida ensinara-lhe a não perder tempo com impossíveis e assim fez, pacientemente esperou que o devaneio lhe passasse, e passou.

Talvez MM visse em Marine a continuidade de Perfeita da Anunciação, quem sabe? Estamos nós para aqui supondo pois é um capítulo em que ele não se abre, mas o carinho com que ela “adoptou” Júlia terá pesado subconscientemente no coração de MM e como todos sabemos a razão, ou melhor o coração tem por vezes razões que a própria razão desconhece, por isso nada nos admira ter sido essa ternura para com a filha a conquistá-lo, ternura que, para agravar ou agradar, era emanada de figura evangélica, bela, tão diáfana quanto o tinha sido Perfeita da Anunciação, tudo se tendo conjugado na perfeição para que MM tivesse sido arrolado no tufão de sentimentos que desde aquele episódio triste dos Pirenéus preenchiam quotidianamente a sua vida.

MM ansiava por descansar e esses anseios muitas vezes o levaram, em sonhos, a ver-se de cabeça pousada no regaço de Marine, os dedos dela afagando-lhe em pente os cabelo, a face sentindo-lhe o magro ventre que ele adorava acariciar em Perfeita da Anunciação, muito antes d'esta lhe anunciar a vinda próxima de Júlia e cujo avolumar MM nunca se cansou de beijar, acariciar ou observar, deleitando-se se um pezinho impelia de dentro para fora a barriga da mãe ficando desenhado claramente entre as estrias que a pele acusava e às quais ele acudia com óleo de amêndoas doces espalhado com cerimónia.

Qual arca da aliança o ventre da mulher sempre constituíra para MM um milagre, uma caixa de milagres, um reduto de magia que durante muitos anos ele não compreendia por isso, escondidos no palheiro atrás dos fardos ou deitados enrolados sobre as searas aloirando, o ventre de Perfeita da Anunciação fora sempre a parte mais amada, mais acariciada e mais beijada ao longo desses anos vividos em comunhão.

Fraqueza ou fetiche o ventre feminino marcou indelevelmente MM e toda a sua ternura mais cedo ou mais tarde acabava dirigida a essa parte do corpo, mesmo escoltada por outras não menos importantes mas nas quais nunca ele se demorou de igual modo ou votou idêntica devoção.          

Explicada fica uma preferência ou tendência de MM, porém tal não foi necessário a Delfina Marchand com quem ele saía de há umas semanas a esta parte. Depressa ela percebeu, ou se apercebeu quanto e como esses preliminares pesavam para MM. Não que ele os dispensasse, ou lhe pesassem, ou estivesse com pressa a ponto de saltar por cima deles deixando em claro e por preencher essa parte da noite que se seguiu ao jantar com velas, música romântica e uma lareira bem guarnecida. Como mulher era ele o primeiro a admirar-lhe e venerar-lhe o sagrado poder da concepção, não sabemos se S. José o teria feito antes dele, dele MM, a Bíblia é omissa quanto a isso, de qualquer modo é lícito que nos interroguemos por duas simples razões, ter sido o ventre de Maria abençoado com o filho de Deus e ter Ele sido concebido sem pecado original, o que mais evidencia esse ventre, os ventres de todas as mulheres, pensamentos que tocaram fundo Delfina e, deixando de se fazer rogada lhe abraçou a cabeça, afagando-lhe os cabelos com os dedos em pente, como se lhe adivinhasse os gestos e os pensamentos mais íntimos. Confiante abandonou-se-lhe, sentiu-o deslocar a ternura do ventre para a púbis, a língua percorrendo as virilhas numa aproximação cautelosa e quando tocou os seus lábios cerrou os olhos, abraçou-o com violência e entregou-se-lhe.

Se dúvidas havia deixou de as haver, MM seguia a sua vida, equilibrava os seus karmas, refazia-se dos atropelos de quarenta anos e pela primeira vez olhava também para o futuro, acostumado que estava a preocupar-se com o passado inesquecível e sobretudo com um presente pejado de tropeções e da pressão que esse presente sempre presente lhe colocava invariavelmente em cima, exigindo-lhe respostas imediatas. A partir daqui, de hoje e com Delfina Marchand o imediatismo estava enterrado, ela dava-lhe uma paz que há muito não sentia a não ser como necessidade.


Deste modo temos parcialmente resolvidos os problemas afectivos e sentimentais de MM, não se pense contudo que o mundo vai rejubilar ou ressentir- se disso, pois com problemas ou sem problemas, sejam eles quais forem ou tenham sido é sabido que o mundo pulou e avançou situando-se a população total à volta de sete biliões, sete, o que deixa para trás como meramente factuais as preocupações ou despreocupações de MM, factos que por mais importância que lhes atribuamos nem de perto nem de longe se comparam sequer com os relativos a Linda de Suza, outra compatriota igualmente emigrante que chegara a França com uma mera mala de cartão, sendo hoje o sucesso que toda a Gália lhe reconhece, enquanto com MM só nós parecemos ocupar-nos ou com ele nos preocupamos, o que nos deve levar a relativizar os seus sucessos, mormente os amorosos, mais parecendo que os dissecamos por voyeurismo que por mérito dele, ou deles. 



           X 


Todos nos julgamos muito contidos mas, se a oportunidade se nos oferecer não desdenhamos dar uma espreitadela pelo buraco da fechadura, tal leva-nos a voltar a Júlia e a Dagoberto Metrot, casualmente hospedados na mesma pensão barata do Chiado, Pensão Primavera, cujas vidas já por duas vezes se cruzaram e, sabido que é não haver duas sem três, tornamos de novo a esses dois, que deixáramos cruzando-se numa porta apertadinha da qual só uma meia porta se abria, ele saía ela entrava, ou vice-versa, não interessa agora para o caso, para o caso interessa apenas que de momento Dagoberto fora ver uma exposição de pintura, nus, especifico que pintura abstracta, nus abstractos, não fiquem vocês para aí a matutar, e ela, Júlia, voltava a casa com uma mantinha mui lindinha, mui pintadinha, mui colorida que adquirira à saída de Reguengos para Monsaraz, boa e baratinha, a qual ela esperava se viesse a comprovar ser tão quentinha quanto a tinham como tal apregoado. Entrou, subiu as escadas em passinhos de corrida, de manta ao ombro, batendo a agulha dos saltos na madeira das escadinhas, alertando Dagoberto que pintava excitado que viera da exposição referida, por desfastio e empatia uma tela comprada numa loja próxima e de materiais para pintura, logo largou o pincel mal lhe ouviu o matraquear dos saltos nas escadas, pregando-se de olho no buraco da fechadura, logrando ver no corredor qual o andar e o quarto que ela ocuparia, meditando de si para si se lhe mostraria a tela mal a desse por terminada.

Não pintara Dagoberto a manta, que aliás jurara de si para si pintar mui bem pintada, curiosamente as cores esboçadas na tela, coincidência das coincidências, eram precisamente as mesmas que a manta revelava! Já temos ouvido dizer a muita gente, quem o não ouviu já, afirmar não crer em coincidências, sendo caso para que nos interroguemos então por quê, qual a razão, qual a explicação para que estes dois, ignorantes um do outro, demonstrem deste modo tão clara ainda que aleatória uma empatia, uma preferência pelas mesmas cores de um espectro teoricamente tão variado quanto a noite o é do dia. Haja quem me explique pois não só eu mas certamente o leitor ou os leitores estarão a esta hora acusando haver aqui coincidências a mais, e mais não direi do que aquilo que pretendo para vos manter presos à leitura pelo beicinho ou com trela curta.

Enquanto nós nos preocupamos com a trela curta o país largou a trela, tomou o freio nos dentes e corre desembestado para lado nenhum, corre simplesmente, corre fugindo e abominando tudo que seja passado, tudo mudando para nada ficar mudado, desde alterar o nome a uma ponte que continuou sendo uma ponte, até ao nome de um bairro que bairro ficou na mesma contudo com outro nome, era para o que estávamos fadados.

Ninguém cuidou de lembrar o desígnio de Salazar apostado em dividir para reinar, ou antes alguém cuidou e tudo fez para o manter, pois tal desígnio transformou-se, metamorfoseou-se, passando depois de Abril ao reinar para dividir. Cedo Júlia, nova mas não parva, se viu talvez por ser repórter, ou filha de quem não esperava, filha de quem a torto e a direito a toda a hora levantava perguntas e disparava questões, se viu, dizíamos, confrontada no seu íntimo com veras contradições. De tais dúvidas e embaraços deu satisfação ao pai nas parcas chamadas tidas e invariavelmente caídas por os telefones serem maus e a rede inda pior. Porém cedo Júlia percebeu que os problemas do país nem eram para resolver nem para a razão fazer valer. Havia aqui um nonsense que ela começava a entender, nada era para fazer, tudo era para se ir fazendo, porque no mais o que havia era gente que fingia, senão veja meu Papi, confidenciava Júlia num lamento bem explicadinho ao seu amigo de sempre e a que MM respondia displicente, e conhecendo como sabemos esta gente que aqui deixou, lá explicou à filha que o segredo era parecer e que o ser só tinha importância nos exames do liceu, muito ela padeceu antes que o compreendesse, mas a vinda de credores, homens bem-postos, ganhadores, p’ra emprestar dinheiro a juros a este país de trabalhadores depressa a esclareceu, ainda que eu pense, e bem, pois para tal sobram razões, ter ela finalmente entendido ser este um país de ladrões.

Não era o tal Dagoberto quem a Júlia tirava as dúvidas, inda que fosse simpático não o tinha ela por esperto, era um moço brincalhão, um tanto bonacheirão e do género não te rales. Júlia era perfeccionista, um tanto ou quanto idealista, mas que jovem o não é, sobretudo se mergulhado num mundo com o caldo entornado como era este país? Júlia era individualista, democrata até aos cabelos, Dagoberto era e não era, era tudo e era nada, invariavelmente o pior seria ser como quem no momento lhe falava, hoje isto amanhã aquilo, uma bandeirinha perfeita, uma personalidade dúctil, um caracter maleável, o contrário de si mesma não demorando um dia mais que o não considerasse uma lesma. Sim, leram bem, uma lesma, pachorrenta, lenta, nojenta, e enquanto ele alimentando esperanças se contorcia agachado no buraco da fechadura e de ouvidos em alerta, ela, madura e desperta, entretinha-se despertando-lhe o desejo inda que sem qualquer ensejo de lhe dar trela, fosse curta fosse larga.

Alguns de vós mais atentos interrogar-se-ão, como foi ou como terá surgido entre estes dois tal confiança, caber-me-á a mim narrador explicar tudo explicadinho, tirar dúvidas, concorrer para que elas nem tão pouco se gerem, portanto volto à carruagem do comboio descendente, onde se terão cruzado pela primeira vez, e à porta da pensão Primavera do Chiado onde pela terceira vez ambos terão estranhado a feliz coincidência. Ora sucede que não há aqui nem felizes coincidências nem coincidências coincidentes sequer, alerto-vos até para o facto de termos saltado do primeiro para o terceiro encontro, nem inadvertidamente nem aleatoriamente, pois espero que se lembrem do almoço em Alter do Chão, terra de cavalariças reais e onde foi homenageado o velho Sebastião. Pois, claro, evidentemente, agora sim, recordo, lembro, e ainda que o lembrem vagamente, se necessário voltai às primeiras páginas e lá estarão estes dois pela segunda vez, Dagoberto Metrot e Júlia Mestre, ambos franco portugueses de segunda geração, ambos arranhando o português, mais ele que ela, ele não tirando os olhos dela, ela não tirando os olhos da Zéza ou da Zézinha, não me perguntem porquê, nada sei mais que isto, nem quero alimentar boatos. Ao certo reparei que Dagoberto a olhava com ar guloso, que parecendo não dar atenção não tirava os ouvidos de tudo o que ela dissesse, fosse a quem fosse, medindo-a dos pés à cabeça, e já agora de ombro a ombro pois também aí Júlia não tinha nada a perder quanto aos cânones, e helas! apanhara no ar o nome da pensão em que ela confidenciara à Mariazinha estar hospedada, mesmo no centro de Lisboa, melhor não podia ter-lhe calhado, quase uma janela debruçada sobre o Rossio, palco e proscénio dos acontecimentos que a haviam guindado a repórter de primeira e agora correspondente de jornais e revistas francesas, alemãs e inglesas em Lisboa além de freelancer (hoje diríamos sem contrato, a recibo verde ou precária) na então Novel revista nacional, a Opção, sem adversário à altura, sim também ela, ela revista, do Balsemão, o do Expresso, sim a Opção, precisamente aquela que Sebastião estava então lendo.

Ficou o velho Sebastião muito excitado e honrado ao sentir-se mencionado e arrolado na conversa, mais ainda por ser o único que ali possuía a tão gabada revista, assinante desde a primeira hora dizia ele, babado e babando-se, agitando na mão a Visão, mudança de nome que acompanhara os tempos, o PREC ficara para trás e a necessidade de fazer uma Opção naturalmente também, nisso era o Balsemão avisado e ninguém lhe levava a palma. Agora, feitas as opções, era necessário haver uma visão para o país, ter uma visão era condição essencial para se estar informado e a publicidade o confirmava, Visão todos devemos ter uma, passe a propaganda, o que não deixava de ser verdade mas que veio a demonstrar ser um problema, e o problema foi precisamente esse, cada um de nós ter uma visão e em Portugal já se sabe, cada cabeça cada sentença, daí andarmos às cabeçadas quase há dois mil anos, decididamente são visões a mais, e nunca uma tal evidência fora tão evidente.

