quarta-feira, 1 de novembro de 2017

471 - ORA PONHA AQUI O SEU PÉZINHO ..............


  Há muitos anos já ensinou-me mestre Sena,* saudoso professor de economia que a morte levou de imprevisto e demasiado cedo para tanto que ainda teria para nos dar, nos porque era eu e a Luisinha e mais uma sala cheia de maltinha, mas ensinou-me ia eu dizendo, não ser a economia coisa de coca-bichinhos, sendo até uma bola fácil de rebolar, mais fácil arrastar esta que o escaravelho a sua, sua dele, dado cientificamente confirmado visto depender ou basear-se a economia na lei dos grandes números, coisa facinha de manusear e entender. 

 Bom bicho, digo bom tipo aquele José Sena, quando se punha a falar nunca mais se calava dando imenso gosto ouvi-lo. Tornava tudo fácil, pelo menos fácil de entender, de compreender, assimilar, e sobre as contas nacionais o deve e haver do estado, a despesa e a receita, eu diria agora o orçamento de estado, sobre o qual diria ele não ser mais do que uma conta de somar e subtrair, mal indo as coisas caso dessem em aritmética de sumir…

Sumiço levou ele antes de tempo coitado, ainda foi convidado a cumprir o seu dever cívico como presidente da Câmara Municipal de Estremoz mas foi sol de pouca dura, morreu no exercício do cargo, Deus é mais exigente que a contabilidade do estado, tendo-o requisitado quem sabe se para elaborar alguma auditoria às nuvens do céu ou a anjos e arcanjos.

Passados tantos anos parece-me ainda estar a ouvi-lo, eu e ele de barba rala, ele de sorriso sempre pendurado nas orelhas e eu com as ditas sempre espetadas a fim de não perder pitada do que dissesse. Afirmava ele e estou a citá-lo de memória, haver sempre em qualquer economia de um qualquer país minimamente organizado, sectores ou áreas por natureza geradoras de permanente prejuízo, afirmava-o referindo-se à justiça, ao ensino, à saúde, à segurança, áreas criadas para garantirem bem-estar e não para darem lucro, o que não significava que não o pudessem dar, daí serem por natureza permanentemente deficitárias.

Mas quem quereria abrir mão das vantagens que esses prejuízos e essas áreas nos traziam ? Ninguém quereria claro, embora nessa altura nenhum de nós adivinhasse quão caras nos viriam a ficar no futuro, futuro que é o hoje. Mas… acrescentava. Para além dessas áreas outros sectores da economia há igual e naturalmente deficitários e, dando uma volta sobre si mesmo rodopiando sobre o tacão de um dos sapatos adiantava:

- Os transportes, a administração pública, a cultura por exemplo, já não vivemos nos tempos gloriosos da revolução industrial em que o lumpemproletariado vivia lado a lado com as usinas, as machines, os empregos, hoje há necessidade de deslocar em movimentos pendulares dos dormitórios para as cidades e vice-versa milhares ou milhões de trabalhadores e se os bilhetes reflectissem o custo real do serviço de transporte ninguém os compraria, portanto a sociedade subsidia o sector dos transportes de molde a tornar suportável e acessível o seu custo fomentado a sua utilização, ela também e por sua vez vantajosa em termos económicos, sociais e ambientais, o mesmo acontecendo com a cultura ou a administração pública.

Naturalmente há que idealizar e projectar estradas, conceber e produzir ou adquirir material rolante, idem para portos e embarcações, bibliotecas, teatros e anfiteatros, palácios da justiça, edifícios camarários, hospitais, escolas, aeroportos, cais, pontes, tuneis, salas de chuto e complexos desportivos, polivalentes para arraiais, carruagens, autocarros, kimboios, portanto imensos sectores e áreas deficitárias, buracos e buracos para encher e preencher, e com tanto buraco onde ir buscar dinheiro, o muito dinheiro necessário para os alimentar ?

Mais um sorriso malandro, mais uma voltinha sobre o tacão do sapato, desta vez sobre o outro e em sentido contrário ao da volta anterior, para desfazer tonturas, rebentar nós, e naturalmente desatar o karma e desenlear o mantra, ficando de sorriso pendurado até algum de nós aventar uma resposta, uma hipótese ou uma asneira.
 
