Aquilo foi
tudo um mal-entendido, cá para mim não passou de boas intenções, a gente às
vezes quer mas nem sempre consegue é o que é, ou o que foi, é mais um daqueles
casos em que acabamos por admitir, e dizer, o que conta é a intenção, já que por
motivos que nos escapam ou são alheios à nossa vontade não se conseguiu
concretizar o que seria certamente uma mera intenção, se boa se má não vem agora ao
caso, ao caso vem não ter passado disso mesmo, duma intenção, não
formalizada, a que não se conseguiu dar forma, não efectivada, materializada, que
não se realizou, inconseguida como diria a outra….
Naturalmente
ficou aborrecido com isto tudo o Zé António, já o conheço bem, bem e há muitos
anos, imagino quanto o terá abalado o facto de não ter tido êxito, ele é muito
dado às coisas, quero dizer leva tudo a peito, quando se mete nalguma é de
corpo e alma, entrega-se ao que estiver a fazer e se o impedem atira-se aos arames,
afina, como diz a Vicência do Herlander.
Ela é
perspicaz, não lhe fazem o ninho atrás da orelha com facilidade, já dera por
haver ali atrito, uma coisa subtil mas que todavia captara. Nem sempre é fácil captar
as subtilezas de cada um, sobretudo se bem camufladas ou disfarçadas, porém não
lhe escapara o ranger de dentes da Eunice, aquilo era tensão acumulada, aquele
ranger escondia muita objecção ou contrariedade, fora essa a primeira vez, a partir
daí afinara o olho, abrira o olho e muitas outras situações observara que ninguém
diria ou sequer admitiria, mas não ela, a ela não a enganavam às boas que tinha
o olho aberto como diriam os ciganos no mercado do rossio;
- Abra o olho
ó freguesa abra o olho, dois pelo preço de três é aproveitar ó freguesa abra o
olho !
Apanhar o momento
de tensão, de atrito, do choque, por vezes coisa de segundos é realmente uma
façanha de que a Vicência se gaba, não sabemos até que ponto terá ela razão
claro mas admitindo que a tenha menos claro e mui mais difícil será conhecer o
motivo, o detonador pior ou melhor dá-se por ele, ouve-se-lhe o estalinho, mas
o que deu origem àquela guerra surda travada e escondida aos olhos de todos e
que tantas subtilezas esconde ? Esse é o busílis, ou é aí que está o busílis.
O tempo veio
a permitir ver ou antever alguns, alguns dos busílis, alguns motivos, como foi
o caso dos passarinhos, sim dos passarinhos, não que os comessem que cá por mim
tudo que seja mais pequeno que codornizes nem pensar e até essas já são
pequenas demais, dando mais trabalho que o que tenham para comer mas aqui
trata-se de passarinhos, não passarinhas, passarinhos mesmo, alimentar os
passarinhos.
Ao longo da
vida o Zé António alimentara várias pancadas ou várias taras, imagino o que a
Eunice lhe terá aturado nestes anos todos, mas enquanto a coisa ficava entre os
dois lá iam resolvendo as questões, isto imagino eu que sei perfeitamente só se
descontrolarem as coisas quando transbordam, quando nem uma gota mais aguentam,
deve ter sido o caso daquele ranger de dentes, por algum motivo uma gota não
coube, imagino a explosão se estivessem só os dois, sozinhos, assim ela rangeu
os dentes e calou-se, acumulou, como fazem as baterias, imaginem se lhe salta a
tampa quando estiver com a carga toda, nem quero estar por perto.
Mas voltando
à vaca fria, ou aos passarinhos, o problema radicava no facto de ter dado ao Zé
António há algum tempo, a pancada para atirar da janela da cozinha à rua as
fatias de pão que sobravam em cada dia. Não que ficassem longas horas desfeando a rua ou os passeios, ou que tivessem oportunidade de criar bolor, nada disso, a
humidade da noite amolecia-as e na manhã seguinte bandos de pardais davam conta
delas em pouquíssimo tempo. Bicada aqui bicada ali em breve somente sobravam as
côdeas e até essas acabavam desaparecendo, era uma alegria para a passarada que
excitada com a fartura e chilreando assinalava e alegrava a matina, o
problema era o entretanto, ou os entretantos.
É que nesse
entretanto, isto é desde c'as fatias caíam no chão, até que passadas umas horas
de escuridão a pardalada as debicasse e comesse, alguma da vizinhança justamente
revoltada com as toneladas de plásticos e outros resíduos flutuando nos oceanos
e ameaçando a natureza e as espécies, quase deu azo a um abaixo-assinado e a
uma mobilização de força contra o energúmeno que conspurcava os passeios da
avenida, incapaz devido à incultura geral vigente de destrinçar entre resíduos
orgânicos e inorgânicos, entre os que rápido se degradam naturalmente na
natureza e os não biodegradáveis que nem passados quinhentos ou mil anos se
degradam, desfazem, decompõem, a ponto do bom do Zé António ter sentido fundados
receios de sair à rua, tendo sido obrigado a mudar de tácticas, passando a
esfarelar ou a partir em bocadinhos pequenos e mais facilmente comidos e até levados,
carregados pelos passarinhos, táctica que contudo a Eunice não aprovou continuando
a sarrazinar-lhe a cabeça por tal motivo.
Com o tempo
tudo se sabe, pior ou melhor tudo vem a saber-se e o motivo do atrito entre
aqueles dois não era somente esse, acontece que a santa Eunice não suportava
muita coisa que ele tinha que lhe aguentar, como o ouvir música alta, qualquer
musica, ou que ele perdesse muito tempo no PC, ou tão pouco suportava ela ouvir
o matraquear dos dedos dele no teclado sendo batido, digo digitado, a ponto do
bom do Zé António ter sido “obrigado” a adquirir um caríssimo teclado, todavia
silencioso. Só porque se o desgraçado estava ao PC ou se teclava seria por
haver ali gato, ou namorico e a Eunice não estava para isso, fervia de ciúmes,
inda por cima fervia em pouca água nem sendo necessária grande chama para
atingir o ponto de fervura, diziam as más-línguas.
Fosse como
fosse parece que as coisas foram enchendo de parte a parte, terá sido uma gota só
a entornar, a extravasar, diz-se que o plácido Zé António um dia não se conteve
tendo jogado as mãos ao pescoço da Eunice animado de uma vera vontade de pôr
fim a todo aquele tormento e de a esganar. Não quis a providência que tal
acontecesse naquele dia e a coisa tá agora mais apaziguada, deixando o Zé
António os sapatos por arrumar e onde calha, a roupa
suja largada onde calha e por apanhar, espalhada na casa de banho ou chutada
para o corredor, os livros, jornais e revistas em cima de
qualquer coisa, sem que ouça uma crítica e numa rebaldaria nunca antes vista naquela casa.
Uma
conceituada terapeuta aconselhou e deu descanso à família afirmando estar a
Eunice completamente recuperada das dores e mazelas do pescoço dentro de meses
e pronta para outra, vem aí o verão, irão os dois parta a praia como de
costume, ela não lhe poupará um ralhete a cada curva, a cada sinal, a cada
ultrapassagem, a cada cem metros ou a cada quilómetro, ele jurou não lhe dar
ouvidos nem que ela grite, dá gosto ver uma família ultrapassar os problemas e
cooperar, reconciliar-se, a felicidade é que conta, o Zé António não conseguiu
mas o que importa é a intenção, o que conta é a intenção e não faltarão
certamente outras oportunidades…