Antes do aparte do velho Sebastião perorávamos sobre as atracções e encontros ou visões tidas e havidas entre a lesma do Dagoberto Metrot e Júlia, lesma na expressão ou pensamento dela, tendo ela nele reparado num primeiro momento mas de quem não gostou ao verificar ter ele para lhe oferecer nos momentos seguintes muito pouco, pouquíssimo. E ficamos sem saber se a sua recusa ou repulsa por este belo e tolo luso francês teve a ver com ele ou com ela, pois nesse segundo momento ou ocasião em que os dois se tinham visto, ele manifestara sem o tentar disfarçar ou esconder um fraquinho pela Linda Love ou simplesmente Linda, a das ancas convidativas, ancas de égua, faço questão de lembrar embora creia que a não tenham esquecido, e pela Zéza Pexita, a veterinária do peito generoso, ou se, com estes franceses e francesas se deverá ter o cuidado de arrolar todas as possibilidades, e se uma cama com três, ou quatro, ménage à trois, à quatre, como dizem em França, deverá ou não ficar fora do cardápio, sob pena de não vos estar a dizer toda a verdade e a falar com toda a franqueza. O tempo dirá se sim, se não, se sim ou sopas. 


XI


Curioso como a vida por vezes nos prega partidas, nos determina ou nos condiciona, Júlia viera para matar a curiosidade sobre a revolução, viera conhecer o país onde nascera, viera para ficar umas semanas, dois ou três meses e afinal já lá ia um bom par de anos. Não precisamos pormenorizar aqui quanto essa opção de vida desde o início obrigara Manuel Mestre a torcer-lhe o nariz, afinal tratava-se da sua menina, da menina dos seus olhos, criada num país civilizado, moderno, progressista, para onde ele se dirigira com um custo demasiado alto e agora ei-la de volta ao atraso, de volta a um país terceiro mundista e de que tanto trabalho lhe dera libertar-se. Respeitava a filha, raramente a tinha contrariado, mas desta vez não lhe pedissem compreensão, era uma espinha que mantinha atravessada na garganta, há anos, demasiados anos, para MM. Portugal como país negara- lhe todas as oportunidades, nunca lhe teria permitido realizar-se como e quanto em França o sentia e o fizera e não acreditava facilmente que esse país, Portugal, alguma vez se preocupasse com os outros, com os seus, o seu povo, dando-lhe um futuro, dando-lhe oportunidades como as que a França dava a franceses, portugueses, argelinos e quantos a procurassem, mas MM era quanto a Portugal um homem ressentido, um homem com sobejas razões de queixa e, por mais imparcial que a sua opinião fosse a nós surgir-nos-ia sempre inquinada por esse ressabiamento, esse ajuste de contas por fazer e pecando por isenção, razão porque a título de informação tal assunto aqui é apresentado. 

Era contudo chegada a altura de também ele dar um pulinho a Portugal e ajuizar das mudanças que Júlia lhe transmitia, umas para melhor, outras para pior e quer por telefone quer pessoalmente as descrições de Júlia, por vezes passando semanas de férias ou de trabalho em França, para ele seriam sempre uma visão pessoal, pessoal dela, eram visões dela que nem ela podia comparar com o passado por não o ter lá vivido e sofrido, lá em Portugal evidentemente, nada como ver para crer, mais a mais já prometera a Delfina Marchand, uma amiga cada vez menos amiga e mais íntima, levá-la a Portugal numas férias, a fim de conhecerem Lisboa, Porto, Sintra, Évora e naturalmente Baleizão, Barrancos, Beja, Mértola, Moura, Serpa e os seus queijos, Porto Covo, Odeceixe, Sines, Vila Nova de Mil Fontes e não podia deixar de ser, o Algarve.

Habituados à presença dos portugueses, tidos por trabalhadores e desenrascados entre os franceses, existia também por parte destes o desejo de conhecer a nova democracia nascida de uma das ditaduras mais longas do mundo e das mais velhas, em especial agora que a adesão à CEE facilitava a circulação e os poupava a burocracia, seria meterem-se no carro e ir por aí abaixo que a Espanha também já não constituía entrave.

Tomada a resolução MM nem espera que a filha lhe telefone ou o visite, liga-lhe ele mesmo e à terceira tentativa apanha-a em casa, isto é na pensão Alegria onde ela agora vivia, contando-lhe da sua intenção de nesse mesmo verão, portanto dentro de dois a três meses passar as férias em Portugal, férias grandes, isto é passíveis de prolongamento por mais uma a duas semanas. Por uma precaução que nunca explicou nem nós percebemos não alvitrou da vontade de levar a sua querida Delfina com ele, a seu tempo Júlia, sempre ciosa do lugar da mãe, saberia da intimidade dessa relação por enquanto julgada uma suposta amizade. Pelo sim pelo não MM iria manter as coisas assim e por vezes questionava-se, como e porquê depois de tantos anos ainda sentia uma justa mas inexplicável fidelidade por Perfeita da Anunciação, talvez por Deus lha ter roubado ao convívio demasiado cedo, talvez por o Senhor saber melhor que ninguém ter sido um amor limpo e profundo, talvez por ter sido para ele MM o primeiro amor, fosse como fosse nem ele sabia porquê, apenas sabia, apenas sentia e não conseguia esquecê-la nem tinha essa intenção.

Em Portugal no geral e no Alentejo em particular a vida seguia rocambolesca o seu curso, desfazia-se no que estava feito, virava-se tudo de pantanas, para depois em nova reviravolta deixar tudo pouco menos do que estava anteriormente, a cada dois passos em frente correspondia um atrás, quando não eram dados passos atrás jurando-se ou julgando-se seguir em frente. Leis e contra leis faziam e desfaziam acções pontuais e decretos, porém, de concreto pouco ou nada se adiantava que ostracizar o passado, o corporativismo o fascismo, ignorando que ele vive no homem, do homem e para o homem, esquecendo alimentar-se ele do homem. Nestas jigas jogas irresponsáveis mas consequentes navegou o país meses, anos, qual jangada em tumultuosa corrente, abrandada por escolhos que trouxeram até nós não uma mas duas vezes em pouco tempo os credores internacionais, de pronto baptizados de agiotas, esquecendo na ressaca da festa quem os tinha chamado, quem era responsável pela situação que a eles obrigara a recorrer, ou quem, qual cigarra, muito cantava sem nada produzir.

Foi durantes estes anos de contestação revolta e irreverência que o país começou a cultivar, com carinho e abnegada devoção o hábito de atirar as culpas para o lado, para cima dos outros, para todos menos nós, para cima de todos menos de cada um, de mim.

Empresas públicas foram entregues a gestores que responsavelmente as arruinaram, tal como a banca nacionalizada foi alvo e objecto de gestores e perfídias cujo novelo ficará eternamente por desenrolar. A guerra não se travava já nas ruas, nas manifestações e onde quer que o povo unido tivesse uma qualquer coisa a dizer mas no silêncio e resguardo de gabinetes ministeriais, empresariais, escritórios de advocacia, sobre alcatifas e tapetes que todos mudaram para avermelhados, nada de alcatifas nem tapeçarias verdes, azuis ou brancas. Durante anos nestes gabinetes desfizeram-se e fizeram-se leis, empresas, planos, estratégias, tácticas, esquemas, golpadas, torturas, fidelidades, interesses, jogadas, enquanto fora deles o povo unido votava, votava, votava, perguntarão vocês para quê, sendo hoje demasiado evidente que para nada, nada ficou para além de uma determinação e um determinismo que nos moldou primeiro e arruinou depois, e se a quarenta anos de fascismo as estatísticas respondem hoje com a prova de que alguma coisa e não tão pouca assim se fez, as estatísticas futuras tingirão os nossos primeiros anos, as nossas primeiras décadas de democracia com as cores da irresponsabilidade e da incompetência, do sectarismo, do partidarismo, do facciosismo, do amiguismo, da incapacidade e da intolerância.

Era neste caldo de cultura, chamemos-lhe assim porque era nele que mergulhavam todo um povo que nem pelo pezinho seguravam, como fora feito com Ulisses, e, com toda a ligeireza todo um povo foi alimentado, sedado, atordoado, drogado, alienado se me faço entender. Foi neste caldo de cultura que Júlia se fez madura, mulher madura, foi neste caldo de cultura que MM veio um dia a aterrar, vindo de França directamente para a Portela de Sacavém onde a Air France o deixou, não sem um amargo de boca por não ter experimentado a nossa TAP, cujos bilhetes custavam o dobro do preço, o que ele contrafeito recusou tendo viajado não na companhia da bandeira da sua pátria, onde volvidos tantos anos voltava, mas na companhia da bandeira da sua segunda pátria, uma pátria lisonjeira e ordeira a quem muito devia.

Essa primeira e negativa impressão sobre o país que MM visitaria e colhida ainda não tinha deixado Paris não seria a única, nem a última nem derradeira, mas sim a primeira, que como todos nós sabemos é a que mais conta, mais impressiona, mais condiciona, e no primeiro embate com a sua pátria era por ela renegado, não diria recusado, que o não foi, tivesse ele pago o preço pedido, aliás proibitivo, e a pátria tê-lo-ia acolhido de braços abertos, assim deixou-o de braços pendentes, pensando de si para si se seria isto a prova de um povo unido, ou onde estava esse povo unido que da diáspora portuguesa espalhada pelo mundo fazia razia somente lhe interessando o dinheiro, dinheiro que segundo as noticias nunca chegava, ninguém sabendo por onde se sumia.

Enquanto o país efervescia primeiro e assentava fervura depois, olhando de longe o espectáculo e o leite derramado MM preparava a sua ida muito antes da visita a Portugal. Da realidade portuguesa sabia o contado por Júlia em telefonemas breves, e, com algum atraso lia-lhe as reportagens publicadas quer no Expresso quer na Visão, títulos dos quais ele passara a ser assinante internacional e incondicional. Agradava-lhe o trabalho da filha, o modo dela expor, abordar e apresentar os assuntos e os problemas, tendo já por duas ou três vezes sido ela figura da semana, do dia ou do ano em canais televisionados franceses, aleatoriamente reprodutores do seu trabalho e doutras notícias de Portugal a partir das quais ele se mantinha informado e ao corrente do que por cá se passava. Aqui para nós atrevo-me a dizer, talvez até mais e melhor informado que os próprios portugueses, parecendo estes viver sem preocupações ou problemas, alheios ao mundo, alheios às mudanças, arriscaria aventar que alheios a si mesmos.

Mas quanto melhor informado maior a curiosidade de MM, curiosidade paulatinamente transformada numa necessidade premente de ver, de avaliar, de comparar com o antigamente, de comprovar impressões, de aferir transformações, coisas de que dava cuidado e conhecimento a Delfina, também ela lusodescendente como tantos outros, também ela acompanhante das peripécias e cambalhotas vividas neste cantinho à beira mar plantado, também ela curiosa de um dia visitar o país de sua mãe, afinal um país também a ela dizendo ainda alguma coisa e acerca do qual trocava bastas impressões com MM e mais que impressões comentários, apreciações e interrogações, sobretudo nas conversas tidas e havidas em que é usual puxar-se dum cigarro, não que saibamos se MM ou Delfina Marchand eram fumadores, nem isso interessa agora, esta coisa de puxar de um cigarrinho para o fumar depois de, corpos nuns lençóis puxados para cima depois de, acaba por ser conversa introdutória para vos fazer saber que eles sim, eles coiso e tal, quer dizer coisavam um no outro ou para não ferir sensibilidades nem de género nem de qualquer outra espécie digamos que coisavam um com o outro, desenfreadamente umas vezes, carinhosamente outras, terna e docemente também, metódica e apaixonadamente sempre, e, como diria o meu amigo Magalhães, sem nunca esticarem demasiado o lençol e cuidando de não destapar os pés para cobrir os ombros, ou deixar os ombros enregelados para tapar os pés.

Não era contudo a concupiscência que aproximava estes dois, havia ali algo mais pois por vezes despachavam o coiso e tal em quinze minutos, meia hora, para seguidamente ficarem no tréclarec uma hora ou duas, sem pressa nem fastio, tempo mais que suficiente para entre os dois fumarem meio maço de Gauloises ou Marlboro, ou Camel, ou SG Gigante que também se vendia muito em França, aliás a um preço por metade do que era vendido em Portugal como lhe jurara uma vez Júlia, quase ofendida com a exploração dos nacionais face aos emigrantes e estrangeiros espalhados por esse mundo fora e onde a tabaqueira vendesse aquela marca. Não sabemos se estes dois eram fumadores, já aqui foi dito, e nem isso interessa, fiquemo-nos pelo conhecimento do facto de que pintavam a manta, aliás bem pintadinha e para cujo estúdio ou atelier corriam mal podiam, facto a partir do qual, podemos intuir haver ali fundada ou fundamentada intimidade, a que certamente não será alheio o pormenor de MM lhe dedicar alguma admiração, e de por isso adorar ouvi-la falar. Muito tem aprendido com ela, eu diria mesmo ser um caso de sapiosexualidade porém não me atrevo a tal, não me atrevo mas já está dito, quando o que eu de todo queria evitar era que porventura se pensasse que só o deslumbramento dele por ela alimentava aquela fogueira, porque é de uma fogueira que se trata e não de uma chama, certamente ele também terá pergaminhos que pesam na preferência dela, nós que conhecemos mais ou menos bem MM podemos avaliar quais e quão pesarão ou não, ela Delfina Marchand que não o conhecera como nós mas que talvez o conheça até melhor, melhor certa e certamente saberá quais, quão e como esses pergaminhos a atraíram para ele, homem prático, pragmático, espartano, estóico, contido, sabido e sabedor, não diria um doutor mas um escolástico ou autodidacta, autodidacta nem todo ele pois muitos cursos muitas formações adquirira, frequentara ou fizera em França que lhe tinham aberto oportunidades e, já que falamos em portas ali estão eles dois, portas dentro, portas fechadas, nus ambos, cobertos com um alvo lençol, dois colegas, dois deputados municipais, dois lutadores da democracia, dois pares da república, dois idealistas, dois enlaçados, dois abraçados, talvez dois conversando e fumando um cigarro, ou talvez não pois como atrás ficou dito não sabemos se algum deles fuma, ou os dois, nem tal interessa, ele escuta-a, ela fala, agora sobre os mecanismos mentais que condicionam uma população inteira, convém dizer aqui e agora que ela é licenciada em Psicologia, sempre a fascinara a mente e o comportamento das pessoas, exercia funções nos serviços sociais da câmara da cidade onde ambos viviam e era colega municipal do nosso homem, quero dizer do nosso amigo MM, brevemente o nosso homem em Lisboa onde irá gozar umas férias com Delfina que, não o sabe ele ainda mas se hão-de prolongar mais tempo que imagina, todavia cada coisa a seu tempo, por agora apenas estes dois deixaram combinada mais ou menos a data em que o farão, no verão, para o que terão que se preparar, marcar férias, avisar Júlia, dizer-lhe o mínimo possível mas avisá-la não vá dar-se o caso dela marcar férias na mesma altura e rumar a França dando azo a um desencontro que o narrador destas linhas não prevê nem deseja pois para nada serviria, nem nada de interessante acrescentaria a esta história que ainda não está contada mas já vai bem alinhavada.