Informalmente a resposta certa era encontrada depois de uma algaraviada entre todos, vulgarmente achada após um longo intervalo e uma vez esvaziadas as bexigas e sorvidos os cigarros. Essas aulas eram animadas e participadas como nenhumas outras, e a resposta para um milhão era nem mais nem menos que a sugerida por uma balança cujo fiel era um porquinho desses que aparecem aleatoriamente como mealheiros no qual ele Sena, ele senhor professor espetava ou equilibrava um facalhão que para o efeito traria na pasta.

         Confuso ? Nem por isso, a explicação era simples, a colecta dos impostos (mealheiro/poupança) teria que chegar para quitar as despesas, não chegando havia que recorrer a uma de duas soluções, ou ambas em simultâneo, metia-se a faca ao pescoço do contribuinte e sugavam-se-lhes mais impostos, por isso a faca na ranhura do mealheiro, ou sacavam-se os lucros às empresas do estado. Portanto na balança do deve e haver, o que havia num prato teria que ser suficiente para equilibrar o prato contrário.

O sector empresarial do estado era e é, na maior parte do mundo que não nesta terra e neste momento, contemplado com monopólios altamente lucrativos como a electricidade, as comunicações, os combustíveis, a distribuição postal, e muitos muitos outros cuja importância estratégica aconselhava a sua posse nas mãos do estado, não só por serem estratégicos, como a energia por exemplo, mas por serem demasiado importantes para ficarem ao sabor das leis do mercado, leis implacáveis para com os de menos posses, o estado cuidava de que fossem lucrativas sem contudo nos esmifrarem sem qualquer arroubo de sentimentalismo serôdio. O dinheiro ganho por elas, os seus lucros, iriam colmatar os buracos na justiça, na saúde, no ensino, nos transportes etc etc etc…

Ora sucede que paulatinamente temo-nos desfeito de dedos e de anéis, isto é, já não temos essas empresas, aliás já quase não há empresas nas mãos do estado, pelo que quando haja necessidade de tapar buracos ou reforçar meios a solução é apertar o pescoço ao contribuinte. Nós ganimos, os chineses e muitos outros rejubilam com os lucros, culpa nossa, ninguém nos mandou vender as galinhas dos ovos de ouro. Hoje não temos EDP, nem REN, nem CTT, nem Telecom, nem estaleiros, nem SETENAVE nem LISNAVE, nem portos nem ANA nem aeroportos, nem OGMA, nem TAP, nem seguradoras nem bancos, a bem dizer nem temos as estradas do país, elas também entregues às celebérrimas PPP…

Que esperar do futuro ? Não sei, estamos a morrer mais e a nascer menos, emigramos, definhamos, não temos futuro nem segurança, um descuido e o emprego vai-se, e vai-se a casa, não há quem nos defenda, são só bluffs e faz de conta, e fico eu imaginando que se Puigdemont corre o risco de cumprir 30 anos pela brincadeira ou aventura catalã, quantos anos deviam apanhar os nossos políticos por andarem há 40 anos a gozar com este povo e a vender a pataco o país ? 

E termino deixando um agradecimento saudoso e sincero ao prof. José do Nascimento Dias Sena, homem animado dum modo de ensinar peculiar, ensinava brincando, e todos sabemos ser a brincar que se dizem as verdades e ter sido a brincar que o macaco foi ao... Pois foi com o prof. José Sena que muito aprendi, e aprendemos coisas que nem o Passos Coelho nem a Maria Luís Albuquerque nem o A. Costa sonham, ou nem sabem ou parecem nem saber, nem esses nem tantos outros antes deles, decididamente estamos entregues aos bichos…  

Amigos, façam as malas ou matem-se… Não vejo outro caminho…



* José do Nascimento Dias Sena (1953-1994), professor emérito da Universidade de Évora e último presidente da Câmara Municipal de Estremoz, falecido durante o exercício do cargo.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

470 - RETRATO DE RICARDINA QUANDO JOVEM



Não posso deixar de lembrá-la cada vez que sinto no côncavo da mão aquela meia bola cheia, nem leve nem pesada, sem a sofisticada leveza do Molotof ou das Farófias nem a densa gravidade duma fatia de Salame de Chocolate ou dum Bolo de Bolacha.

É assim todas as manhãs ao pequeno-almoço, onde, sem estar, Ricardina está presente todos os dias na minha mesa, repartindo as minhas memórias enquanto eu divido com a Luisinha a manteiga p’las fatias e vaso o chá preto duma antiquíssima chaleira de esmalte chinês, cujo apito adoro ouvir e não raro serve de móbil para dar por terminada qualquer conversa de circunstância com a Maryzinha.

