quinta-feira, 20 de julho de 2017

446 - A INTENÇÃO É QUE CONTA ............................


Aquilo foi tudo um mal-entendido, cá para mim não passou de boas intenções, a gente às vezes quer mas nem sempre consegue é o que é, ou o que foi, é mais um daqueles casos em que acabamos por admitir, e dizer, o que conta é a intenção, já que por motivos que nos escapam ou são alheios à nossa vontade não se conseguiu concretizar o que seria certamente uma mera intenção, se boa se má não vem agora ao caso, ao caso vem não ter passado disso mesmo, duma intenção, não formalizada, a que não se conseguiu dar forma, não efectivada, materializada, que não se realizou, inconseguida como diria a outra….

Naturalmente ficou aborrecido com isto tudo o Zé António, já o conheço bem, bem e há muitos anos, imagino quanto o terá abalado o facto de não ter tido êxito, ele é muito dado às coisas, quero dizer leva tudo a peito, quando se mete nalguma é de corpo e alma, entrega-se ao que estiver a fazer e se o impedem atira-se aos arames, afina, como diz a Vicência do Herlander.

Ela é perspicaz, não lhe fazem o ninho atrás da orelha com facilidade, já dera por haver ali atrito, uma coisa subtil mas que todavia captara. Nem sempre é fácil captar as subtilezas de cada um, sobretudo se bem camufladas ou disfarçadas, porém não lhe escapara o ranger de dentes da Eunice, aquilo era tensão acumulada, aquele ranger escondia muita objecção ou contrariedade, fora essa a primeira vez, a partir daí afinara o olho, abrira o olho e muitas outras situações observara que ninguém diria ou sequer admitiria, mas não ela, a ela não a enganavam às boas que tinha o olho aberto como diriam os ciganos no mercado do rossio;

- Abra o olho ó freguesa abra o olho, dois pelo preço de três é aproveitar ó freguesa abra o olho !

Apanhar o momento de tensão, de atrito, do choque, por vezes coisa de segundos é realmente uma façanha de que a Vicência se gaba, não sabemos até que ponto terá ela razão claro mas admitindo que a tenha menos claro e mui mais difícil será conhecer o motivo, o detonador pior ou melhor dá-se por ele, ouve-se-lhe o estalinho, mas o que deu origem àquela guerra surda travada e escondida aos olhos de todos e que tantas subtilezas esconde ? Esse é o busílis, ou é aí que está o busílis.

O tempo veio a permitir ver ou antever alguns, alguns dos busílis, alguns motivos, como foi o caso dos passarinhos, sim dos passarinhos, não que os comessem que cá por mim tudo que seja mais pequeno que codornizes nem pensar e até essas já são pequenas demais, dando mais trabalho que o que tenham para comer mas aqui trata-se de passarinhos, não passarinhas, passarinhos mesmo, alimentar os passarinhos.

Ao longo da vida o Zé António alimentara várias pancadas ou várias taras, imagino o que a Eunice lhe terá aturado nestes anos todos, mas enquanto a coisa ficava entre os dois lá iam resolvendo as questões, isto imagino eu que sei perfeitamente só se descontrolarem as coisas quando transbordam, quando nem uma gota mais aguentam, deve ter sido o caso daquele ranger de dentes, por algum motivo uma gota não coube, imagino a explosão se estivessem só os dois, sozinhos, assim ela rangeu os dentes e calou-se, acumulou, como fazem as baterias, imaginem se lhe salta a tampa quando estiver com a carga toda, nem quero estar por perto.

Mas voltando à vaca fria, ou aos passarinhos, o problema radicava no facto de ter dado ao Zé António há algum tempo, a pancada para atirar da janela da cozinha à rua as fatias de pão que sobravam em cada dia. Não que ficassem longas horas desfeando a rua ou os passeios, ou que tivessem oportunidade de criar bolor, nada disso, a humidade da noite amolecia-as e na manhã seguinte bandos de pardais davam conta delas em pouquíssimo tempo. Bicada aqui bicada ali em breve somente sobravam as côdeas e até essas acabavam desaparecendo, era uma alegria para a passarada que excitada com a fartura e chilreando assinalava e alegrava a matina, o problema era o entretanto, ou os entretantos.

É que nesse entretanto, isto é desde c'as fatias caíam no chão, até que passadas umas horas de escuridão a pardalada as debicasse e comesse, alguma da vizinhança justamente revoltada com as toneladas de plásticos e outros resíduos flutuando nos oceanos e ameaçando a natureza e as espécies, quase deu azo a um abaixo-assinado e a uma mobilização de força contra o energúmeno que conspurcava os passeios da avenida, incapaz devido à incultura geral vigente de destrinçar entre resíduos orgânicos e inorgânicos, entre os que rápido se degradam naturalmente na natureza e os não biodegradáveis que nem passados quinhentos ou mil anos se degradam, desfazem, decompõem, a ponto do bom do Zé António ter sentido fundados receios de sair à rua, tendo sido obrigado a mudar de tácticas, passando a esfarelar ou a partir em bocadinhos pequenos e mais facilmente comidos e até levados, carregados pelos passarinhos, táctica que contudo a Eunice não aprovou continuando a sarrazinar-lhe a cabeça por tal motivo.

Com o tempo tudo se sabe, pior ou melhor tudo vem a saber-se e o motivo do atrito entre aqueles dois não era somente esse, acontece que a santa Eunice não suportava muita coisa que ele tinha que lhe aguentar, como o ouvir música alta, qualquer musica, ou que ele perdesse muito tempo no PC, ou tão pouco suportava ela ouvir o matraquear dos dedos dele no teclado sendo batido, digo digitado, a ponto do bom do Zé António ter sido “obrigado” a adquirir um caríssimo teclado, todavia silencioso. Só porque se o desgraçado estava ao PC ou se teclava seria por haver ali gato, ou namorico e a Eunice não estava para isso, fervia de ciúmes, inda por cima fervia em pouca água nem sendo necessária grande chama para atingir o ponto de fervura, diziam as más-línguas.

Fosse como fosse parece que as coisas foram enchendo de parte a parte, terá sido uma gota só a entornar, a extravasar, diz-se que o plácido Zé António um dia não se conteve tendo jogado as mãos ao pescoço da Eunice animado de uma vera vontade de pôr fim a todo aquele tormento e de a esganar. Não quis a providência que tal acontecesse naquele dia e a coisa tá agora mais apaziguada, deixando o Zé António os sapatos por arrumar e onde calha, a roupa suja largada onde calha e por apanhar, espalhada na casa de banho ou chutada para o corredor, os livros, jornais e revistas em cima de qualquer coisa, sem que ouça uma crítica e numa rebaldaria nunca antes vista naquela casa.

Uma conceituada terapeuta aconselhou e deu descanso à família afirmando estar a Eunice completamente recuperada das dores e mazelas do pescoço dentro de meses e pronta para outra, vem aí o verão, irão os dois parta a praia como de costume, ela não lhe poupará um ralhete a cada curva, a cada sinal, a cada ultrapassagem, a cada cem metros ou a cada quilómetro, ele jurou não lhe dar ouvidos nem que ela grite, dá gosto ver uma família ultrapassar os problemas e cooperar, reconciliar-se, a felicidade é que conta, o Zé António não conseguiu mas o que importa é a intenção, o que conta é a intenção e não faltarão certamente outras oportunidades…