XII                 


Os primeiros dias passou-os MM em Lisboa com Júlia que lhes serviria de cicerone, e se digo lhes é porque MM lhe apresentou com algumas reticências mas suficientes adjectivos a sua amiga Delfina Marchand, que Júlia não perdia oportunidade de mirar pelo canto do olho e medir. Foram dias agradáveis à parte o choque que MM recebera pois mal metera o pé no chão divisara entre a multidão a cara e os olhos de Júlia que o esperava mais animada que nunca, toda vestida de negro, cabedal negro, mas com a cabeça rapada mesmo rapada, à escovinha, à máquina zero, como nós muitos anos mais tarde haveríamos de ver Sinéad O’Connor.

Depois dos beijos e abraços normais nestas ocasiões logo MM incapaz de conter a sua admiração, digamos antes o seu espanto, dispara irreflectidamente para a filha fazendo uso de uma linguagem a que nem costuma recorrer nem fazia parte do seu reportório:

- Qu'est-ce que cette merde? Des idées qui vont dans cette tête? Êtes-vous fou?

esquecendo momentaneamente que a sua menina não era já uma menina e sim uma jovem mulher, madura, vivida, culta, cosmopolita e, ao contrario do que ele sempre haveria de pensar, capaz de tomar conta de si mesma.

Ultrapassado o paternalismo serôdio logo MM recordou serem aquelas carecadas vulgares em França, não em cabeças como a da sua menina, antes em cabeças vivendo a vida com alguma irreverência e liberdades a que ele não era dado, especialmente após Maio de 68 cujos dias, irónicos cómicos e icónicos ele acompanhara vivamente através de jornais, rádio e Tv, não sem uma pontinha de inveja, lembrando a todo o momento quanto tais liberdades, iniciativas, movimentos e correntes de pensamento seriam combatidas em Portugal, que agora vivera, com muitos anos de atraso, a libertação que os franceses tinham experimentado nesse longínquo Maio de 68, e ao pensar isto reconciliava-se consigo mesmo e com a filha, pois se não agora quando havia ela de dar as cabeçadas que a juventude nunca deixa de dar para aprender, ainda que ela fosse uma jovem, já entradota e com idade suficiente para ter juízo.

- Papi! Appuyez sur la vie, réveille-toi à la réalité, vous convient, vous modernise, vous rafraîchit, ce coupé est déjà passer la mode en France, le Portugal est en train de changer et les choses viennent ici avec un certain retard, mais est changer. Vous Recycle Papi !

- Oppression assez Papi, imaginez ce que ces personnes ont souffert pendant quarante ans? Maintenant, il y a la liberté, la liberté et la faim de liberté, viennent maintenant ici l'interdiction interdite, il y a maintenant la liberté d'être stupide si l'on veut Papi !

- La liberté de la bêtise vous dire Julia? Tant de liberté sera le malheur du peuple, d'abord à la débauche alors… voleurs… 

A estas questões e muito resumidamente MM responder-lhe-ia, alguns dia depois, durante um almoço familiar e domingueiro em Sintra, onde levara Delfina Marchand.

- Oui Julia, est en train de changer, même à peu je voyais change déjà ce qui devrait rester le même et ce qui devrait changer ne change pas, c'est le problème, s'il vous plaît Dieu, il est juste mon impression.

- Que voulez-vous dire Papi ?

- Je lui ai répondu à votre déclaration il y a un moment sur le fait que ce pays est en train de changer cher. Je voulais voir, lire, être au courant, et je ne pense pas que les choses changent même que vous pensez, ou tout au moins autant que vous le pensez.

- Je ne vous comprends pas Papi, vous voulez être plus concret, plus précis ? ou…

- Regardez Julia, vous étiez très jeune et bien sûr pas l'attention sur certaines réformes qui ont été menées en France et rationalisées considérablement les services publics et non-publics, ce qui contribue sensiblement aux contribuables seraient épargnées certaines de ces réformes ont été largement discutées à l'Assemblée et les médias nationaux, les ont accompagnés avec la passion d'un ignorant et beaucoup appris avec eux, est dans sa lumière qui regarde maintenant ce que vous faites ou ne faites pas au Portugal, et franchement je ne pense pas que les réformes sont en cours fond avant de perpétuer les arrangements antérieurs ont fait que l'arrière-plan se résume à diviser et conquérir.

- Je compris ce que vous avez dit, mais je ne vois pas où vous voulez obtenir Papi.

- Respondia à tua afirmação de há uns tempos sobre o facto deste país estar a mudar querida. Tenho procurado ver, ler, estar atento e não me parece que as coisas estejam mesmo a mudar como tu pensas, ou pelo menos tanto quanto pensas.

- Não te entendo Papi, queres ser mais concreto, mais específico? Ou…

- Repara Júlia, tu eras muito nova e naturalmente não deste atenção a determinadas reformas que foram levadas a efeito em França e racionalizaram tremendamente serviços públicos e não públicos, tendo contribuído substancialmente para que os contribuintes fossem poupados, algumas dessas reformas foram largamente discutidas na Assembleia Nacional e nos mídia, acompanhei-as com a paixão de um ignorante e aprendi imenso com elas, é à sua luz que agora olho para o que se faz ou deixa de fazer em Portugal, e francamente não me parece que estejam a ser feitas reformas de fundo, antes a perpetuar o que o anterior regime fizera que no fundo se resumira a dividir para reinar.

- Percebi o que disseste mas não estou a ver onde queres chegar Papi

- Repara, antes os portugueses dispunham de uma profusão de serviços ou subserviços ou sistemas e subsistemas de saúde que nem apesar de serem tantos garantiam cabalmente uma cobertura eficaz de toda a população, o que se mantém, até agora só as caixas de previdência (várias) foram aglutinadas e os outro subsistemas? E os dos privilegiados se são privilegiados que lhes podemos chamar? Porque há um sistema para os policias, outro para a GNR, outro para a Guarda Fiscal, outro para os funcionários públicos, outro para os bancários, outro para os dos CTT, outro ou outros não sei para quê, para o exército, outro para a marinha, outro para a força aérea? Qual é a ideia? Qual o objectivo? Manter a descriminação? Continuar a dividir para reinar? Desbaratar recursos? Por este andar mais dia menos dia vão ter que aumentar os impostos para responderem a despesas em triplicado, e quem beneficia com isso? E porquê? Há aqui muito de inércia ou comodismo, ou devo antes dizer obscurantismo? É uma questão pertinente.

Deixemos os arrebique entre pai e filha pois é hora de dar mais uma achega à intimidade que desfrutavam MM e Delfina Marchand, intimidade e cumplicidade que não tinham surgido por acaso nem brotado de geração espontânea, antes demorara a fermentar e a consolidar-se pois ambos tinham sido edis na cidade onde viviam, onde viviam separados registe-se, a aproximação demorara a dar-se, a efectivar-se e nunca foram de cântaro e pucarinho, antes cada macaco no seu galho, até ao dia por Deus destinado para descascarem em parceria uma banana, e digo aqui parceria porque precisamente não quis utilizar outra palavra como harmonia, comunhão ou relação de facto, ainda que estes dois pombinhos não evitassem comungar sempre que podiam, ou de exagerar, para não dizer abusar da harmonia entre eles de facto estabelecida, mas nestas coisas há que ser claro, transparente, e o que eu sobretudo não quis foi levar-vos a pensar que teriam vivido em conúbio, isto é como um qualquer casal de rolas, perdão, de pombinhos.

A própria palavra edis por mim utilizada poderá estar eivada de grave falha de tradução, foi-me transmitida a coisa em francês e talvez deva aqui reconhecer quanto essa língua já me está enferrujada, adiantando terem sido na terra deles o equivalente ao que por cá temos e vulgo chamamos de deputados municipais, portanto membros de uma assembleia municipal.

Esclarecido que está este ponto, acrescentemos que deputados municipais da mesma cor e força politica, o que não significa que, sendo de diferentes cores diferente tivesse sido o sentido do seu voto, utilizando aqui a palavra voto no sentido de escolha, porquanto estes dois se conheceram se olharam e se escolheram, naturalmente depois de muitas outras escolhas e votos ou votações em comum, mas essas são derivações que não desejo aqui explorar nem tão pouco pormenorizar por entender não terem relevância, o que a tinha está dito, escrito, eram colegas, parceiros, amigos, a quem a vontade de mudar o mundo e melhorar as coisas uniu, a união faz a força, eles o saberão agora melhor que nós, direi apenas que para tudo e para todos haverá sempre uma razão ou não estaria o mundo a abarrotar de problemas e de gente.


XIII                       


Da concertação partidária à junção de esforços para mudar o mundo terá sido um passinho, como todos sabemos até a maior caminhada começa por um primeiro passo tenha ele o tamanho que tiver, podendo até ser um simples passinho, e esse passinho, que nem foi assim tão pequenino como porventura o possamos imaginar, foi dado numa noite de lua nova, mais precisamente perto do final de um trabalho de campo que estaria sendo desenvolvido no âmbito partidário, no âmbito das suas funções de deputados municipais, cujo fim não foi alcançado nessa noite a tal dedicada dado que os dois pombinhos de comum acordo, ainda que nem uma palavra tenha sido trocada, muito menos registada em acta ou relatório, tenham a páginas tantas decidido ou resolvido mudar de rumo, dado o adiantado da hora e a saturação que ambos já carregavam e os poderia ter levado, ou conduzido a manchar inadvertidamente do erro de distracção ou cansaço o resultado desse tal estudo, um estudo tido entre mãos cujas premissas acusavam alguma dificuldade em manusear após tantas horas de dedicação, entrelaçando-se-lhes as mãos numa confusão inesperada e para a qual não estavam preparados. Contudo não se deram por vencidos, primeiro foi o ombro a ombro que os havia de amparar perante a exaustão sentida, depois o braço nu de um colando-se e acompanhando o braço nu do outro, as mãos entrelaçadas apertaram-se primeiro para se engalfinharem de seguida e, quando espantados se olharam nos olhos sem saberem bem ou compreenderem o que se passava com eles nenhum quis fazer perguntas e nenhum quis responder. Ele ainda balbuciou qualquer coisa como adoro o teu perfume de tão leve, de tão sereno e de tão insinuante, ela terá respondido algo como:

- Foi oferta do meu ex, criou-o especialmente para mim, era um grande nariz, era e é, sim é leve, muito leve.

Suados, de coxas coladas era-lhes de todo impossível resistir ao aroma leve du parfum Eté Celeste e, quando ele se inclinou para lhe aspirar o odor sobre a orelha ela virou a cara para ele, de olhos semi cerrados ou fechados porque naquele momento o que menos queria era vê-lo e  ofereceu-lhe os lábios carnudos, o calor de um abraço e o aconchego do regaço. Ele gaguejou algo mas ela não lhe deu tempo para que reformulasse ou acabasse a frase;

- Esquece isso agora querido, que se fodam as estatísticas e os estudos  e o universo da população sondada…

Quem disser que a política não tem as suas vantagens, os seus benefícios ou que não dá frutos está redondamente enganado, ocasiões há em que mergulhamos nela de corpo e espírito, nem os eleitores compreenderiam que assim não fosse, gostam de se sentir apoiados, solidários, gostam de se identificar com os eleitos e já agora por favor que estes dois não os desiludam nem rumem contra a corrente.

Foram muitos anos de prática continuada, muitos anos de experiência sendo MM visto entre os munícipes e não somente os lusos e lusodescendentes, como uma figura responsável e competente. Fosse ele francês de gema e o partido já o teria candidatado a “mére”, mas lá, como cá, havia uns mais iguais que outros, havia e haverá, por isso ao olhar para o seu Portugal MM via muita coisa que o português aqui nado criado, vivido ou vivendo e votando não via, não via, não veria, nem haveria quem lhas mostrasse, havendo sim quem as desdissesse caso alguém aleatória e afortunadamente delas se lembrasse e desatasse a gritá-las aos quatro ventos. 