O cheiro das torradas está no ar, como está o da canela na compota de abóbora, ou o da madeira na sala quando crepita na lareira, mas é o cheiro de Ricardina, mais intuído que sentido a tolher-me o raciocínio mal sinto, como vos disse, o côncavo da mão preenchido.

Nem é uma questão de um qualquer fenómeno fenomenal nem de vazio existencial, enfim, já lá vão umas décadas, cada um de nós tomou o seu rumo e refez a vida, sem traumas, sem taras, ela foi guardar rebanhos, ou aprender a bordar, já nem me recordo, e eu meti-me a aprendiz de pintor de automóveis, de quadros, de cenas ou de paredes, não interessa.

O pequeno-almoço transforma-se como por artes mágicas num momento de análise do passado, uma pausa de rememoração e em simultâneo de introspecção, pois a relembro e me recordo tentando analisar-me e recapitular onde falhei, onde falhámos, enquanto sem dar por isso pego na meia bola de queijo e, sopesando-a com uma mão, abro com a outra a partir de duas patilhas, duas abas deixadas para o efeito na colagem a vácuo e à pressão, a folha superior dessa embalagem, levantando-a e olhando com apetite a massa cremosa do queijo com a mesma apetência ou concupiscência com que abria o decote da Ricardina e, maravilhado, lhe olhava com deleite as bolas brancas dos seios.

  Vaso o chá da chaleira com o mesmo cuidado e lentidão com que a ajudava a posicionar-se de encosto à cabeceira da cama, tanto cuidado ou mais que aquele que inda hoje tenho com o pão, o qual me obriga a persignar-me arrependido se calha deixá-lo cair, distraído, e que num repente levanto e beijo. Assim me ensinaram e assim procedo, faço-o já irreflectidamente, num acto intuitivo, quase inato, um reflexo condicionado digamos, e muito longe da minha velha, maturada, manhosa e premeditada atitude tratando-se da Ricardina.

O respeitinho é muito bonito. Bonitinho.

Coisas de rapaz, tempos que já lá vão, já lá vão e não voltarão mais como diz uma célebre canção. Pego nas abas da embalagem e abro-a devagar, abre facilmente e, mais uma vez lembro a Ricardina e os seus fechos de velcro com abertura fácil, sempre soube quão eu embirrava com colchetes e, mal apareceu essa moderna e maravilhosa invenção foi das primeiras a adoptá-la, nos ténis, nos blusões, nas blusas, nos sutiãs. Mas continuando, abro a embalagem facilmente, tão facilmente quão abria as dádivas que Ricardina me prodigalizava, primícias dizia-me ela, frutos proibidos respondia-lhe eu, antevendo e ante saboreando as dentadinhas. 

Com a ajuda da impressão digital do polegar levantava a ponta da casca de cera vermelha da fatia cortada ao queijo removendo-a facilmente, a fim de a meter entre duas fatias de pão da “Padaria Primavera” das Alcáçovas, diariamente trazido do “New Concept Coffee Shop” com a pontualíssima abnegação dum frade cartuxo cujo convento dali se avista. Faço-o com o mesmo dedo que lhe passava nos lábios molhados antes de os beijar, antes das dentadinhas, antes de a trincar acompanhada duma chávena enorme de chá preto, quentíssimo que é como o aprecio, ele também comprado em saquetas de abertura fácil. O que complica irrita-me, daí adorar o velcro e abominar os colchetes. *

Ao longo dos anos tentei outras, gosto de experimentar e de comparar, algumas senão a maioria das vezes todas me pareceram iguais acabando por me manter fiel às mesmas marcas, cliente satisfeito é cliente que volta, e eu voltei, voltei sempre, e sendo o sabor idêntico, ou o mesmo, optei contudo pela abertura fácil, por ser mais prático, por ser mais rápida a satisfação da gulodice, da gula, do prazer ou do que quiserem chamar-lhe, por isso voltei sempre ao “Terra Nostra”, aos Açores, sim, estive lá uma vez com a Ricardina, voltei lá anos, ou décadas mais tarde com a Luisinha, a vida é assim, as lembranças são como as cerejas e como as conversas, umas atrás das outras.

