terça-feira, 18 de julho de 2017

445- A PACIENTE FELICIDADE DA VIOLANTE *...


* A minha amiga Violante casou cedo e os anos nem passam por ela. 


Ele fizera todas as campanhas que lhe tinham calhado em sorte e não se podia queixar do azar, não sofrera por aí além nem se considerava um deficiente embora não tivesse recusado a pensão de invalidez nem renegasse as vantagens que a ADFA lhe concedia. É certo que pagara cara aquela missão na Jamba, como alguns se atrevem a dizer, inda que eu não concorde com isso pois ele entende até ter ganho uns bons dinheirinhos, que muito jeito lhes têm feito. O saldo é tudo, e atendendo à conta no banco a sua sorte, ou o seu azar, nunca poderão ser tidos em questão sem uma criteriosa ponderação e coisa que somente eles, o casal, poderá fazer.

A sua companheira a Violante já se habituara, a principio custara-lhe um pouco mas o amor todas as barreiras supera, ou não ? Afinal ninguém lhe tirara o seu homem, o seu amor, talvez tivessem tirado um bocadinho mas fosse como fosse era dela, portanto ficara a ganhar que isto nas guerras do amor e dos ciúmes também existe um saldo e o dela era a crédito, positivo, apuradas as contas a vantagem ficara do seu lado, ela saíra ganhando, o resto seriam conversas de treta não passariam de invejas.

Era o seu homem de sempre, apagadas as luzes o toque dele era o mesmo toque de sempre e inconfundível para ela, o mesmo jeito de lhe correr a mão pela espinha fazendo-a arrepiar-se toda ao passar entre os olhinhos das costas, o mesmo gesto prolongando a caricia por ali abaixo até entalar a mão nas suas coxas roliças, o mesmo arfar. Chegado aí a respiração dele, tensa e acelerada não mudara nada, era a mesma, como o mesmo era o hábito de fazer da mão um cutelo, uma mão em cunha capaz de a trinchar em duas, claro que não trinchava, nem aleijava, não estavam no talho do senhor Felício, simplesmente enquanto isso ela estendia a mão no escuro e agarrava-se com devoção ao terço pendurado na cabeceira da cama, como fazia há mais de trinta anos sem perder a fé, a mesma cama em que tinham casado, ou por outra, que tinham desde o casamento.


Em boa verdade a mão não era a mesma, mas era a outra e também era dele. Violante antes preferia sentir-lhe a pele nua e rude dos dedos que a pelica da luva, conhecia o seu homem até no escuro, seria capaz de o reconhecer de olhos vendados até pelo toque, ou pelo cheiro. Com o tempo haviam refeito a vida com o que sobrara e com o que tinham, sem ovos é que não se podem fazer omeletes, mas desde que haja ovos o resto pouca importância terá, afinal foram perto de quarenta anos de felicidade, três filhas e quatro netos. Como diria o senhor presidente da junta, é obra, uma obra que ambos dois ergueram a duas mãos apesar de tudo.

O estranho ritual inícial aos poucos fora-se banalizando, com a duração e o passar de certo prazo, o tempo esse grande escultor que tudo apaga e tudo aviva, o tempo se encarregara de vulgarizar a rotina. Hoje Violante ri-se desses tempos, deitar com a luz acesa era crime de lesa-majestade, se acendesse a luz do quarto à noite era mais que certo o Edmundo atirar-se ao ar, afinava com isso e duas ou três vezes depois de armado um escarcéu por esse motivo a lembrança fixou-se e o hábito instalou-se. Nunca mais aquela luz se viu acesa depois das oito da noite, ou sete, ou seis sendo invernia e durante uns tempos nem candeeiros de mesinha de cabeceira houve e, se voltou a havê-los tal se deveu a dois incidentes ocorridos quase na mesma altura, o primeiro um bocado caricato pois o Edmundo tacteando à noite e às escuras com o coto o naperon sobre a mesinha, ao invés de o achar acabou por derribar o olho que procurava, tendo  o mesmo caído no chão com estrépito e rebolando ou desaparecendo para onde ninguém imaginaria nem procuraria, rolando fora parar à casa de banho, onde nenhum de nós se lembrara de o procurar e somente no dia seguinte sendo encontrado, lascado, com uma falha, inutilizado. Encomendar um da mesma cor dos olhos do meu Edmundo, que são lindos, durou uma eternidade e custou os olhos da cara salvo seja, o diabo seja cego surdo e mudo, lagarto, lagarto, lagarto, mas foi o caso, talvez achem um pouco estranho mas foi o caso, porém ainda não suficiente para que os candeeiros voltassem às mesinhas de cabeceira mas que muita influência teve ai isso teve.  


Determinante fora o segundo incidente, não sei o que buscaria o Edmundo mas sei que derrubou o copo d’água onde à noite punha a placa, uma placa esquelética, caríssima, que no escuro pisou. Ao levantar-se da cama em busca da perna pisara a placa que se lhe espetara no pé atravessando-o de lado a lado e impedindo-o durante dois meses de ir ao quartel. Uma coisa mais séria do que inicialmente julgáramos, felizmente a placa era boa e nada sofrera, ao menos valha-nos isso naquela maré de azar que acabou por trazer de volta os candeeirinhos com os abat-jours translúcidos tão apreciados e que roubáramos num hotel de Benidorm, lugar onde passáramos a lua de mel.

De qualquer modo as restrições quanto ao acender da luz no quarto mantiveram-se quási as mesmas, o meu Edmundo é um homem de hábitos e a primeira coisa que faz ao entrar no quarto é sentar-se na cama, sacudir os sapatos e desatarraxar a perna. Desatarraxar é como quem diz, mas soltar todas aquelas correias demora o seu tempo e impressionava-me ao principio, agora até gosto de lhe tirar a comichão do coto e sempre que desatarraxa a perna lá estou eu. Mais valia que tivessem inventado um sistema de parafuso, fora isso é tudo normal, e ele todo normal dali para cima, ou quase, tirando a mão, o maxilar, os dentes e o olho de vidro é um homem como outro qualquer, é o meu homem e amo-o, não dizem que o amor é cego, olhem, por falar nisso esqueci-me das lentes de contacto que nem sei onde as meti.

* A minha amiga Violante casou cedo e os anos nem passam por ela.