Ainda que as vontades ou as saudades fossem a fim de levarem MM a visitar o seu país, de onde há décadas fora forçado pela vida a abalar (sempre se recusara admitir que fora forçado pela fome) sempre desejou incluir nessa visita Delfina Marchand, para que também ela tivesse oportunidade de conhecer o país de origem de sua mãe. A decisão final envolveu contudo uma série de acontecimentos, nem pouco nem muito em cima uns dos outros mas todos contribuindo para dar de Portugal uma imagem negativa de instabilidade e deriva que os levou finalmente a decidir-se por essa visita, “antes que tudo aquilo volte ao que era”, ironizara Delfina que vira a Grécia ser alvo de golpes e contragolpes militares, golpes apontando à democracia num dia e desviando esse rumo no outro, ao que MM respondera ter sido essencialmente por essa razão que o bochechas metera o país na CEE, quando era sabido que nem o país nem o povo estavam preparados para tal desiderato. Como habitualmente todos ao molho e fé em Deus, acrescento eu que também tenho direito a meter o bico, agora é assim e depois logo se verá terá dito de si para si o Soares, que é fixe e bom rapaz, o mesmo que se vira livre do problema das colónias de um modo que toda a gente conhecerá mas não reconhecerá, problema que se o leitor não conhece devia porém conhecer.

- Não sejas mauzinho, quando queres consegues ser pior que o Marinho, que é um reizinho, ou se julga, respondeu-lhe Delfina que não apreciava Soares por aí além mas detestava que o apoucassem e a quem gabava uma coragem que Guterres não tivera, pois desertara ante o pântano em que se havia transformado o país, ou Santana Lopes que nunca soube o que quis, ou o execrável Barroso que ludibriando a ingenuidade de Sampaio (o presidente mais taralhouco que nos coubera em sorte) se furtara às suas responsabilidades de governante, sendo que para ele uns anos atrás qualquer governo teria a obrigação de ser vanguarda e líder da nação, noção que tanto defendera na juventude e no MRPP, mas da qual acabara fugindo para o conforto de uma casa rica mal se apercebera que Portugal estava de tanga. Podemos aquilatar quão Delfina relativizava as coisas e que ambos as conheciam e discutiam, o que me parece louvável, já que por cá essas questões e outras, tantas outras, nem eram conhecidas nem reconhecidas, e se o eram não suscitavam debates, nem críticas, fossem elas a favor ou contra, pois os factos eram aceites como meros factos, os ombros encolhidos e os assuntos arquivados no arquivo dos factos consumados. O país não tugia nem mugia, ia andando, quão mal sabia-o bem MM, já atrás tivemos ensejo de dizer quão e de que modo se apercebia e preocupava com o rumo desastrado que Portugal seguia.

Hão-de alguns de vós estranhar o conhecimento demonstrado por Delfina sobre o nosso país, ainda que seja este o país de origem de sua mãe e haja legítimo interesse e curiosidade em conhecer, afinal ela era lusodescendente, tinha aqui as suas raízes. A mãe e um irmão gémeo tinham emigrado no fim dos anos sessenta, talvez princípio de setenta, muito depois do início das guerras coloniais, fugindo à guerra e às péssimas condições e qualidade de vida que Portugal enfrentava e que ia debelando a passo de caracol e com uns empurrãozinhos da OCDE e da EFTA. Estranharão alguns leitores que Delfina possua do país um conhecimento senão idêntico ao que MM detém, ele que viveu muitas das dificuldades em que o país era useiro e vezeiro a oferecer aos seus filhos, talvez um conhecimento quase, quase idêntico, senão idêntico no mínimo aprofundado, de qualquer modo inusual, inusual para nós que dum país estrangeiro tendemos a reter somente a imagem dum ou d’outro postal ilustrado e com isso o confundir, como comigo acontece por exemplo, que de Espanha recordo as caves e os vinhos Domec, as touradas e os toureiros, os grandes cartazes de toiros miúra à beira da estrada, visíveis a quilómetros de distância e todos eles, como se diz por aqui bem servidos, bem dotados, quer dizer com grandes pares de tomates, temos que ser claros ou haverá menino ou menina que não compreenderá o bem servido ou o bem dotado, agora já saberá sem dúvida de quê, portanto podemos voltar à estrada, digo à escrita, e quer parecer-me que os espanhóis outra coisa não buscam com tal artifício, o artifício dos touros bem dotados entenda-se, mais não buscam dizia eu que exorcizar algum complexo que no íntimo alimentam e tenham necessidade de expurgar afirmando a sua masculinidade, ou deveria dizer machismo, latinos que são, como nós, e acrescentaria eu esforço inútil esse de afirmar o machismo porque certamente todo o mundo o saberá, homens com cojones são os de cá, os deste lado da fronteira, os desta nesga de terra ibérica entalada entre eles e o mar, mar por onde nos aventurámos e onde eles nos imitaram, e se restam dúvidas estude-se o Tratado de Tordesilhas e aquilate-se de como demos a volta a nuestros hermanos, invejosos complexados, mas não únicos, decerto poderíamos dizer algo parecido dos italianos, que só comem massas e não devem ser menos caturras que o meu amigo C. Cabral fazedor certa vez duma dieta rica em hidratos de carbono, massa de manhã à noite durante um ano ou dois até um dia ter acordado a falar italiano e com um feitio mais torto que porta em estilo barroco.

Mas estamos a desviar-nos do rumo traçado e o rumo trouxera-nos à constatação que não eram nem superficiais nem negligenciáveis os conhecimentos daquela francesa ou duma francesa, mais concretamente Delfina Marchand, conhecimentos possuídos sobre o nosso país. Os mais fantasiosos poderão a esta hora ter já fantasiado fazer ela parte dos quadros da Securité Française, do tipo Mata Hari, ou girlbond, e os mais imaginativos, ou criativos, terão atribuído há muito tempo esse conhecimento às longas horas de conversa de cama com MM após cada coisa, ou após a coisa e enquanto fumariam um cigarro, embora tenhamos dito ignorar se são fumadores os dois, ou cada um deles, volta a não interessar para o caso, os mais românticos tê-la-ão imaginado uma jeitosa compulsiva e dona de vasta biblioteca onde não falte Vergílio Ferreira, Eça, Camilo, Alexandre Herculano, Saramago, Lobo Antunes, e Deus me perdoe o facto de não mencionar todos os outros e outras, muitos e tantos, mas, como imagino a esta hora estarão vossas excelências em pulgas por tal saber e este tipo não ata nem desata, nem o pai morre nem a gente almoça, afinal que raio de explicação explicará a rica parafernália de conhecimentos que Delfina armazena sobre este país que mais parece não interessar absolutamente a ninguém e, perdoem-me a modéstia, não a aleivosia, a ninguém nem aos seus naturais.

Pois que a coisa saia rapidamente, Delfina simplesmente lera o romance entre António de Oliveira Salazar e uma francesa, Christine Garnier, essa jornalista francesa terá tido um "affaire" com Salazar sobre quem escreveu um apologético livro intitulado "Vacances avec Salazar", a partir daí Delfina fora picada pelo bichinho da curiosidade, esclareçamos que essa picadela, esse vírus lhe fora inoculado muito antes dela conhecer MM, com quem, ou através de quem colheu outra imagem menos romântica do dito e sinistro personagem sobre o qual MM fazia recair toda a culpa do peso, vicissitudes e custos do seu destino, e não única e exclusivamente do seu, o que fora suficiente para desafiar, acicatar em Delfina a curiosidade, não não, curiosidade não, antes o desejo de saber o ensejo de conhecer, a vontade de conhecimento d’um fenómeno que grassara e derribara a Europa e de que ele, Salazar, seria o único exemplar vivo, qual ave rara no extremo oeste desta Europa.

Escrevemo-lo aqui para que se não pense o leitor ser Delfina somente mamas e pernas, olhos sorridentes e um cú redondinho, dissemos umas páginas atrás ser ela formada em psicologia, o que terá pesado na curiosa vontade de conhecer Salazar, pois precisamente ela poderia aliar curiosidade e capacidade, capacidade de observar, estudar, analisar, investigar, já que como psicóloga a atraí a vera ambição de conhecer os meandros da mente humana, mormente dos ditadores que a Europa produzira e a tinham arrastado para o caos, tinham à Europa não a Delfina, falamos de Hitler, Mussolini, Estaline, Franco e agora este pinga amor que segundo MM era um hábil mestre do disfarce, da subtileza, da encenação. Onde estaria afinal a verdade? Num extremo? No outro? No meio como a virtude?

Anos atrás deixara Delfina a França em polvorosa, era mais nova, vinte e muito poucos, e a publicação da sua tese de mestrado gerara acesa controvérsia, acesos debates, não tendo porém sido contestada por manifesta impossibilidade de contradizer o que a tese afirmara. Solidamente fundamentada e construída a tese guindou-a a “mulher do ano” em França, e naquele ano longínquo abrira-lhe as portas à chefia dos serviços sociais da comunidade, concurso em que a sua tese lhe garantira o lugar primo inter pares. O tema? Pois, peço desculpa, estava efectivamente a esquecer-me do tema dessa tese que revolveu os franceses, intitulava-se “Le Chauvinisme, La Vengeance Et La Colère” Chauvinismo, Vingança e Raiva, abordando as represálias consumadas no fim da segunda grande guerra sobre as mulheres comprovadamente colaboradoras com o inimigo opressor e invasor, mormente no aspecto amoroso, ou sexual, venha o diabo e escolha, as tais que conhecemos de reportagens e a quem fora cortado o cabelo à escovinha e à pedrada, o que não significa que tenham sido lapidadas, antes, os cabelos lhes foram cortados à tesourada, máquina zero, à força, sem cuidado, sem jeito, deixando-as muitas vezes feridas, sempre com carecadas e tesouradas, para vergonha delas e exemplo das demais.

Disse-se atrás que a tese se debruçava sobre as mulheres que comprovadamente, devemos esclarecer terem algumas tido a felicidade de não verem confirmada a sua culpa, essas terão em principio sido deixadas em paz, não significando tal o alivio de inocentes decerto alvo errado de sevicias, por vezes selvagens, ou que culpadas não tenham logrado escapar a tão desumano castigo, como sempre acontece com a justiça, sobretudo quando feita por mão própria como foi o caso. Delfina consultara os registos possíveis chegando mesmo a falar com algumas das sobreviventes dessas perseguições e castigos, a maioria compreensivelmente recusara-se a testemunhar, outras aceitaram fazê-lo sob a condição de anonimato. Seja como for da sua investigação resultou um trabalho apaixonante e eu, que tive o grato prazer de ler essa tese, recomendo-a vivamente, lamentando porém que não esteja traduzida entre nós e o texto recorra um tanto exageradamente a uma linguagem culta e rica e a alguns termos técnicos que a tornam impenetrável a quem não domine bem a língua de Napoleão. É a de Napoleão que se diz, não é? Ou será a de Robespierre? Ou de algum poeta como nós dizemos da língua de Camões?


XIV                        


E Júlia? É verdade que quase esquecêramos Júlia a quem deixámos uma quantas páginas atrás e mentalmente vociferando contra Dagoberto Metrot, cuja repulsa se tornou mais evidente desde que o considerara um tipo chato, dúctil, bandeirinha, lesma, parando e concentrando-se na nova partner do pai, Delfina Marchand, a quem não deixava de mirar e medir pelo canto do olho, espero que se recordem e não tenham perdido o fio à meada, a ponta do novelo, sob pena de estar eu para aqui a falar para o boneco, digo a escrever para o boneco, o que parecendo a mesma coisa é coisa totalmente diferente.

São nossas conhecidas as animosidades, ou a animosidade inata de Júlia para com Delfina, esta vista como usurpadora do lugar da mãe, que quase não teve tempo para conhecer, ou de disfrutar, mas que MM endeusara ditando-lhe uma irracional oposição a todas as pretendentes que o queiram ocupar, ocupar esse lugar, o que não torna nada fácil o relacionamento e a convivência com esta jovem adulta, agora armada em cicerone do pai e da interina madrasta. Por outro lado também ela, Delfina, retribuía com pouca disposição para aturar crianças mimadas, mesmo as crescidas, o que em nada facilitava as coisas a estas duas obstinadas madames. Para deitar água na fervura e as obrigar a aquietar os cavalos estava MM, digo aquietar os cavalos, régler les chevaux, por ser termo comum a ambas as visadas, já que o deitar a água na fervura é uma expressão nossa que perde a graça se traduzida e em cujo alcance as madames poderiam ter alguma dificuldade na apreensão ou nem sequer a isso chegarem.

Mas voltando à vaca fria, isto é a Júlia, não que a queiramos comparar a uma vaca embora os franceses tenham a vaca que ri e as coisas possam complicar-se, ou confundir-se, voltamos a Júlia no sentido de observar o que faz ultrapassados o repúdio pela lesma e os tiros sobre Delfina. Vamos encontrá-la bebendo um cacau quente na cozinha da pensão Alegria do Chiado antes de deitar-se, banho tomado, pantufas, pijama de verão et negligé, quando vindo de volta tardia surge aparecido não se sabe de onde um tal Benvindo e que mal entrou, vendo-a pessimamente sentada, não se contendo lhe disse:

- Menina, perdoe-me mas isso não é posição para estar à mesa nem para estar sentada, ou devo dizer minha senhora?