Perdi o rasto à Ricardina, coloquei de parte o queijo Agros, o Limiano e as bolas do Pingo Doce, pela dificuldades na abertura, impossíveis de abrir, irritantes, exasperantes, a casca de cera vermelha inamovível, fininha, fui sempre incapaz de a destacar das bolas cremes desses queijos, um problema irresolúvel, premente, urgente, e que só tinha sentido em toda a minha vida quando ainda novo callhou deparar-me e debater-me  com um colchete, nunca tive jeito ou fui capaz de abrir um só colchete, daí a minha predilecção pelo fácil, pela abertura fácil, curiosamente não me cativaram as aberturas fáceis da Ricardina, acabei casado com a Luisinha que não tinha aberturas fáceis, não usava velcros, nunca me facilitou a vida e se manteve sempre fechadinha e caladinha.

A vida tem mistérios que nunca compreenderemos, não entenderemos ou não aceitaremos. A outros sucumbiremos com a mesma facilidade com que abrimos a carteira e puxamos do cartão de crédito. A vida fácil, o facilitismo, o sectarismo, o amiguismo, o laxismo e o nacional porreirismo estão a complicar-nos a vidinha até ao infinito… 


sexta-feira, 13 de outubro de 2017

469 - BARREIRA INVISÍVEL - THIN RED LINE ...


Albino Tavares da ANPC

Não casual mas propositadamente este texto leva o nome de um filme que ao contrário do que vem sendo habitual deu posteriormente e por sua vez origem a um livro homónimo. Curioso é o facto de que, quer vejamos o filme quer tenhamos lido o livro, qualquer deles demasiado extenso, poderemos não dar à primeira vista com o significado moral da obra, tão longa, permeável e inconsequente nos parece por vezes ser o fio invisível que nela nos conduz do início ao final, como se caminhássemos passo a passo sobre instáveis dunas ou velozmente numa montanha russa. Assim me fizeram sentir as rápidas sequências da fita correndo lentamente, ou as suas lentas cenas passando rapidamente. A leitura de que depois me socorri não viria a mostrar-se mais visível mas deu-me a vantagem de poder rebobinar as páginas, voltar atras e repetidamente reler as partes cruciais até completamente as esclarecer.

Todavia que a velocidade da fita ou da vida não nos tire nunca o discernimento, pois essa linha invisível estará sempre lá, está sempre presente e toda a obra, como toda a vida, todas as vidas giram em torno de quem a pisa, a ultrapassa ou mui singelamente e quantas vezes com sacrifício pessoal a respeita. Sim, no caso presente trata-se de um filme, ou de um livro de guerra, porém daí só releva ser sobretudo em situações limite que a tentação se nos coloca de forma mais exigente ou tentadora, pondo-nos à prova no limite, sabido ser em situações extremas que melhor se pode testar a fibra de um caracter, de uma personalidade, de uma qualquer pessoa.


Dispomos actualmente de uma panóplia de instrumentos científicos que, desde o tempo à geologia d terra, à medicina ou à física, mesmo à astrofísica, nos permitem medir, aferir e apreciar ou aquilatar o que observarmos mas, contudo o insondável mistério da mente continua fechado a sete chaves, quantas vezes deslumbrando-nos pela negativa, quando não de modo quotidiano. Basta-nos olhar para os exemplos de Albino Tavares, triste figura do dia, pejado de condecorações, homenagens, considerações, e no entanto um individuo sem escrúpulos, como um vulgar assassino. Sem pestanejar mandou ocultar as provas da sua incompetência e culpa nas mortes trágicas de Pedrogão Grande, quando o que deveria ter feito era devolver o tacho de boy ao Instituto da Juventude ou ao partido que o pariu.

Muitas honrarias tem este país proporcionado a mafiosos, eu poria nesse leque Zeinal Bava, Granadeiro, Sócrates e tantos outros que há muito pisaram, cortaram, desviaram ou simplesmente puseram de lado para evitar incómodos essa linha invisível que vínhamos seguindo e traçando neste texto.

É a consciência e o racional que nos separam dos animais, porém, perdido o pudor, ultrapassada a linha vermelha da ética a raça humana só tem para oferecer animalidade, pior que isso, bestialidade, brutalidade. Nada, nadinha, nada substitui a moral e a ética por muito bom corte que tenham os fatos dos predadores ou aqueles que vistamos… 



terça-feira, 10 de outubro de 2017

468 - AS MAMAS DA GRACINDA BRÀS CUBAS ...



A amiga nem tanto, mas ela sim, deixava-a a um canto. Tanto, canto, ta bom e rima, estou inspirado hoje, talvez saia alguma coisa de jeito. A amiga, comecemos pela amiga, vinha acompanhada de um sujeito franzino, com cu de mulher, daqueles cus demasiado largos para homem. Como sabemos um homem deve ser talhado a direito de cima a baixo, mas não aquele que tinha uma cintura adelgaçada, as ancas largas e um cu grande, metido debaixo dos braços, quero dizer não tinha tronco ou parecia nem o ter. O maroto do Álvaro deu-me uma cotovelada mas respondi-lhe entredentes que já a tinha visto, aliás vira-a primeiro a ela e só depois à amiga. No tipo com o cu de gaja só reparei quando começou a dançar impaciente junto do balcão, talvez carência da bica, da cafeína, ou teria bichos carpinteiros…

O maroto do Álvaro tinha sido meu aluno no último ano antes de me aposentar, era um pinante, birrepetente, nem seria naquele ano que acabaria o nono, para além de História e Geografia, as duas que eu leccionava, estava chumbado a mais duas e ultrapassadas as três estaria fodido, iria ficar mais um ano a patinar. Para surpresa de todos na sessão de cante das notas passei-o nas duas e levantou-se um clamor de exclamações pelo meio do qual ele teve que passar a fim de ir à vida e deixar a escola e a todos nós pelas costas. Não mais castigou os contribuintes e tornou-se um dos melhores técnicos de frio e refrigeração no nosso distrito e, se tenho continuado a teimar no ensino hoje ganharia seguramente mais que eu, fiz bem em reformar-me, este país nunca esteve tão bom para quem não faça nada, mas estou a distrair-me, fixava eu os olhos na camisola que ele trazia envergada, com uma icónica imagem do CHE gravada no peito quando a loura, pousando-me a mão suavemente no ombro:

- Posso ?

O bom do Teles ia derribando as cadeiras ao recuar para lhe dar espaço, realmente a amiga nem tanto, mas ela sim, deixava-a a um canto, a milhas como o Ricardo diria depois delas abalarem, mas também ele lhe cedeu lugar e ela sentou-se, eu estranhei mas mal lhe senti o perfume recordei anos e anos de camaradagem em segundos.


Isso e a admiração pelas mamas dela, inda hoje as mesmas, sem querer o olhar fugira-me, fugiu-me e traiu-me,

- Inda gostas delas ?

fiquei embaraçado, embora os outros não percebessem patavina da conversa eu percebia-a e bem, não nego, apesar do meu feitio extrovertido corei, corei e pedi desculpa por não a ter reconhecido mas com aquele cabelo e penteado quem a adivinharia aqui? E a Guarda, ou o Fundão ou lá o que é, como estavam ?

- Estão no mesmo sitio, disse ela, na Serra da Estrela, onde haveriam de estar ? E tu meu caramelo, como vais ? Estás mais velho, mais velho e mais bonito.

Pronto, estava armada a barraca, rebentou-me com o ego, havia autoconfiança e auto-estima pairando no café como se repentinamente algo num forno tivesse jorrado fumo sem fim, por momentos cheirou-me a torradas queimadas acreditem. Claro que o resto da conversa nem se aproveitou, nem o Álvaro ou o Teles pescaram o que quer que fosse, e enquanto o Ricardo foi à rua queimar um paivante ela aproveitou p’ra recomeçar, digo teimar e rememorar:


- Eram uma ambição minha desde os catorze tu sabes e quando cheguei aos dezoito já eram assim, tu lembras-te, impossível teres-te esquecido. «A tua amiga é que saiu ao pai, tem uns peitos que mais parecem uma tábua» acrescentei.

- Não sejas maluco, és um parvo, tótó, ganha juízo e fica bem que eu tenho que ir fazer uma mamografia e não quero atrasar-me.

E lá foram, ela, a amiga de passar a ferro e o cu com pernas, porta fora em fila indiana e, comandando a traquitana ela, como sempre.

- Quem era prof. ?

Uma colega da minha irmã e também minha amiga, já não a via há uns tempos, por quê ?  Queres assassiná-la ?

A do assassinar atirei-lhe como provocação aludindo à camisola que trazia, o rosto do CHE, como já dissera, e por baixo em vermelho bem vivo a palavra KILLER.