Júlia virou a cara e olhou-o medindo-o dos pés à cabeça enquanto ele amenizava a entrada e se apresentava, Floriano Benvindo, enfermeiro de recuperação, às suas ordens, e que em boa verdade logrou a tranquilidade pretendida, ela acalmou o íntimo, perguntou se era hóspede novo ao que ele respondeu, novo sou mas já há umas seis ou sete semanas, tendo-se ela penitenciado por não ter dado por tal, a profissão sugá-la-ia, exigia-lhe muito, talvez demais, mais a mais estava na origem daquela posição estrambólica, a coluna toda torcida admitia, mas era o modo de sentir menos dores, estava mortinha por se deitar e tirar-se o peso de cima, de cima da coluna esclareça-se, tendo-se ele condoído, aproximado e, colocando-lhe as mãos sobre os ombros com os polegares apontados para nuca lhe perguntou:

- Posso?

e quando do posso já as suas mãos de fada ou de mago a massajavam ligeira e levemente, ela sentiu de repente o alívio, sorriu para dentro, depois para fora soltando uma gargalhada e:
- Isso faz mesmo efeito, e eu que não acreditava.

pelo que ele, deixe-se estar, solte-se não se contraia nem enerve, o stress retesa os músculos e ao fim do dia é natural que lhe doam, ela aliviada e agradecida tombou a cabeça sobre a mão dele, que deslocou as caricias para os cabelos que devagar devagarinho lhe afagou com os dedos em pente, a ponta dos ditos massajando-lhe o couro cabeludo, nada de admirar, enfermeiro de recuperação, digo fisioterapia, artista nas massagens, um perigo em certos dias, mormente em dias como hoje em que Júlia carrega consigo maior disposição para o abandono e está naqueles dias do mês que antecedem a tpm, logo mais receptiva, de espírito mais aberto à aceitação de novas experiências, daí a cabeça deixada cair não casualmente, não inadvertidamente mas premeditadamente, lubricamente, uma raposa cercando a presa, levando o Benvindo a ir, ou a vir, mas fazendo-o acreditar ter indo ou vindo pelo seu pé, quando não passou de uma marioneta que Júlia manobra através de fios invisíveis habilmente manipulados mais valeria que o pobre Benvindo quer vá quer venha se chame Roberto, Robertinho, como o teatrinho de fantoches em que ela o está a enfiar, a meter, a introduzir, não, nenhuma destas palavras pois carregam uma conotação fálica nada despicienda, vamos antes socorrer-nos de inserir, de qualquer modo ainda longe do vocabulário ideal mas mais profiláctico, o ideal será encontrar a palavra certa, a indicada, a precisa, precisa no sentido de perfeita, já que o vocabulário português é rico, riquíssimo de sinónimos, contudo tal qual no caso das chaves existirá uma para cada fechadura também agora existirá uma palavra mais atinada à situação e nesta seria avisado utilizar prioritariamente persuadir pois é disso que se trata, Júlia, jovem, madura mulher, sente o apelo da selva e tece pacientemente a sua teia, a teia onde ele jovem e maduro macho deixará de pensar e cairá, portanto trata-se de o persuadir a percorrer o caminho até ela, até à sua teia, e mais que apontar-lho, sugerir-lho por meio de gestos, atitudes, ações sub-reptícias, trejeitos em que as fêmeas são mestras e apuraram ao longo de milhares ou milhões de anos e que o cegarão até ser trespassado pela vontade delas, pelo desejo delas, tudo tão bem premeditado, conduzido, orquestrado e encenado que no final ele julgará que a trespassou a ela com o seu falo viril e desembestado, puro engano, ele nem viu a gigantesca estratégia que ela montara em seu redor envolvendo-o numa nuvem de feromonas as quais, de mãos dadas com as suas próprias hormonas o levaram ao cadafalso se cadafalso lhe podemos chamar, coisa tão boa pela qual todos suspiram e dão ais mas, voltando aos nossos pombinhos que brincam aos doentes e aos médicos, ou enfermeiros para o caso não interessa e nem pensem vir com conversa escusada um momento destes, um momento em que ela, matreira, diligenciará para que negligentemente o negligê lhe caia dos ombros deixando-os quase nus e ele possa livremente exercer o seu mister, a sua arte, e agora a cabeça que lhe tende para o outro lado enquanto solta uns suspiros, uns ais, é certeiro, não dissera eu? Ele embala, um suspiro daqueles é satisfação, é convite, não hesita nem teme, aquilo foi consentimento, encorajamento talvez, vai avançando cautelosamente, apalpando o terreno, medindo cada passo, não quer sair de terra firme, ela dá uma gargalhadinha e descontrai os braços, assim já ele poderá meter as mãos por baixo deles e chegar onde sabemos, ele contorce-se, o corpo cresce-lhe e já não lhe cabe onde o guardava, debruça-se sobre ela, beija-lhe os cabelos, sem o saber inspira-lhe profundamente as feromonas, bichinhos invisíveis que as fêmeas soltam aos milhões e se nos apoderam do cérebro, tomam conta da razão e adoram altas velocidades, ruboriza e sente-o, são as hormonas aos saltos mas nem ele Benvindo enfermeiro experiente agora dá por isso, ou dá mas não está capaz de somar dois mais dois, ela ergue-se, ele acompanha as linhas do seu corpo dos ombros às ancas, demora-se mas não pára na cintura fina para que ela sinta quanto ele aprecia a sua beleza, é esbelta Júlia, mas apressemo-nos e deixemos isso agora pois já as mãos dele sobem sequiosas aos sovacos, dali para o peito, puxa-a para si sopesando-lhe os seios, arfando hirtos, os biquinhos que ele tacteia com quanto carinho lhe é possível e o momento lhe consente porque um turbilhão tomou conta deles que se viram um para o outro que se abraçam que se beijam, tombam a cadeira em que ela se sentara, avançando para os quartos tal qual um caranguejo que anda aos tropeções, ou de arrecuas, ou de lado, deixemos a natureza cumprir o seu papel, centrem a fita, entreacto, desce o pano, é hora de fazermos um intervalo, de desentorpecermos as pernas, ir ao bar beber uma mini com umas pevides, fumar um cigarro ou beber uma bica, dois dedos de conversa, descer aos lavabos e dar uma mijinha antes de embarcar na segunda parte em que a cena abre sempre e simplesmente como é sabido de todos, os dois debaixo de um alvo lençol braços de fora, fumando um cigarro e desenroscando lentamente conversa cautelosa e ternurenta.

- De onde és tu meu lindo e querido garanhão? De onde apareceste Apolo?

- Sou Alentejano de Monsaraz, nasci naquela vilazinha bonitinha que breve ficará rodeada de mar, das águas de Alqueva, mas vivi e estudei a maior parte da vida em Évora, e tu minha princesa, ou devo chamar-te Deusa?

- Sim sim bem sei estive lá há uns meses, meses largos, talvez anos, e já se falava nisso mas da varanda onde almoçámos só se divisavam terras de Espanha e no meio a ribeira da Guadiana, é Guadiana não é?

- Sim é, mas é ele, o Guadiana, é um rio que ali faz fronteira entre o Alentejo e Espanha.

- Então és alentejano, és daqueles que cavam sentados porque deitados já experimentaram e não lhes deu jeito nenhum, tá bem mas olha que não lhe ouvi chamar outra coisa que não a Guadiana, ainda não estou zuca.

- Sim mais ou menos isso, os alentejanos granjearam uma injusta forma de insolência e de preguiça que não é merecida, e têm as costas largas para anedotas claro, são o bobo da festa neste país, mas não são mais parvos que os outros, nem mais espertos, as coisas têm explicação e razões históricas.

- Então conta lá como é isso que eu sou pequenina, contas-mi Benvindo?

- Não tem muito que contar, e a nossa história explica mais ou menos razoavelmente essa parte, o nascer da nacionalidade, a reconquista…

- Mas eu não conheço a vossa história amor, eu aprendi a história francesa que mais parecia uma colectânea das aventuras de Asterix querido.

- Olha assim sendo o melhor é começar pelo principio e dizer-te de uma assentada que este é um chão que já deu azeitonas a celtas, iberos, celtiberos, visigodos, alanos, cónios, lusitanos, romanos, e a árabes. Este nosso povo, esta salada de cruzamentos étnico-identitários, é este o povo português.

- Bolas Benvindo, por pouco não ias até aos australopitecos !

- Acredita que estiveram cá esses também, temos muitos exemplos aqui no Alentejo, antas, menires, alinhamentos megalíticos, mercadores gregos e fenícios estiveram também aqui, por isso bem se pode dizer que o nosso sangue carrega uma herança genética antiquíssima, variada e extraordinária.

- O sangue alentejano a património da humanidade já Benvindo !

- Não gozes, não brinques com coisas sérias, só te quis demonstrar que o caracter alentejano radica ou assenta numa pluralidade de raças, somos uma miscelânea, temos um ADN tutti fruti, colorido.

- Ah ah ah ah acho-te graça, gosto de te ver assim solto e brincalhão, e sangue é contigo, tenho que ter cuidado ou sugas o meu, e com essa pronúncia mais parece que cantas.

- Não vás mais longe pois acabaste de me lembrar d’outro nosso pormenor característico, o cantar, o cante, que é uma…

- Ó querido agora não por favor, não morro de amores pelo cante, aliás detesto o carácter tímido, intimista e fechado do cante. Na realidade o cante é tudo que eu não sou, daí que nem reconheça o seu valor nem me identifique minimamente com o fenómeno amor. O cante é lamúria, queixume, é submissão, é aceitação, o cante não passa disso querido.

- Ninguém é obrigado a gostar, é preciso perceber o cante, deixa que te esclareça pois o cante coexistiu sempre com outros géneros dele mesmo, talvez derivado de tanta raça que por aqui passou, havendo também outras adaptações mais actuais feitas entre nós.

- Ó filho o cante tem uma característica repetitiva e um andamento lento e pejado de tantas pausas que o caracterizam e identificam e carrega uma natureza monótona que detesto e me aborrece ouvir por isso cala-te.

- Upa ! Captaste bem a coisa, é precisamente isso que é exclusivo e peculiar ao cante, na essência o cante é sobretudo testemunho e tradição, e sendo tradição é memória, e sendo memória é testemunho, e sendo testemunho é história, e a história faz-se com fontes, de que o cante é ampla e vera prova, o cante é transmissão do sentir do povo alentejano desde muito antes da reconquista cristã havendo quem o ligue primordialmente à proverbial indolência dos árabes que daqui corremos. 

- Olha Benvindo, não te esforces por pintar a coisa com cores garridas porque o teu querido cante não é mais que um lamento e não é muito mais que isso, não passa duma mera cantata nostálgica, quando muito o cante é sentimento e até admito que o cante seja parte da geografia peninsular, que seja alvo de estudo da sociologia, da psicologia, economia, ou da história. Mas se revirarmos ligeiramente o prisma e observarmos a questão de outros ângulos ou perspectivas o teu cantezinho há-de ter os seus defeitozinhos.

- Pois bem então deixa-me explicar-te ó Astérixa que com a reconquista cristã as vastas terras ou herdades dadas geraram grandes, extensas e vastas propriedades, como as que pelo Alentejo abundam e tão contestadas foram, são e serão enquanto sobre elas não se fizer justiça. Por isso o cante é sobretudo o sentir deste povo que sempre foi subjugado à terra e aos senhores dela, um povo que sempre foi um servo da gleba.

- Estás a ajudar-me ó cantorzinho de meia tijela, se sempre foi um povo escravo e se encontrou no lamento que o cante expia a fórmula para a sublimação da sua raiva e submissão, o cante mais não é que a expressão dessa frustração e da dor do seu martírio, da sua exploração, do seu jugo e dessa aceitação calada e conformada, e voltamos ao que eu dissera, é um acanhamento cobarde, não passa de um lamento, nunca um grito.

- Nesse item dou-te razão ó francesinha, o cante não é nenhum hino à luta, o cante não é protesto, o cante é sim o testemunho de muito mais que oitocentos anos de sofrimento. Este nosso cante é sinónimo de solidariedade na resignação, não é nem nunca foi nem pretendeu ser um grito de Ipiranga.

- Olha meu rouxinol faduncho, esse cantar tautológico que tu tanto defendes não passa do ideal de subjugação que o capitalismo tanto terá idealizado, que sempre apreciou quando o apanhou e com que sempre sonhou, talvez por isso no Alentejo não sejam capazes de modificar a situação, talvez nunca tenham lutado por outros objectivos com o fervor necessário e mínimo, talvez nunca tenham sido solidários uns para os outros.  

- No que toca a esses aspectos não toco, preferia deixar para outra ocasião, amanhã enrego cedo e gostava de dormir ainda um par de horas pelo menos.

- Interessante isso, toda essa história, e explica muita coisa pois vocês não primam pela inteligência Benvindo, não concordas xuxu?

- Não concordo nem deixo de concordar, não somos diferentes dos minhotos, ou dos algarvios, nem dos alfacinhas meu docinho de chocolate negro.

- Pois, mas não me referia aos portugueses em geral se bem que não os exclua, referia-me sobretudo aos alentejanos, ou não são vocês a região mais atrasada do país?

- Sim isso é verdade mas há razões históricas percebes?

- Percebo é que estás a fugir com o cú à seringa isso é que percebo, lá vens com a mesma tanga de há dez minutos atrás, razões históricas, a mim mais me parecem desculpas, vocês são é uns grandes individualistas, com gente como vocês nunca os franceses teriam feito a revolução de 1789 nem na Rússia a de 1917, vocês alentejanos, os alentejanos e todos os portugueses, não têm sentido de coesão, de pertença, de unidade, a não ser à volta de um clube ou dum partido, tristeza.

- Et vive La France, lá porque vocês fizeram a revolução francesa agora pensam-se o farol do mundo? Vocês tiveram a de 1789 e nós tivemos a do 25 de Abril.

- Não tergiverses nem desconverses Benvindo que eu bem tenho visto querido, vocês julgam-se mais espertos que todos, mais inteligentes que todos, mas lá bem no fundo têm um prazer secreto em praticar aquilo que eu chamo o culto do inútil, muito barulho para nada, mudar tudo para que tudo fique na mesma, como o Leopardo, são mestres nisso, e quanto a revoluções a nossa perdurou porque cortámos a cabeça à nobreza, nem as senhoras escaparam, foram comer brioches para o caralho enquanto vocês, bonzinhos, só cravos e cravinhos, não vai demorar que da revolução até o espírito vá para o caralhinho, vai uma aposta?