Apercebi-me ao longo dos tempos que a maior parte do pessoal quer o admire quer o abomine não conhece o CHE, não conhece patavina mesmo, tristemente nem fazem por conhecer, então perguntei-lhe com a minha velha paciência de santo de antanho se conhecia a teoria da relatividade de Einstein, ou o conceito de “relativismo” ao que me respondeu prontamente ter uma outra camisola daquelas com a imagem de Einstein de cabelos em pé, e nada mais, nada mais sobre Einstein, nada mais sobre o CHE, o assassino, segundo ele.


O retorcido do Teles que chegara a fazer dois ou três anos de sociologia acompanhava a conversa interessado, tendo balbuciado qualquer coisa como as circunstâncias, Ortega e Gasset, o homem e as suas circunstâncias, bla bla bla, o CHE não foi um assassino, foi um comunista feroz, um animal feroz gracejou, pelo que aproveitei, puxei da maiêutica e estendi-lha na frente como uma passadeira a fim de que os dois descobrissem por eles as verdades que não viram ou que não tinham visto, tendo acabado os dois por me explicar que bem, não era bem assim mas, quer dizer a coisa é complexa, não pode ser vista só por uma óptica, isto é naquela altura…

E assim fiquei sabendo que o regime de Baptista, exercendo uma repressiva ditadura sobre Cuba e assente numa policia politica impiedosa jamais aceitaria o jogo democrático, pelo que não restaria outra solução que não a via armada, aliás aceite pela própria ONU, e claro, quem vai à guerra dá e leva, morre e mata, erros há sempre, sempre os houve e sempre os haverá, embrulharam-se os três, afinal o CHE já não era KILLER afiançava o Teles, nem tão pouco comunista garantia o Ricardo, fora ministro dos estrangeiros e da economia mas depois de visitar a China e a URSS apercebendo-se de como era o mundo e o rumo totalitário que se abria à sua frente abandonou Cuba e os privilégios que tinha, foi lutar pela liberdade, dignidade e libertação onde quer que um povo estivesse reprimido, primeiro para África, Congo, depois para a Bolívia mas já tinha a CIA no encalço que lhe fez a folha, digo a cama, que o terá feito fugir a sete pés duma revolução que amava e pela qual matou para não ser morto ? 


Eles nisto e eu pensando nas mamas da Gracinda, sim foi a CIA, mamas grandes auréolas grandes, pois a CIA armou-lhe uma cilada, já aos dezoito anitos toda ela eram só mamas, se calhar quando começava a saber alguma coisa da vida morreu, coitado, uma mulher perfeita como diria um primo meu, olha tem graça tu falares nisso, morrer quando começava a saber alguma coisa, e não é sempre assim? 

Agimos mais vezes animados pela ignorância que pelo saber e experiência das coisas, infelizmente é assim, tantas vezes, vezes demais, estou aqui lendo a entrevista do Carvalho da Silva ao Observador e a lembrar-me se nada disto que aborda e diz lhe veio à memória quando era sindicalista, agora é que certas coisas lhe dão cuidados, não se lembrou delas a tempo, ou não as conhecia, não as sabia, não sabia que era assim, mais um agindo sem saber e agora já entradote e indo p’ra velho é que está aprendendo, vendo o que nunca viu, não me recordo de o ver preocupado com o investimento estrangeiro que anda a zero há alguns anos, nem com esse nem com o nacional, a produção nunca lhe interessou mas agora está preocupado em que não baixe o nível dos impostos cobrados, inacreditável como com meia dúzia da patacoadas tira o crédito a outras tantas que disse acertadas, se não visse nem acreditaria, está como o CHE que deve ter somado dois mais dois e se meteu a milhas mal as coisas em Budapeste foram espremidas e antes que lhe fizessem o mesmo ou o atirassem para o saco de gatos em que a história se estava transformando.

Cada vez me convenço mais que os governos nunca deveriam ser entregues nem a gente com menos de sessenta anos nem a ignorantes, é um perigo, veja-se o Trump, o Maduro, o Kim Koreia, o Socas, o Passos, o Puigdemont, o Macron, o Costa e tantos outros…

Quem sabe o que teria sido de Cuba se o bloqueio americano não a tivesse atirado para os braços de Nikita Khrushchev. O bloqueio económico foi mais um erro de gente nova, Kenedy estava verde e muito muito longe dos sessenta anos… Claro que tudo isto são suposições, não há uma história dos “ses” nem nunca haverá…

- E a outra prof. quem era a outra ?