Benvindo desejou momentaneamente que a conversa tomasse outro rumo, não queria discutir com Júlia, conhecia-a há pouco tempo, não desejava estragar o momento nem a amizade, nem o futuro, mas não se sentia à vontade com o rumo que a conversa tomara, nem com a linguagem que ela adoptara, nem a política nem os palavrões eram a sua praia pelo que se foi contendo e forçando outro rumo e outros temas ou assuntos, para um primeiro encontro ela comportava-se como se se conhecessem há muito, mas ele era mais lento a derrubar as próprias reservas pelo que se limitou a:

- Não aposto coisa nenhuma, não sou jogador nem tenho jogo escondido nem sei onde te baseias tu para teres tantas certezas, ou contaram-te alguma coisa que não me tenham contado a mim?

- Não te irrites Benvindinho, não te irrites pois como vocês dizem a vida são dois dias e o carnaval são três, mas vou dar-te dois exemplos fresquinhos e que colhi esta semana durante uma reportagem que fizemos ao coração do teu Alentejo, e profundo ou não, a verdade é que estivemos numa terrinha onde alguém se lembrou de construir uma biblioteca quase igual à de Alexandria sem ter reparado que não tinha leitores, população leitora, pessoas com hábitos de leitura, é uma realidade quase tão inverosímil quão outra contada acerca duma outra terrinha que atravessámos ao regressar e onde segundo reza uma história mirabolante alguém terá plantado sardinhas de cabeça para baixo na esperança que nascessem carapaus de cabeça para cima. Claro que depois o dinheiro não chegou para faraónica biblioteca, faraónica e inútil, e as obras ficaram a meio, ainda lá deve estar o mamarracho, a que não sabem agora o que fazer pois nem ganham para o manter, insólito ou não meu querido Benvindo? É ou não é isto amar o inútil querido?

- Um caso pontual, uma excepção que não faz uma regra, não contesto, é verdade infelizmente, nada mais tenho a dizer, é lamentável mas acontece, aconteceu.

- Um caso pontual? Ainda que insuficiente para validar uma regra é contudo demonstrativo do atraso que subjaz no Alentejo profundo como alguns lhe chamam, e as dezenas de estádios do Euro 2004 agora às moscas para os quais não há dinheiro nem para a manutenção? Mas nem é preciso estar no Alentejo para constatar a inutilidade das coisas, perdi a conta às muitas associações, colectividades, instituições e entidades que existem por existir, que não acrescentam nada ao nada que já fazem, que passam a vida a discutir o sexo dos anjos e de onde não passam, quando muito empatam, parasitam, vivem de subsídios, subsídios de câmaras e de outras origens, consomem, gastam, não produzem nada, nada acrescentam à economia, não criam riqueza nem postos de trabalho e tu falas-me em casos pontuais menino? Onde viveste tu, na lua? Ou não costumas sair à rua? O atraso do país, atraso em que o Alentejo leva a palma não é pontual nem casual, é natural, persistente e envolve quase todos os autarcas, decididamente a inteligência não é cena que vos assista, não é a vossa praia, não é a vossa onda.

- É preciso calma, o país emergiu de um atraso muito significativo, Roma e Pavia não se fizeram num dia.

- Benvindo! Passaram-se quase trinta anos amigo! Quase trinta anos em que não se fez nada! Bem… nada, talvez seja um exagero, também soube durante essa viagem que pretendem candidatar essa tal terra e os seus fantasmas a património imaterial da humanidade, qualquer coisa ligada ao transcendente, aos cultos Endovélico da pré-história, e lá está, mais uma inutilidade, primeiro que tudo e antes de mais nada está o inútil, o que pouco ou nada acrescenta ao pouco nada que existe, nada de riqueza, nada de produtos, nada de empregos, nada que se apalpe nada que se veja, diz-me lá se não é isto a adoração dos magos, dos reis magos, do inútil, em que o inútil aparece sempre primeiro?

- Atrairá turistas, ficarão para almoçar ou jantar, talvez dormir, beber uns vinhos, temos dos melhores, algum aspecto positivo há-de daí advir.

- Eu não contesto isso Benvindo, mas foco a dimensão, a pequenez da coisa, limitada, redutora, é pouco, muito pouco, entretanto o Alentejo despovoa-se, vão-se todos embora, até porque nem todos ambicionarão lavar pratos, servir às mesas ou mudar os lençóis às camas, porque poucas mais oportunidades lhes serão oferecidas por essa dinâmica, e é preciso planear as coisas, quantifica-las avaliá-las, ver se valem a pena, qual o seu objectivo, alcance, e observar se foi atingido, alcançado, se falhou, o que falhou, se vai continuar a insistir-se ou abandonar-se a ideia, capice?

- Capice coisa nenhuma, as coisas complementam-se, a barragem encherá a trará actividades e visitantes, é preciso distraí-los, essa candidatura a património imaterial insere-se nesse espirito, até os amantes do oculto têm que ser aliciados, todos os que vierem por bem serão bem-vindos, tudo que vier à rede é peixe, quer parecer-me que és daquelas pessoas que olham para um copo meio de água e o vêem meio vazio, eu olho para ele e vejo-o meio cheio, é só isso, é preciso dar tempo ao tempo, dar tempo às coisas.

- Olha meu lindo, inadvertidamente estás a dar-me razão, e chega para lá os pés ou vê se cortas as unhas, estás a arranhar-me, tempo, passaram trinta anos e queres mais tempo, tu e os alentejanos são mesmo lentos, e dar tempo às coisas, a barragem encherá-se e trará actividades e gentes, pois…

- Encher-se-á, a barragem encher-se-á.

 - Pois isso, encher-se-á, o português não é o meu forte desculpa, e em frente que atrás vem gente como diria a minha amiga Paula Duarte ou a Luna, já nem recordo.

- Nem o francês o meu.

em frente que atrás vem gente meu querido e continuando, vou contar-te uma coisa que se passou há dias na redacção ao estudar-se um novo artigo ou reportagem a plasmar no caderno de economia, nem sei se já terá saído se não mas a coisa era esta, analisámos a legislação que regula o perímetro do grande lago, é assim que vocês gostam que lhe chamem, e das duas uma, ou toda aquela legislação foi feita para amigos ou não vai deixar fazer coisa nenhuma, a exagerada dimensão exigida aos projectos que desejem instalar-se nas margens da barragem ou foi feita de encomenda para alguém e travar todos os outros ou não vai servir para nada, dar tempo às coisas dizias tu, dá tempo a isto e vamos a ver se tenho ou não tenho razão, tenho cá para mim que tanta água irá servir para bem pouco.

- Pois eu acho que tens uma visão muito cínica das coisas e das pessoas Júlia, existe por trás dessa tua candura um cinismo que te fica mal, acho que vales pelo que vales sem necessidade de exibição desse cinismo cabotino, o cabotinismo desvirtua-te, devias ser mais contida, usar mais de reserva quando falas, não só usares mas obrigares-te a uma certa reserva e contenção antes de mandares os demais abaixo.

- Benvindo descuidaste-te, a conversa não está a agradar-te e tu descuidaste-te meu grande porcalhão! Acabou aqui a conversa! Porco!

- Juro que não! Não sou desses! Nem que tivesse maior confiança contigo o faria! Juro que não!

- Olha que não sei, pareceu-me, então não sei o que foi, o que terá sido, também não sou como me julgas, julguei-te mais aberto e abri mais o jogo, a conversa, de qualquer modo penso como penso, eu que faço a cobertura de imensos eventos reparo depois que não dão em nada, os alentejanos são inconsequentes, tanto workshop, tanto isto e aquilo que parece que tudo mexe e vai-se a ver depois fica tudo em águas de bacalhau e nicles batatóides, tudo na mesma como a lesma, mas enfim não quero adiantar-me mais, gostei de estar contigo, és mesmo um tipo Benvindo, sejas bem-vindo então e esquece o barro que atirámos à parede, temos que nos ir vendo de vez em quando, és bom tipo e um cavalheiro, e eu tenho que ir tomar outro banho e tentar dormir que amanhã começo cedo a bulir.

- Por mim está bem, mas eu sou enfermeiro, naturalmente não gosto de algumas coisas que vejo, gosto de outras, mas não sou repórter, não me cabe andar a agitar questões, a arvorar bandeiras, acredito que as pessoas façam o melhor que possam, eu faço, faço e esforço-me por fazer, todos os dias e é nisso que creio, no trabalho e se todos trabalharmos para o mesmo melhor será, todos a puxar para o mesmo lado. 

- Pois, eu é que sou burra, olha, paz contigo e boa vontade entre os homens, não foi o que Deus disse? Não me peçam mais que isso, não dou a outra face, aliás nesse ponto estou em completo descordo contigo, porque o povinho lamenta enquanto o chefe gasta o tempo com a puta, mais de trinta anos se passaram e o país pouco andou, é pouca coisa para tanto tempo, muita camioneta para tão pouca areia, e dizes tu que são inteligentes, os alentejanos? Nem os alentejanos nem os portugueses, votam em gente que não faz nada e quatro anos depois voltam a votar e a eleger os mesmos, compensa não fazer nada, ou para quê fazer alguma coisa? Porque não correm com uns para experimentarem outros até acertarem em coisa melhor? E a burra sou eu? Por este andar o que vocês qualquer dia vão querer será um aeroporto em Beja ou um Tgv …

Em defesa de Júlia teremos que acorrer nós que a conhecemos melhor que Benvindo e não poderemos permitir que seja julgada por uns minutos de espontaneidade e abertura concedida numa curta conversa de alcova, sabemo-la uma pessoal culta, bem informada, seria injusto que uns minutos de felicidade soltando-lhe a língua uma vez sem exemplo sirvam de bitola para que lhe fixemos o carácter, palavrosa sim, talvez excessiva, continua porém uma pessoa com princípios, partilhando uma moral sólida, sendo coerente e consequente, perdoemos-lhe portanto um momento de desvario ou loucura e rezemos para que Benvindo tenha para com ela a mesma tolerância e compreensão a que acabámos de apelar.

É certo que se observada à luz da educação religiosa dos seus primeiros anos de ensino nos pareça destoar o seu actual palavreado, não devemos todavia esquecer ter a sua formação académica sido conseguida com louvor, tendo tido sempre a seu lado MM, pai e amigo, homem de muitas perguntas e ainda mais respostas, sempre presente ao lado de Júlia como nunca terá estado o seu mais próximo e chegado amigo ou colega, era pois com o pai que Júlia esclarecia as dúvidas sobre o mundo, o pai era o seu herói, por sua vez ela era a rainha dele.

Benvindo abandonou agastado a cama e o quarto de Júlia, gostava de pensar mas não era tipo para polémicas, muito menos para as alimentar e o fim daquele primeiro encontro íntimo com Júlia arrastava um sabor amargo, fora esse facto tinha sido um bom momento e ela uma companheira ternurenta, carinhosa e atenciosa, o que mais fundo cavava o fosso abrindo-se e que ele não queria aberto.

Da prática como professora ficara-lhe um tique perfeccionista e maternalista raras vezes aflorando mas de que Júlia se apercebia, esse perfeccionismo estava agora azedando as relações com Benvindo. Qualquer profissão arrasta consigo os calos do ofício e isso estava a manchar-lhe as rotinas, até a nível de trabalho Júlia não conseguia distinguir entre polémicas e polemistas quando terçava armas na redacção com os amigos e neste caso companheiros, colegas, continuando com eles esgrimindo argumentos, polemizando questões, erradamente disseminando a dissensão entre as suas relações, quando ao invés era a luz que na redacção se almejava alcançar. Diríamos padecer Júlia de um defeito de percepção, outros menos tolerantes, ter-lhe-ão chamado já certamente estúpida ou burra. Esperemos que o Senhor e nós todos lhe perdoemos os exageros e arquivemos o perfeccionismo como doença ou tique profissional, caso encerrado.

Benvindo não aparecera hoje aqui, aliás ali, na pensão Alegria ao Chiado, onde caíra assim sem mais nem menos por um golpe de sorte ou de azar nos braços de Júlia. Há bem mais de um mês que a media de alto a baixo, fosse na cozinha fosse na sala mas de um modo disfarçado, cortês, sub-reptício, educado, analisava-a quanto podia e quando podia pois a presença dela era inconstante e irregular, a profissão assim lho impunha, fora aliás a sua cara, conhecida e reconhecida pelos leitores e telespectadores a primeira coisa a chamar nele a atenção para ela.

Meandros da enfermagem tinham-no habituado à sua dose de psicologia e psicanálise, dito isto digamos também que ter ido com ela para a cama não terá passado de um risco calculado, Benvindo traçara-lhe há muito o perfil e sabia tratar-se de uma daquelas mulheres impossíveis de conquistar ou de ter, antes se aceitam, porque só se dão a quem querem, escolhem ou elegem, Benvindo conhecia-lhe a irreverência, os caprichos, por isso se sentia grato e feliz quando se sentiu ungido por ela deixando-se levar ao ponto, deixado que ela conduzisse as coisas, permitira-lhe gozar daquela sensação de poder que caso ele desfizesse ou contrariasse deitaria tudo por terra, por isso após coiso e tal, deitados lado a lado, aguentou-lhe as investidas e manteve sempre a dose certa de bonomia, suficiente e ideal para não a irritar, para não estragar as coisas, cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.


capitulo XV 



Deixemos agora em paz Júlia e Benvindo, o tal natural das Terras D’El-Rei, mais especificamente da medieval vila de Monsaraz de d’onde seu pai partira em direcção a Lisboa para aprender um ofício, e aprendeu, tornou-se mestre de sucesso e dono dum pequeno negócio de pichelaria para depois regressar de novo à terra natal o tempo suficiente para convidar Julieta a vir e com ele mergulhar no futuro, pois tinha a situação garantida e o que não faltava em Lisboa eram empreitadas, Julieta anuiu, pediu tempo para pensar, preparar a família e preparar-se a ela mesma, só lhe falharam as contas quanto a Benvindo, que por ser de sete mesinhos não nasceu na capital mas ainda em Monsaraz, numa casa frente à igreja de Nossa Senhora da Lagoa e que por isso diz sua mãe ter sido e ser abençoado, um painel de azulejos com a santa no frontispício da igreja matriz foi imagem que Julieta fixou enquanto o paria e que a tornaria devota dessa santa, ele há coisas levadas da breca, quem diria.