Qual outra pá ? Quais mamas meu ? Se não fossem elas como teria eu conseguido a vossa atenção e que lessem todo este arrazoado que hoje tenho para vos oferecer ? Foste enganado parvalhão ! Com verdades te enganei !

HASTA LA VITÓRIA SIEMPRE COMANDANTE CHE GUEVARA ! 


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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

467 - O SOLDADO PRÁTICO, by Diogo de Couto ...

Ao centro Diogo do Couto, pelo Grupo de Teatro Maizum. 

Ao contrário do que acontecia na época de quinhentos, em que tudo e todos enganavam o rei (no caso o nosso, imagino que ao de Espanha também), a actualidade é agora a marca dos dias, nada ficando por saber-se ou conhecer-se pelo que o reflexo das coisas é imediato, tendo sido aqui que senti algo ou alguém meter a mão nos estudos que desenvolvo sobre o nosso compatriota Diogo do Couto,* historiador, aventureiro, samaritano, marinheiro, mentiroso e trapaceiro q.b., como era então voga, historiador que contudo não se coibiu de criticar quer os abusos quer a corrupção e a violência decorrente ou provocada pelos citados compatriotas na Índia portuguesa de quinhentos, tendo activa e civicamente protestado abertamente contra eles.

Pois este nosso conterrâneo que larga e levianamente adjectivei soezmente, era em simultâneo um homem de bem e de honra, diga-se em seu abono ter sido amigo íntimo de Camões, que inclusivamente veio a descobrir naufragado na Ilha de Moçambique nos idos de 1569, a quem sem rodeios acudiu. Diogo de Couto partilhava a ideia de que a história devia versar a verdade sem quaisquer restrições, tendo plena consciência de que já nessa época quem o fizesse acabaria sofrendo repressões, criticando e alardeando sem temor essa  censura violenta e garantindo por experiência própria quanto a objectividade incomodava, caso em que se encontrariam “Os Lusíadas” obra que envolveria muitos nobres cujos familiares e antepassados estariam envolvidos nos acontecimentos que o poema narrava. Encontrando-se Camões com dívidas e sem dinheiro para voltar de pronto Diogo de Couto acorreu em seu socorro, portanto devemos-lhe a chegada até nós do épico de Camões, cujo manuscrito o bardo mantinha como único espólio do naufrágio que sofrera.

Diogo do Couto era homem de letras, já dera à estampa (nessa época a imprensa, embora rudimentar já existia) um completo e tão comovente quão impressionável relato do naufrágio da Nau S. Tomé, uma das naus da carreira das Índias, relato que o tornou famoso na nossa História trágico-marítima. Fora um dos protegidos do infante D. Luís,** e cursara latim e retórica no Colégio de Santo Antão e filosofia no Convento de Benfica. Pela morte do infante D. Luís e sentindo-se desprotegido (ficou sem padrinho, ontem como hoje os padrinhos eram,  são em tudo semelhantes) partiu para a Índia com 17 aninhos, de onde somente viria a regressar volvidos dez anos. Porém volveu de novo ao Oriente, o infante Filipe II incumbiu-o da missão de dar continuidade às Décadas de João de Barros. Sabe-se que deu corpo às que vão da IV à XII, tendo publicado completas apenas a IV, V e VII e o resumo das VIII e IX. Para sua e nossa infelicidade a VI ardeu e a VIII e IX foram-lhe posteriormente roubadas, enquanto a XI se perdeu. A XII embora postumamente viria a sair. 

Diogo do Couto era um estudioso com uma concepção diferente da história, muito diferente de João de Barros, e quanto a mim mais interessante pois entendia que as "verdades" deveriam ser ditas, doesse a quem doesse. Não por acaso e provavelmente para abafar a verdade algumas das suas "décadas" (VIII, IX e XI) levaram sumiço antes de irem ao prelo. É evidente que não poderemos afastar as suspeitas de que alguém, a quem não conviria a sua divulgação tenha estado na origem desse "sumiço". Por sua vez e na mesma altura El-Rei Filipe I nomeou-o em 1595 cronista oficial da Ásia Portuguesa e guarda-mor da Torre do Tombo em Goa, o que fez e lhe permitiu dar continuidade às Décadas da Ásia de João de Barros, encomenda do infante Filipe II como atrás ficara dito. De modo competente organizou esse novo arquivo, vindo a morrer nessa cidade de Goa a 10 de Dezembro do ano da graça de 1616.