E olhando esse nicho que alberga a santa estavam, numa manhã raiada de sol, de braço dado, mão na mão, ombro com ombro e encostando as cabeças, embevecidos, diríamos que apaixonados não fosse dar-se o caso de paixões arrebatarem muito menos gente madura, o que não quer dizer que as gentes maduras não amem e não se apaixonem, claro que sim, mas com mais calma e menor impetuosidade, com mais ou durante mais tempo e menos desvario, com mais certezas e menos experimentações ou experiências, com o mesmo amor decerto, com a mesma paixão inda que menos ardente, ou menos vistosa, menos impetuosa, menos imperiosa. Estavam nisto costas voltadas à casa onde nascera Benvindo, que nem conhecem nem tão pouco sabem da existência, a vida é feita assim, de pequenos nadas cujas órbitas se cruzam porque como diria a minha amiga Leonarda isto anda tudo ligado e não há volta a dar-lhe digo eu que olho o guião e diviso já ali adiante um capítulo a que dei o título “d’eles e Benvindo”, ou “eles e Benvindo”, eles MM e Delfina, se bem que por enquanto não tenha o título mais subtítulos, indiciando este ou encontrar-se em branco, ou mera possibilidade a explorar, pois em potência todos os aspectos ou muitos aspectos são passiveis de exploração que preencha o capítulo em causa, essencial é que a verdade da narrativa evolua sem falha, e seja ela preenchida por verdades verdadeiras ou por ficção bem ficcionada. O leitor não é parvo e porá na borda do prato o que não lhe agradar pelo que, até a ficção terá que ser bem elaborada e plausível sob pena de se tornar irrelevante aos olhos de quem a lê e o livro colocado de lado, de parte, o que de todo não desejamos, nem eu, narrador, autor, nem certamente o leitor, portanto juizinho e atenção ao trabalhinho e muita atenção às coincidências demasiado coincidentes e às evidências evidentes em demasia, arte e subtileza terão que andar de mãos juntas se queremos contar uma boa história ou até vencer um concurso, hoje, são-nos exigidos a todos competências extra e no presente caso passam até pela música, há que construir um texto, um parágrafo, uma frase, cada um deles com uma dicção, uma sonoridade, uma musicalidade que não se enrole na boca, que flua suave e levemente, agradável ao ouvido e correndo como água límpida em regato oleado por lismos que ajudem a marcha do caudal, escrever tem que ser também isto, quase como a arte do picheleiro, onde os canos não entupam nem atrapalhem mas cumpram eficientemente a sua função, por isso, ou por isto, não me digam portanto que não anda tudo ligado, porque anda.

- Com um clima destes e tanta água bem podem rir-se da Europa, desde praias lacustres à exportação de primícias, isto vai dar para tudo, daqui a meia dúzia de anos vai ultrapassar o Lago Le Mans em tudo e em mais meia dúzia de anos terá condições turísticas para ultrapassar Genève, que dizes querido?

- Digo que é um espelho de água fabuloso mas a julgar pelo que já ouvi à Júlia ninguém vai conseguir fazer aqui nada, ou ninguém ou só alguém, parece que a legislação reguladora do perímetro da barragem é um absurdo.

Olhando a barragem enquanto comiam um ensopado de cabrito na varanda de um restaurante a quem o grande lago de um dia para o outro enchera de clientes, Delfina parlava antevendo o futuro possível, e MM respondia-lhe como a experiência do passado, ambos tendo razão, porém ter razão não é suficiente, de acordo com Delfina não se poderá negar encerrar aquela barragem potencialidades senão ilimitadas no mínimo imensas, todavia dando de barato razão a MM teremos que admitir nunca este povo, esta nação, ter tido unhas para tocar viola senão no tempo das descobertas, pelo que não custa admitir que tendo Delfina razão, não venha essa razão a concretizar-se, dando de imediato razão ao descrédito e pessimismo de MM, aliás baseado em provas dadas e colhidas, a burocracia tolhe-nos, alimentamo-la e ela alimenta-se por sua vez de nós, é o faz que faz sem fazer, é o mexe mexe sem mexer, é o discurso palavroso mas inconsequente, é o ter a bola na mão sem saber que fazer dela, ou com ela.

É este impasse que o Alentejo vive, o Alentejo e o país, em potência tudo é possível, na prática nada se faz, e o facto de um único investidor ter desistido de um só e único projecto nas margens de Alqueva, um mega projecto chamemos-lhe assim, veio dar toda a razão a Júlia e a MM quando dissertaram sobre a legislação aprovada que não se destinaria a ninguém mas a alguém, e pelos vistos até para esse alguém tão restritiva legislação não terá sido suficiente. Talvez para compensar alguém apareça a vender gelados num tuk-tuk, ou amendoins e castanhas assadas, e pirolitos, fava-frita, pevides. Nós somos assim.

Mas afinal para que fizeram o 25 de Abril MM, se dantes estavam presos a interesses que os manietavam e agora estão manietados por interesses? Afinal que mudou? A cara dos interesseiros? A cara, a cor? E o povo pá? Quem foi que disse que o povo era quem mais ordenava pá?

E os remoques de um e de outro iam-nos aos poucos arrancando das suas irredutíveis posições e acompanhando-os nas contradições e absurdos que cada uma dessas posições encerrava reconciliando-os consigo mesmos, um com o outro, e sobretudo com a razão, com a lógica, com a verdade. Delfina, democrata, liberal, admiradora do simpático que se enamorara e tivera por uma francesa uma paixão platónica, descobria aos poucos que ele não era o santo que lhe parecera nem flor que se cheirasse, pelo contrário MM ia-se apercebendo da deriva nada democrática que esta democracia aos poucos tomava e não raras vezes via-se confrontado com o “dantes é que era bom” a que contrariado tinha que ceder alguma razão, contrariado, revoltado e indignado.

Em boa verdade e no que à terra concerne, MM, alentejano nado e criado no Alentejo, aqui explorado e aqui tendo sofrido ou penado as passinhas do Algarve, não raras vezes se interrogava, não tendo sido desta então quando, quando seria que a dança das terras terminaria, e olhando para o lago infinito que agora se enchia lembrava as voltas e reviravoltas que a terra dera desde que abalara, as giga jogas que a terra sofrera desde o 25 de Abril, ora se ocupavam as terras ora se devolviam, ora se ocupavam ora a guarda as desocupava à cachaporrada, ora são roubadas ora são devolvidas, e era um mar de lágrimas ver tanta terra em bolandas, as mais das vezes sem uso, sem uma legislação capaz e definitiva, tanta terra que dá dó dela não tirar proveito e vir a maioria dos produtos dela, terra, de Espanha e donde calhasse menos delas, dessas terras de ninguém que todavia a alguém davam proveito, e se a outros não fosse daria aos políticos que dela não se cansavam nunca de encher a boca, de gabar-lhe as potencialidades de gabarem e aumentarem, ou de lamentarem as potencialidades perdidas, ou desaproveitadas, o que faziam há trinta anos sem que a terra desse um cêntimo que se visse e quanto à posse seria caso idêntico ao da vaca do advogado ou da carraça do médico, e, para os que não conheçam a história vo-la conto brevemente pois desavindo-se dois vizinhos por causa de uma vaca que era de um, mas pastava nas terras de outro e não chegando à conclusão de quem era por isso a vaca, afinal sem o saberem calharam a contratar para cada um deles o mesmo advogado, pois o filho do causídico, por sua vez estagiário de direito e passando as manhãs de aprendizagem no escritório do pai, lhe perguntou uma vez confrontando-o com a sua ambiguidade, sua dele, advogado:

- Meu pai, afinal de quem é a vaca, ao que o pai terá respondido; nossa meu filho, a vaca é nossa, então não se está mesmo a ver de quem ela é?

Com a carraça e o médico a história é do mesmo jaez e não vos vou aborrecer com ela, e quanto às terras prenhes de potencialidades, as terras de ninguém, são dos partidos, são dos políticos, tal qual a vaca é do médico e a carraça do advogado, ou vice-versa, uma coisa é certa, quanto mais potencialidades mais gente deserta, primeiro para as cidades e depois para a estranja. Mas estão cheias de potencialidades essas terras que ocupam um terço do território nacional e um vigésimo da população, e tão excelsas de maravilhas custa-nos crer neste acentuado e implacável despovoamento que se vai notando, quási indetectável, subterrâneo, mas imparável. É isto gerir um país? É isto criar condições para ficar, para fixar gentes? Mui justamente MM tinha cada vez menos certezas e mais dúvidas, as quais contrariado “choramingava” junto de Delfina, que o ouvia.

- Isto vai mas vai a custo Delfina, são muito anos amor, demasiados anos, e eu acabarei por sucumbir, mais cedo ou mais tarde ir-me-ei abaixo, é demais para mim, é demais para a minha idade.

Isto balbuciava MM cabisbaixo, melhor dizer confidenciava, dado o lugar e o momento em que a conversa tinha lugar, já sabemos que não estavam fumando por ter ficado dito e redito nenhum deles ser fumador, porém muitos os faziam naquela pausa de descanso e feliz consolação após coiso e tal, não vou repetir-me nem explicar-me pois já toda a gente entendeu que eles coiso e agora estiravam-se na cama, lençol dos pés à cabeça, ou quase, e meditabundos meditavam nas peripécias passadas presentes e futuras deste país onde já tinham visto tudo e o seu contrário, em que MM já não acreditava, ao qual nem augurava bom futuro, vividas todas as experiências mesmo as que julgava nunca vir a ter vivido e ciente que um país que tomou no freio a ira da irresponsabilidade e da incompetência jamais irá longe, sobretudo se como o nosso fica refém de interesses vários, quantas vezes contraditórios mas que depois de abocanharem não largam, enquanto o povo se escalfa, escalpelizado por um sistema fiscal implacável, demolidor e desumano, e em que até a legislação produzida se conjuga para apesar das tentativas Simplex, ser cada vez mais difícil senão impossível que alguém consiga, ou como no caso dele MM, reúna resiliência suficiente para não sucumbir perante tanta burocracia, tanta demora, tanta licença, tanto parecer, tanto estudo, tanta imposição, tanta impossibilidade, restava-lhe gozar os dias que ainda lhe restavam, gozar o sol, os horizontes largos deste Alentejo, gozar o capital reunido, o sonante porque qualquer outro aqui de nada valerá, como terá dito uma vez ironicamente Vergílio Ferreira num seu romance, no Alentejo nem menos de quatrocentos porcos nem mais que a quarta classe…

- Sabes MM, o mal desta gente é que para além de estarem atrasados trinta anos da Europa, trinta ou mais, só olham para eles mesmos e para os seus umbigos, nunca se avaliam ou comparam com o mundo a seu lado, os alentejanos, e quando digo os alentejanos digo os portugueses são um tudo-nada tolinhos, parvinhos, se me entendes, o olhar só lhes alcança a própria rua, o bairro, a vila a aldeia, a cidade, o país, pequenino, mal-amado e mal pensado, nem no Alentejo de largos espaços têm horizontes largos, esta gente pensa pequenino, pensa no âmbito de uma paróquia, na amplitude de uma freguesia, sabe o que se passa em Sidney, em Toronto e em Caracas mas ignora o que se passa nas suas cidades, no seu próprio país, e sobretudo ignorante, duma ignorância larvar que os prende à terra como a maçã prende a lagarta, não, nunca irão longe, os romanos tinham razão, nem se governam nem deixam que os governem, uma tristeza, sim, tens razão.

A verdade é que MM somava razões onde alicerçar a sua desilusão, sabemos ter visitado uma vez Portugal quase uma década após a revolução e sabemos ter voltado a França decidido a fixar-se definitivamente entre nós mal amanhasse a situação de modo a juntar a reforma ao pecúlio oferecido pelo governo francês a quem quisesse reformar-se e voltar à terra natal, assim fizera MM e, regressado e vivida a experiência desse regresso, afogava agora o seu arrependimento no corpo quente e acolhedor de Delfina Marchand que o visitava sempre que lhe era possível, com quem talvez viesse a viver os seus últimos dias mas que por enquanto não podia ainda reformar-se, era nova demais para isso, nem a aposentação era coisa que desejasse ou estivesse nos seus horizontes.

Agradavam-lhe estas semanas aleatórias que passava com MM sempre que podia, agradavam-lhe os seus modos de macho latino, a sua ternura violenta, o seu carinho excessivo, a impetuosidade contida que lhe dedicava, o desejo primário que por ela demonstrava desde o primeiro dia em que tinham ido para a cama, apreciava a companhia dele, a conversa dele, apreciava os anos durante os quais MM sempre a fizera sentir-se mulher, sentir-se amada, sentir-se bem, sentir-se ela, ainda que nunca lhe tivesse oferecido um perfume nem tão pouco feito qualquer um a ela dedicado e nela inspirado, admirava sobretudo o dom da sua presença, tudo isso e a calma que MM nela induzia tinham-se mostrado mais duradoiros e mais persistentes c’a mais bela essência, e essa era na realidade a essência ou o segredo, o mistério da sua ligação a esse homem duro de coração mole, lamentando-se agora no seu regaço como uma criança que vem fugida da rua e se acoita no regaço da mãe tornado um ventre onde se regressa, um lugar seguro.