Uma, ou essa concepção mais "realista" da história advinha-lhe da vantagem de ter vivenciado a colonização portuguesa no oriente, onde viveu grande parte da vida.  Observou os seus compatriotas as suas atitudes e comportamentos, tanto quanto a reacção dos nativos aos mesmos. Assentará aí a explicação para que vejamos os seus relatos mais próximos da verdade que a narrativa heróica de João de Barros. Também contribui para tal entendimento o facto da linguagem de Diogo do Couto ser mais simples mais viva e pitoresca do que a de João de Barros sobretudo por incluir alguma ironia e humor na narração d'alguns factos relatados. 

 Para além da continuidade por ele assegurada às “Décadas” de João de Barros, Diogo do couto celebrizou-se especialmente pelo testemunho do “Diálogo do Soldado Prático” livro que nos legou contendo uma critica mordaz ao funcionalismo público, na altura ao da Índia, cujas mazelas mete a descoberto, da ambição à riqueza por quaisquer meios, do vicio do amor ao luxo, da opressão sobre os pobres à falta de dignidade e às mentiras com que endrominavam com despudorada deslealdade El-Rei. 

Nada a que não assistamos hoje em dia. Uma pertinaz crítica ao sistema administrativo, militar e político da época de quinhentos perfeitamente adaptável aos nossos dias, pois se o Soldado de “O Soldado Prático” de Diogo de Couto se queixava dos desmandos no Reino e na Índia, os militares de hoje fizeram o 25 de Abril por se queixarem dos desmandos que nesta republica lhes aconteciam, sendo ignorados os seus feitos, carreiras e anos de efectividade tendo sido preteridos em promoções e ultrapassados pelos designados milicianos. O nosso país sempre foi palco de queixas, de furtos, de sonegações, e de igual forma sempre existiu cá quem a  isso fizesse orelhas moucas.

 “O Soldado Prático” é-nos apresentado sob a forma de um diálogo entre um soldado sexagenário, experiente, um fidalgo ex-governador da Índia e um despachante oficial ou secretário d’El-Rei. Curiosamente o original de “O Soldado Prático” fora furtado ao autor, somente através de cópias que dele havia se pôde proceder à reconstituição do mesmo, isto cerca de 1610. O livro impressiona pela narrativa, apoiada na experiência dos negócios pessoais do autor e dos que tinha conhecimento, nas suas amarguras pessoais, na visão pavorosa da decadência do império e do reino, as quais dão à narração um calor e uma violência que torna a verdade patética e elevando a obra “O Soldado Prático” a uma das obras mais honrados da nossa literatura. 

As palavras de Diogo do Couto são as palavras de quem viu e viveu as situações e os factos que descreve. Existe na obra um conhecimento pessoal dos factos por parte de quem a escreveu, daí haver quem recomende a sua leitura imediatamente a seguir à leitura d’Os Lusíadas. Meditemos. 

“O Soldado Prático é uma obra fundamental do corpus da literatura da expansão portuguesa. Rodrigues Lapa considerava o diálogo de Diogo do Couto uma das obras mais “honestas” da literatura portuguesa, Efectivamente, trata-se de um diálogo que nos permite conhecer o lado pragmático da expansão e a ideologia que lhe subjaz. Enfim, trata-se do texto que enceta a lenda negra do império português. Por todas estas razões, O Soldado Prático é um livro fundamental para os historiadores da expansão e do império português, sendo, como é, uma obra que faz uma análise atenta das misérias humanas numa sociedade de grande complexidade.” (Prof. Drª Ana Maria García Martín).



** D. Luís de Portugal era filho do rei Manuel I de Portugal e da infanta espanhola Maria de Aragão. Foi 5.º Duque de Beja, 5.º Senhor de Moura, 9.º Condestável de Portugal e Prior da Ordem Militar de S. João de Jerusalém, com sede portuguesa no Crato. Nascera a 3 de Março de 1506, em Abrantes vindo a falecer a 27 de Novembro de 1555, na actual freguesia de Marvila, Lisboa. Foi membro da célebre Dinastia de Avis e pai de D. António de Portugal, mais conhecido por Prior do Crato.




Diogo do Couto, Torre do Tombo.