  
XVI     

          
Em abono da verdade é forçoso que esclareçamos que razões seriam essas que tanto abalo causariam a MM, tanto o transtornariam a ponto de o terem levado a arrepender-se por ter abandonado a sua França a fim de se fixar entre nós. Parece-me tratar-se de caso suficientemente grave e a exigir explicação ao leitor e satisfação às nossas consciências pequeno burguesas e demasiado entretidas com os nossos próprios umbigos. Devemo-lo a MM e a nós mesmos, portanto toca a dissecar as dores de um homem duro e que precisamente por isso serão dores a ter em consideração e a manusear com respeito. 

Ao regressar para se fixar MM optara pela sua aldeia natal, ali fora feliz com Perfeita da Anunciação que jamais esquecera e jamais esqueceria, ali vivera uma juventude que lhe parecera ter durado um século, ali aprendera, quantas vezes pela negativa, os rudimentos da justiça, do direito e da democracia, dali partira disposto a enfrentar e a emendar o mundo, mas sobretudo ali tinha as gentes conhecidas, os amigos de há décadas, ali tinha as suas raízes, conhecia as estradas, os caminhos, as veredas, os campos, a geografia.

As vastas terras que haviam pertencido à casa agrícola engenheiro Ludovico Martins Perdigão, entre Barrancos e Baleizão, tinham sido ocupadas por cinco unidades colectivas de produção, das quais uma falira cedíssimo, tendo essas terras sido abocanhadas pelas que com elas faziam fronteira, berma ou extrema. Uma outra fora objecto de acção por parte de um herdeiro do senhor engenheiro que conseguiu provar em tribunal explorar essas terras  antes da morte de seu pai e da ocupação forçada, o rapaz chamara-lhe roubo mas o juiz obrigou-o ao uso da terminologia jurídica corrente, portanto ocupação, ademais o queixoso reclamava da ocupação das terras e não do seu roubo, foram ocupadas essas herdades que trazia em exploração, afirmou-o e provou-o, testemunhas foram chamadas, o advogado da parte contrária, isto é da Cooperativa Esperança de Baleizão CRL foi ouvido e convidado a dizer de sua justiça, a apresentar os seus argumentos e provas mas o juiz foi lesto a decidir-se perante tanta evidência tendo ditado, com a ordem de devolução das terras ao herdeiro que as reclamava, a morte da esperança da cooperativa agrícola com esse nome. A título de esclarecimento aditamos o facto dessa cooperativa não ter acatado a ordem de devolução, o que fez somente quando confrontada com uma força militarizada da GNR que procedeu à desocupação das terras e as entregou finalmente ao herdeiro e rendeiro em causa.

Restavam três, a Rainha do Alentejo, a Estrela Vermelha e a Unidade de Barrancos, todas e qualquer uma delas comandadas por velhos amigos de MM, razão mais que suficiente para que este não tenha hesitado em dirigir-se-lhes oferecendo os seus préstimos, que é como quem diz os seus braços, o seu saber, e de modo mais prosaico lá se dirigiu a pedir trabalho como duas ou três décadas atrás fizera tantas vezes ao mendigar a jorna aos maiorais daqueles mesmos montes, naquelas mesmas herdades e, curiosamente por esse Alentejo fora alguns deles comandando agora as mesmas herdades para os novos patrões…

Não teve muita sorte o francês, tal e qual, assim foi tratado na primeira cooperativa agrícola onde se dirigiu,

- Olha o francês, tu por aqui? Então dantes eras fino demais para aguentar isto e agora já te serve? Volta para França amigo, decerto lá é melhor que aqui. Chocado e um pouco ofendido com a recusa sobretudo com os modos em que lhe fora atirada à cara MM virou as costas aos parvalhões ruminando de si para si que nada lhes devia e deles nem precisaria, amigos como dantes, quartel-general em Abrantes, quem vai vai quem está está, que ficassem bem.

Porém, na segunda unidade colectiva de produção onde se dirigiu não teve mais sorte. Nem adianta estarmos a rebuscar a argumentação invocada para a nega que lhe foi dada como resposta porque mais importante que isso foi a sensação que MM experimentou de haver também ali algo de concertado na recusa que lhe atiraram, tal qual algumas décadas atrás maiorais e proprietários se concertaram para lhe negar a jorna, a ele que embora jovem prestável e voluntarioso fazia contudo perguntas a mais, levantava questões a mais, desassossegava os outros, era um revoltado, tendo-lhe vindo à memória o seu esquecido amigo, o Tenente Carrajola, que ainda cabo já o designava por subversivo, demonstrando uma acuidade e um servilismo que viriam a fazer história, como fizeram, e de que temos triste conhecimento e memória. Esta recusa, o modo desrespeitoso como lhe fora transmitida, percebera-o ele como algo que não lhe fora dado de improviso, não fora uma resposta impensada ou espontânea, fora uma recusa pensada há muito, premeditada há muito, estudada há muito e decerto concertada há muito, ou não tivessem sido as mesmas as palavras com que essa recusa fora rematada, pois é o francês, dantes eras fino demais para isto e deste à sola mas agora já te serve? Volta para França amigo que lá é que é bom, até estranhámos ver-te por aqui. E foi isto, foram estas as palavras que o puseram de orelhas no ar, quase sem tirar nem pôr as mesmas que na Rainha do Alentejo tinha ouvido, ora esta gente não tem cabeça para imaginar nada de novo, MM conhecia-os bem, eram como papagaios repetindo a voz do dono, só restando uma explicação, ambos os interlocutores terem ouvido do mesmo patrão maioral ou chefe de fila a frase que mais alteração menos alteração ouviram e agora papagueavam, esta era a realidade, algo ou alguém se levantava de novo contra si e desta vez nem perguntas andara MM fazendo nem questões houve que tivesse levantado.

À terceira foi de vez, se à primeira caem todos e à segunda só cai quem quer, à terceira contudo não cairá ninguém, ou nenhum, nem MM caiu, ou por outras palavras não o deixaram cair, pelo que ele mesmo não deixaria de se surpreender com a rapidez com que foi admitido, ele que mal balbuciara a intenção de se mostrar disponível para o que desse e viesse, tendo o seu velho amigo Judas corrido para ele, de mão estendida e, muito cordialmente;

 - Há aqui muito trabalhinho para ti, de mecânica, se estiveres interessado aparece amanhã pelas sete e meia da matina.

assim tal e qual sem mais nem menos formalismos, tendo ficado MM surpreendido, admirado, talvez não seja exagero dizer deslumbrado já que outra palavra me falta que melhor descreva a enorme e já agora estranha surpresa com que aquele fim de dia o brindou.

Foi-se MM esfregando as mãos sempre que as não tinha que manter firmes ao volante, indagando-se que razões teria o Judas para de modo tão grato responder a uma amizade antiga, antiquíssima, mas nem por isso pejada de razões que explicassem por aí além o cordialíssimo acolhimento que lhe fora prodigalizado, a recepção de braços abertos e mão estendida, a confiança num aperto de mão tornado pacto selado, a garantia da palavra dada, e olha de quem, logo do Judas que, como todos sabemos se vendeu por trinta dinheiros.

Não quis MM explorar a questão onomástica, tanto mais que Judas viera ao mundo com o nome que lhe deram, não escolhido por ele, nem tão pouco, ou muito, ou de perto relacionado com qualquer acção ou atitude que lhe pudesse ser apontada. Uma daquelas infelicidades do destino que lhe devem ter pesado na infância e na adolescência mas que agora, que se notasse, não lhe faziam mossa nem peso.

Nesse dia jantou no café da vila, juntou à volta da mesa alguns amigos, regozijou-se por ter trabalho para o dia seguinte, brindaram, festejaram, comentaram, sendo assim que tomou conhecimento de alguns factos em parte esclarecedores da sua rápida e franca admissão, o campo estava cheio de máquinas, umas novas, outras velhas e algumas em meio uso, não se dando por tal pois não estacionavam no largo da vila, mas eram realidade, o apreciável aumento das áreas cultivadas, o maior número de homens dedicados à agricultura e o relevante aumento da produção eram os três vértices de um triângulo onde a maquinaria fazia peso e se movia, e o que se move gasta-se, e o que se gasta avaria, e o que avaria pára, e o que pára não rende, não produz, além de obrigar outros, a montante e a jusante a pararem igualmente, o que naturalmente acarreta enormes prejuízos e força os mecânicos, que nunca foram muitos, a não chegarem agora para as encomendas, sabido que as máquinas não podem deslocar-se ao médico, é o médico que tem que atravessar os campos e ir até elas exercer o seu mister e fazer os seus milagres. Senão no todo estava desvendado parcialmente o mistério da rápida admissão de MM, agora era dormir bem e amanhã arregaçar as mangas.

Ao levantar-se da mesa, virando-se para sair esbarra MM com o seu velho amigo Judas e logo ali lhe ocorre agradecer-lhe a pronta disponibilidade e solidariedade demonstrada há bem poucas horas, porém apercebeu-se vir ele acompanhado, resolvendo deixar para uma próxima e oportuna oportunidade essa questão, até por ele estar acompanhado por duas figuras que nem quer lembrar quanto mais cumprimentar, velhas caras conhecidas, digamos que tristemente conhecidas, o Sebastião Modas e o Baptista Franco, tendo tanto de franco quanto ao outro faltaria, e se os lembrava era por lhe ocorrerem as aldrabices pelo par pintadas, mais falsos e maiores impostores não lhe viriam à lembrança além desses dois, sempre vivendo e sobrevivendo de esquemas, sempre aldrabando e ludibriando quem pudessem e agora, veio a sabê-lo no dia seguinte numa daquelas pausas no trabalho, guindados a gerentes, dois agentes representantes de marcas de alfaias agrícolas importadas, digamos dois respeitados senhores e sempre engravatados, fumando cachimbo, um, e charutos bem grossos o outro, uma questão de proeminência, MM sorriu, pensou de si para si como o tempo muda as pessoas, pelo menos por fora, todavia fosse como fosse, boas companhias para o seu velho amigo Judas que deles nem por isso divergia tanto quanto poderíamos pensar.

O primeiro dia de trabalho correu bem e sem incidentes dignos de registo para além de alguma ferrugem que as mãos de MM depressa sacudiram, tendo esses dias e os dias seguintes beneficiado de uma normalidade que a destreza de MM e a sua certeira elaboração de diagnóstico e presteza de solução ajudariam a acentuar, digamos que se encontrava nas suas sete quintas não fosse uma série de tractores, dúzia e meia e mais uns quantos deles, reiteradamente teimassem arruinar-lhe a paz dos dias já que se não era um era o outro, ou outros, e curiosamente apresentando todos as mesmas avarias.

O país produzia mais, era notório o aumento de produção agrícola e o exigente esforço cada vez mais solicitado a homens e máquinas, porém era um esforço a que faltava correspondência, isto é, era desarticulado das directrizes do ministério, quantas vezes em contraciclo com o sector, com a lavoura, perdão, a agricultura, já que lavoura é mais uma das muitas palavras banidas, é um sintagma de tempos que nos marcaram como um estigma, portanto melhor socorrer-me desta novilíngua surgida depois de Abril, agricultura, arte agrícola e não agrária, outro vocábulo de conotação negativa e igualmente banido, mas falávamos de contraciclo, que é como quem diz directrizes contra revolucionárias, desfasadas das necessidades de quem trabalha a terra, a produção agrícola, claro que muita da culpa era também devida à curta duração dos governos, derivada da instabilidade governativa que se vivia, portanto mais uma prova da necessidade que as forças progressistas e revolucionárias tinham de conquistar o poder, conquistar a maioria, a luta teria que continuar, porque agora era o subsídio à aquisição de maquinaria nova que era cortado, amanhã o apoio à tonelagem de trigo produzida, assim estaria em perigo todo o Alentejo, deixaríamos de ser o celeiro de Portugal, não sou eu quem o diz, é Sebastião Modas e Baptista Franco em entrevista ao jornal da terra, isto assim não pode continuar, há dois anos consecutivos que em cada um vendemos metade das alfaias vendidas no anterior, querem melhor estatístca? Melhor indcativo? Melhor cofciente? A que o outro contrapunha não ser somente uma questão de cofciente pois a efciência e a produção máxima possível sem maquinaria perde potencialidades, o seu potencial ficará além do diagnóstico, e acendia calmamente o cachimbo, tal qual se via na foto da capa, passando de novo palavra ao colega do ramo, por sua vez perorando sobre os lugares de trabalho em perigo, o stand, as vendas, as peças, o balcão delas, e as oficinas, quase quarenta postos de trabalho sobre pena de redução, os sucessivos governos pondo em causa a sua mantenção, não se podia pôr em causa o bidónio homem máquina, a produção deveria merecer a primacia do pensamento de quem nos governa, e a proibição de importação de equipamentos não afectará somente os pequenos clubes mas também empresas e empresários, como era o seu caso, mas perigrará as relações reatadas com os nossos irmões dos países de leste, nossos fornecedores de tractores e alfaias e para quem começávamos a exportar, cortiça para já, outros produtos se seguiriam, não se podem fechar essas portas, claro que não podem, como responsável da Rainha do Alentejo corboro as palavras destes nossos contrâneos o mundo tem os olhos postos na gente e agente só tem é que demonstrar do que semos capazes, assim era rematada a entrevista, com estas sábias palavras do meu velho amigo Judas Saiotes, homem proeminente por aquelas bandas e cuja palavra era lei.

  

XVII           
                                   continua....